domingo, 29 de dezembro de 2013
segunda-feira, 23 de dezembro de 2013
“A atracção pelo abismo faz esquecer o perigo da
morte que é, dentre as coisas prometidas pela vida, a única que está
garantida.”
Manoel de Oliveira, em conversa com Antoine de
Bacque e Jacques Parsi
“The Green Berets”, segunda experiência de John
Wayne creditado como realizador, aqui ajudado pelo homem dos visual effects
duros e subtis que foi Ray Kellogg, dificilmente será alguma vez visto sem o
boca-a-boca do filme pró-guerra, fascista ou intolerante. Mais coisa menos
coisa, para quem se estiver a borrifa para endeusamentos cegos ou solenidades
com pés de barro ou pelo contrário considerar Wayne um deles, tudo o que os tão
inteligentes a partir dos laptops e do rabo estatelado na poltrona disseram
sobre Cimino, Coppola, e mesmo Ford, Hawks ou Walsh, ou, para ir aos tempos das
penas e da tinta, Griffith e companhia. Tornando-se tais discursos com
pretensões superiores de uma maldade e simplismo tão perigoso do que aquilo que
acusam. Ora aqui está uma daquelas não-obras-primas que importam, formalmente
montanhosa e bruta como os prepósitos, precipícios e ar que habita,
emocionalmente escancarada e viva demais como as verdades complexas, ardente e
esconsa e sem os filtros das uniformizações de qualidade de embrulho. Por vezes
um pouco tosca, por vezes sincera em demasia pois feita pelo homem convulso e
não pela fria máquina em série, a falha com as suas misérias ao invés da
perfeição rumo ao declínio; às vezes tão elegíaca como os mais elegíacos
clássicos ou orações.
O Senhor David é racista, o Senhor Raoul só mostra
o lado Americano e dizima o resto, o senhor Michael pisa orgulhosamente
cadáveres alheios. Duke, o conservador e republicano furibundo, o tal que vota
Goldwater, é, neste libelo que vai espraiando as sedes e destinos de quem pela
terra desfilou, antigos testamentos e testemunhos ou 2001 Odisseia no espaço,
corpos nus em terras virgens até zeros e uns revolucionários, o homem que
comanda os boinas verdes treinados para matar, esses que como se diz na partida
apenas respondem por si em nome de algo superior que os abarca e os reduz. Assim
posto, vamos segui-los ao Vietname que funciona como palco pulsional e natural
da sobrevivência, confluência de paixões sem volta a dar e de ódios sem
remetente, onde vão ser eles mesmos. E de repente a data 1968 deixa cair os
contextos e o caldo politicamente comprometido para se transformar na mais
duradoura das nossas questões. Destruímo-nos para quê, porquê, como e quando,
estas e mais as dúvidas soturnas que nem sabemos pôr.
“The Green Berets” é um filme no qual o chefe
bebe whiskey com o subalterno à hora negra da morte deste, um homem perdoa a
uma mulher a sua perdição velha como o resto, uma criança é adoptada vezes sem
conta até à meta da eternidade. Que fecha a cair-do-sol quente e jovem,
alaranjado, efabulatório, não desistente. Mas, sobretudo sobretudo, que é tão
articulado pela criança sem lados ou manhas que pulula solta como o vento ou as
balas, como pelo jornalista a que David Janssen dá corpo e permite
maleabilidades que adensam toda a dramaturgia da irresolução que é o centro nuclear.
O seu confronto com Wayne e consigo decidem tudo e é a imagem que se solta
flamejante deste movimento infernal. No seu primeiro mano a mano o jornalista
interpela de lado o guerreiro, diz-lhe que não acredita na necessidade de
invasão. O guerreiro pergunta-lhe se já lá esteve na arena onde tudo se decide.
Perante resposta negativa quem a deu nem merece mais diálogo, antes um virar de
costas e ignorância com causa. Um é muito fácil falar no conforto, exactamente
como os críticos de cinema ou especialistas em assuntos gerais acima referidos.
