sábado, 2 de novembro de 2013

 
 

No começo e no fim de “Blackboard Jungle” somos como que encantados pelo artifício, um bailado de miúdos mas também de comboios, autocarros e água jorrante, onde os graúdos já parecem estar fora de validade ou deslocados, desfiles com beijos e piropos atirados ao ar, em brilhos a preto e branco que remetem ao musical Hollywoodiano. O “Rock Around the Clock” da parte sonora que se mistura com a cacofonia do lugar, a câmara ainda solta e livre e feliz da vida, bem como o outro tipo de brilho que fulmina dos olhos do Glenn Ford que parece perdido e seduzido, promete algo que vai ser dificílimo ao filme recuperar nos rugosos, convulsos e asfixiantes minutos e dias e dias que se vão seguir.

Porque logo de seguida Glenn Ford entra numa escola e nós entrámos com ele, e como vai ser difícil respirar e alegrar-se lá para dentro... Richard Brooks prende a câmara e utiliza-a como um qualquer aparelho médico de precisão elevada que detecta patologias e respectivo mal-estar. Confirmámos rapidamente que ele é professor, que lhe dão o lugar pois levantou a voz com Shakespeare e que a sensualidade e magia de Busby Berkeley ou Fred Astaire foi pura ilusão desejante. O som de teclas, da poluição externa e interna e as espectativas acagaçadas dos educadores vão tornar este filme e caminhada que nunca é panfleto numa experiência bruta, suja e triste de uma forma a que qualquer neorrealismo para mim nunca atingiu no que a dureza e violência diz respeito. Nunca panfleto nem nunca queixinhas, pois cada um deles e sobretudo Ford estão banhados e estonteados pelo vapor da vacilação. E não só essa esquizofrenia mas algo mais abstracto e fantástico como tudo o que depende e se desprende do real, as paredes parecem constranger e participar no complô, os fumos advirem de metáforas ou de pinturas infernais com intuitos vingativos, as cicatrizes na pele ou no quadro do título a incomodarem e a picarem persistentemente a memória.

Ford percebe desde logo que nunca se pode encolher, olhar olhos nos olhos é ali a única possibilidade de sobrevivência e jamais tratar os animais como um grupo de animais enjaulado mas sim chegar ao possível recôndito de cada um. Como Brooks também nos faz ver que tudo sai para fora da escola e do campo do enquadramento, para os passeios, antros do vício e casas de repouso de cada qual. Faz perceber que não se podem compartimentalizar ou ter diversas vidas, ir para casa tomar o chá e esquecer-se até ao dia seguinte. Feito isso, é a morte do artista. E como Ford não o quer ser, prefere não escrever ou pintar mas antes moldar futuros e utopias, vira a cara a convites assépticos e a cargos honrosos, logo a tragédia que é a cara da realidade tratada por tu e a sua crueza vai embater defronte com ele.

Tem de carregar a pressão da sua mulher que não pode perder o seu segundo filho, a colega de ensino que o tenta agarrar e o devora a cada cena, bem como a relação com o aluno supostamente líder e contraditório de Sidney Poitier, tudo o que isso emaranha e afunila, entre traições, mal entendidos e explosões imprevistas e inaceitáveis, proporciona uma combustão e uma urgência de saídas e de fidelidade que com este fulgor só em Nicholas Ray e nas suas convulsões limite à beira do cosmos se poderão achar paralelo. Essas erupções do imprevisto sem aviso, desequilíbrios com causa e sem, o problema da demarcação social, a solidão da ruptura, a explosão da coragem. Quem se encolhe lixa-se, e assim aquele outro professor que para o inconciliável grupo ousa Jazz e mete a carroça à frente dos bois vai ver a sua magnifica colecção calada e estilhaçada. Mas quem declaradamente se veste de super-herói também se pode tramar de uma forma ainda mais grave, é Ford a chamar preto a Poitier ou o aluno diabólico de Vic Morrow a avisá-lo que quem vai reprovar ainda vai ser o professor. Não podemos deixar de parte como todos eles o eterno sorridente por querer ou sem querer, esse bobo da corte ou idiota cheio de ideias que assim parece feliz, sabemos logo que um dia cairá o véu da sua espera ou da sua impossibilidade, e como é comovente e revelador o único quadro em que o vemos sério…Todo o filme ali naquele background.

