segunda-feira, 4 de novembro de 2013

 
 
Os ordinários embebedam-se a whiskey, os extraordinários com poder. A força cria líderes, mas também acaba por os destruir. Isto são coisas que um médico literalmente cospe à autoridade trucidante de uma cadeia de alta segurança cercada por água. Estamos em 1947, numa América recôndita representada nos estúdios da Universal, e com o infinito alcance que os grandes e implacáveis filmes de Julles Dassin sempre bradaram. Sem perdão, remissão ou abébias para quem as não merece. Como “Un condamné à mort s'est échappé” só aparentemente estamos num prison movie típico, onde a personagem de Burt Lancaster (aqui com o sangue a ferver mais próximo de Siodmak do que de Visconti) não é o artista principal, como não o é o fabuloso médico de Roman Bohnen, o grupo de cinco da cela R17 ou qualquer outro que se imole por uma fuga sonhada nas noites de suor, paixão ou insónia. Daqueles cinco a que Dassin se coloca lado a lado connosco, para escutarmos jogadas, promessas e sonhos, todos eles e nós e filme vamos ter um paraíso que rasga o infernal presente. Em flashbacks que suspendem o tom ostracizante e vingativo em causa mas que por outro lado insuflam de gravidade e de energia armazenada, de carga explosiva para gastar no momento devido.
 
“Brute Force” trabalha a duas grandes pulsões opostas, jamais reconciliáveis, e que logo sabemos irão chocar devastadoramente, em proporções desconhecidas. A sede de poder da tal autoridade cega chamada Capt. Munsey, contra o inaceitável totalitarismo que faz no último segundo os fugitivos embarcarem numa missão que descobrem ser cientificamente suicida, dispensando o acomodamento como o paraíso. O Capt. Munsey quer ser Gengis Khan, Alexandre o Grande, César, isto é o que lhe cospe ainda com mais subtil força o tal médico-borrachão-filósofo que funciona como divindade tal como aquele preso cantante se faz cruel palhaço. E por datas e tempos destes também está ali senão um Hitler, pelo menos um Hitlerzinho. Enquanto Lancaster, o seu bando, o jornalista do também soberbo e discreto Charles Bickford neste festival de actores soberbos, os outros trinta ou quarenta ou umas centenas ou uma terra inteira, apenas, e que apenas, vão guinar o seu plano primeiro e os beijos às suas amadas para matarem a Força Bruta. Mais do que a liberdade, o amor, ali, naquele palco inconcebível, intolerável, naquelas insuportáveis visões de planos gloriosamente contrapicados à Leni Riefenstahl em que um monstro glutão do globo se agiganta, o que importa é exterminá-lo. Ainda por maior amor. Pode-se?
 
Para tamanho impacto, tamanha missão, cisão e pacto, a encenação de Dassin, para fazer sentido, teria de estar à altura da encenação do mal absoluto. Para sequer a luta ser possível antes de resultados práticos de combate. E é preciso ser-se tão guerreiro, feito de aço e generoso como os fiéis presos para que as formas desde logo e cada vez mais se revistam de indestrutibilidade, um metal intransponível de luzes e sombras, uma capa retaliadora. Dassin está à altura e vai de frente com tudo. Leva-se mesmo o absurdo até ao fim e aqueles homens com as suas fardas, chapas, olhos e pertences confundem-se ou fundem-se com os fundos, as grades, as poucas máquinas, o soro outro da choça, o nojo, o despojamento e o céu deles escondido. Vai ser preciso extrair a frio a humanidade àquela massa una e chafurdada, frio das balas de metralhadora e dos incêndios contraproducentes, e obviamente que as fundações vão gripar, pôr-se em questão. Lancaster leva um tiro em cheio mas não cai, caminha morto e elimina com a sua força sobrenatural toda aquela metafisica em acção de quem quer ter o mundo na palma das mãos. Não por acaso se tinha fechado o tiranete numa sala a música clássica e a tortura e chamado o Chaplin de “The Great Dictator” a terreiro e a testemunho.
 
Um homem a fundir-se noutro, o noutro em vários e esses nas massas que como numa sequela de “Metrópolis” despertarão e fuzilarão sem pedir licença a quem de direito. O movimento da violência e da contrarresposta final, bem como a superação de Lancaster, a superação geral, esse movimento atómico e viscéreo em que as carnes e garras dos homens fazem corpo com a estética do cinema que não se coloca acima do que está em causa, é indefinível e como a grande arte ou a vida plena só faz sentido no acto da experiência. Uma chance em um milhão e a vitória da derrota. O lançamento ou apagamento final deste projéctil de uma silenciosa e drástica poesia entrecortada a uivos de não desistência é o definitivo cortar da distância ou truque da ficção. O médico olha-nos, olha-nos cortantemente e desconcertado como sempre actuou ou respirou, e fala-nos da nossa teimosia. Da teimosia e da força. “Brute Force” é o mais terrível horror, mas também a mais sublime dádiva.

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