terça-feira, 8 de outubro de 2013

 
 
A panorâmica é descrição. O travelling, acção. Nos grandes casos, sinto isso. Como também somos levados à desorientação decisiva quando tudo se entrelaça. Em “Professione: repórter”, para mim o capital filme de Antonioni, aquele em que a falta de resolução é mais grave, são estas duas figuras de estilo ou movimentos perscrutadores, a sua função e manejo, que tudo colocarão em causa. Colocar em causa e desorientação – toda a arte de MA. Primeiro plano, dia, deserto. Num filme que começa em clarão cegante até ao cair da noite sem alívio. O protagonista, Jack Nicholson, encontra-se ou desencontra-se na profundidade de campo, sai do seu jipe, interpela alguém, mas de repente a câmara vira-se para a esquerda, enquadrando o que não parece ter causa, dois miúdos a chegarem, voltando a ele muito aproximado mediante um corte. Pareceu-me uma panorâmica para a esquerda, um pouco tremelicante, um pouco tosca e também ela errante. Suspense ou interesse pelo nada que ficaria inevitavelmente fora de campo numa planificação clássica? Pouco depois, já corridos os créditos, no primeiro ponto supostamente dramático, o enquadramento fica no protagonista e no seu ajudante que recuam medrosamente, antes de o nosso olhar ser conduzido para o contra-campo da ameaça. Seguidamente a esta inversão das expectativas, um dos primeiros momentos célebres, quando a viatura se enterra num monte de areia. Nicholson de braços abertos numa revolta inconsequente, sem receptor, na primeira rendição, e a câmara a largá-lo para escutar, sentir e dimensionar o temível organismo secante que ali nem sensual é. Pelo meio disto, onze minutos, algumas antecipações da acção ou da possível linha narrativa; como muita divagação para o que está ao lado.
 
Se será da impossibilidade da fuga a si próprio que tudo isto nos fala e mostra, a cena da troca de identidade e a sua construção é o momento determinante, aquele que inevitavelmente rima com o célebre zoom final. O olhar revelador vai indagar mais uma vez o deserto, descrevendo-o ou escondendo-o, para se envolver em metafisicas e fantasmagorias que jamais se empolam ou se evidenciam. Apenas decorrem no seu presente e normalidade. Naquele espaço sufocante, onde microscopicamente a lente se cola a fios, paredes, bichinhos, transpiração. No acto da falsificação perpetrada por Nicholson, o som gravado na fita do jornalista e o corpo do duplo encontrado morto vão invadir a auscultação da posta em cena. O plano sequência conterá lá dentro duplos dos vivos e duplos dos mortos, imagens e sons impossíveis e a sua evidência, tudo fundido na circulação em vórtice que tem o nome de perdição. Designação técnica e existencial. Nicholson prefere pessoas a paisagens, o outro parece preferir o oposto. Sem flashbacks, saímos do delírio tão realisticamente como entrámos. Sem sobressaltos. Ficámos a saber de onde vem o of sonoro, ficámos?, e percebemos que dos dois só um ainda respira, mas, penso que é legitimo questionar, em que realidade vamos permanecer?
 
A partir daí, deslocações e mais deslocações, relações físicas e ilusórias, muito desfoque e mais asas desfraldadas ao vento. Uma câmara que parece flutuar ao sabor do acaso, na busca da matéria primeira de que se fez o reconhecido Cinema, alquimia romanesca ou sinais básicas. Dança onde a aplanação das cores e dos volumes, a retenção dos horizontes e o afunilamento cósmico anularão qualquer pulsão ou pulsação redentora. Fluxos vitais ausentes da nudez e do sexo. Os tempos continuam-se a sobrepor e a atropelar, sem ordem lógica, do terrorismo para o niilismo, das armas para os documentários, do ecrã para fora dele, para a aniquilação. Com uma cena enigmática, aquela em que o ponto de vista, antes de se fixar numa conversa entre o par, tenta seguir de um interior para um exterior as velocidades e cursos das viaturas que passam. Rendendo-se quase imediatamente mas sem justificações.
 
Por isso a cena final parece-me menos um irrealizável prodígio tecnológico, e se o é absolutamente jamais cai na gratuitidade, e mais uma culminação ou embate lógico. Lentíssima sucessão de reenquadramentos, cisões, ajustes, fusões, alheamentos e fixações, buscas e libertações, onde tudo desemboca e vale por si mesmo, num quadro que começa por cortar Nicholson a meio e termina num velório em composto renascentista. Toda a gramática, dentros e foras, escuridões e claridades, o tempo mesurável e o tempo que se esfuma, concreto e sagrado, universo. Depois, a noite e o eclipse.


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