Soluções? Como os grandes, e Richard Brooks faz parte dessa nata, não as temos gratuitas e fica-nos a cena final depois da luta a facas que nos remete não inocentemente ao “Rebel Without a Cause”. Ford e Poitier, Dadier chamado carinhosamente e Miller em sorrisos depois do tremor, sem coisa de pupilo e autoridade, sem pele oficiosa ou fronha convencionada, e se alguma moral ou exemplaridade sobeja da batalha, ela está aí nessa descida e nessa relação já puramente possível, em que se fala de pactos e de confiança, onde o gesto e o movimento diz tudo mais do que qualquer palavra. Estamos e estivemos no campo das grandes convicções que são os campos do amor. E os campos do lamento sempre a ele associados, que aqui podem caber inteiramente numa pergunta, essa de saber como é que tanta inteligência e eminência política pretendeu agregar e disfarçar pelo simplismo, paradoxo e mesmo pelo fascismo dissimulado todos os erros e males a que se conduziram eles mesmos. Porque o filme sabe e nós temos de saber que nenhum daqueles putos tem a culpa maior ou sequer culpa. Têm muita razão e o professor Ford percebeu e vai protegê-los, dar porrada e receber, tudo a mesma coisa.

Filme de amor e Ford a olhar para Poitier e para o que vem como sempre olhou para a sua loira apaixonada. Poitier a começar a despegar-se do chão e o Around the Clock a espezinhar o tramado do verismo que tanto os suou e a fazer levitar tudo. Tal e qual como os desenhos animados que brincam com a física e a desafiam facultam mais consciência e divagação do que mil programas educacionais. Ford opôs a projecção à redução e ali ganhou copiosamente. O Richard Brooks que para mim sempre foi seco e essencial, todos os fogos se passam dentro do raio esquadrado, dramaturgicamente pertencente aquelas existências e ao seu meio mas nunca na escrita formal que prima pela observação mesmo que tensa - seja no melodramático ou na desgraça Scottfitzgeraldiana de “The Last Time I Saw Paris” ou na carne nova e madura tão pulsante e alterada do “Sweet Bird of Youthe”, isto para não entrar nos pormenores das diversas quatro paredes ou gaiolas urdidas em “Cat On A Hot Tin Roof”, muito menos em meias ou pernas e o resto a escaldar de socorro em Elisabeth Taylor – levou aqui o seu implacável poder de encenação à estupefacção e intolerável, descarnando as cascas todas mas não se esquecendo que para assim ser também é preciso depois bailar. No teatro da vida e na vida do teatro o cinema e as suas escalas, ampliando e reduzindo em profissão justiceira. Antes do fade a negro irrecuperável.

E como ele assim também Glenn Ford não assado, actor complexíssimo e inadivinhável, onde o sorriso pode conter a semente da perdição, quer pela ontológica ingenuidade quer pela animalidade intrínseca, ou a face cerrada e estoica como uma mirifica esfinge estar crente de todas as promessas. Só ele com o seu ar naturalmente confiável pôde ser o maléfico anjo de “3:10 to Yuma “, esse saco possante que delimita um circulo de inacção à sua volta mas que pisca o olho e o coração no instante final e mortal a Van Heflin pelo delírio expressionista de Delmer Daves. Espetar socos Langianos em “The Big Heat”. Expor-se bondosamente e desalmadamente neste genial “Blackboard Jungle” e deixar-se arrastar nos mecanismos, considerações e lógicas ou ilógicas dos adolescentes que trata. Ser também um igual. Não para todos.

Quem é que vai saber se é final feliz ou mais uma ilusão? Mesmo com bebés salvos, rasgadas satisfações e cinema de novo sob o signo do sonho ou de Méliès… A certeza da verticalidade e do mergulho no indefinido turbilhão da vida deu-se e tudo está ganho. Por que não deixam hoje filmar Milius ou Cimino? Misturar todos os planos e níveis vezes demais sistematizados e paralisados para no tudo em causa se apanhar a verdade essencial. Volte-se a isso sem rede e que recomece a prodigiosa perigosa aventura.

 

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