A coisa vai evoluindo, o jornalista vai à guerra. E vê corpos a capitularem
derradeiramente. No segundo confronto em grande-plano entre os dois, a coisa já
pia fininho, já se respeitam frontalmente. O que vais escrever nesse teu
jornal? Se escrevesse o que queria perdia o emprego. Reconhecem-se na
circunstância e nos ecos longínquos percebem-se, dão a mão, o guerreiro até lhe
oferece trabalho. No terceiro momento significativo de Jansen, já está liberto
da sombra da experiência e do calejamento que até ali o rebaixou ao seu lugar
merecido, e assim mesmo é ele que decide entrar no pelotão. Que se percebe
nesse momento sinceridade própria. Lição produtiva onde se pensa que elas não
entram.
Em tão grandes conflitos e tensões e antes do
The End crepuscular, que resolução, resultado, prognóstico? É o plano-geral já
isolado do rosto magoado de Wayne, que não sabe para onde mas sabe que tem de
caminhar, que pode fornecer uma luz redentora entre os escuros esverdeados e os
dias queimados que a paleta do imenso Winton C. Hoch acorda com a natura e com
o Deus inerente que vai quebrando o devastador silêncio. Rosto sem qualquer
resquício Heroico ou sobre-humano mas antes opacidade e ferida inevitável.
Campo de todas as contendas, dialécticas, certezas e contradições. Impenetrável
e revelador, de onde uma imagem-afecção de Gilles Deleuze não teria qualquer
sentido. E, segurando-o, um corpo envelhecido, pesado, sem a elasticidade
ziguezagueante de um Ethan Edwards, o que agrava tudo ainda mais, para lá de
limites e idades para se ter juízo.
Num lado dessa cena, a uma panorâmica ou a um
travelling, depois de um piscar de olhos e uma respiração funda, toda a força
da raça e todo o amor em potência. Uma nova mão mais tenra aguarda o aperto. E
há que aclarar que este palavreado é só o sentimento de uma prespectiva de quem
nada disso cheirou, neste caso este pobre escriba, contra uma prespectiva que
mais do que cinema ou arte é feita abissal, porque sem ilusões como aconteceria
com Michael Bay ou Ridley Scott, os directos sem edição de muita televisão e
documentário. Os realizadores americanos vão com os americanos e jamais temos
partidarismo ou panfletos, antes o medo comum, terror prolongado, debate de Criadores
e ordens com o nada. “The Green Berets”, titulo parcial como tudo o que mexe, está
fendido a círculos ou a raides estilhaçados e não concordantes, e aglutinado na
possibilidade eterna da superação. Num caso ou noutro, e no que escapa, fazendo
do instinto um credo maior. Na guerra e na paz.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
Well, a great deal. He was a good director when I started, and I copied him every time I could. It’s just as if you were a writer, you would read Hemingway and Faulkner and John Dos Passos and Willa Cather and a lot of people like that. We were very good friends. I don’t think I’ve done nearly as good a job as Ford has on some things. I think he’s got the greatest vision for a tableau, a long shot, of any man.
Jack was quite a guy. I saw more of him than anybody, almost, in his last few months because I’d just drop over to the house. He spent most of his time looking at old, old westerns on television—you know, those cheap westerns that were made in about a week. And he was still bright; he kept his senses.
Hawks sobre Ford no Hawks on Hawks do McBride
Jack was quite a guy. I saw more of him than anybody, almost, in his last few months because I’d just drop over to the house. He spent most of his time looking at old, old westerns on television—you know, those cheap westerns that were made in about a week. And he was still bright; he kept his senses.
Hawks sobre Ford no Hawks on Hawks do McBride
quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
A etiqueta de Francis Ford Coppola é a da megalomania, espécie de Abel Gance ou Erich von Stroheim dos seventies, mais parra do que uva? Já não há como escapar da fama, no entanto, o desmedido arquitecto da trilogia do Padrinho, o suicida operático de “Apocalypse Now”, o fantasista barroco e sonhador de “One from the Heart” ou “Dracula”, esse mesmo que fundou e afundou estúdios e impérios, pediu empréstimos sem garantias e a tantas zangas deu azo, foi na mesma medida um cultor de objectos subestimados porque mínimos, não condizentes com certas expectativas, colocados e colados simplesmente ao lado de uma personagem ou de um grupinho, escutando-lhe temores, tremores, medos que para fora não pulam. Sem barulho ou bandas-sonoras a não ser a da música da alma.
Existem mais do que dois ou três exemplos, entre o escondido técnico de som, do saxofone das ruínas e de um envergonhado romantismo que o fantasmático Gene Hackman desenrola em “The Conversation”, até aos soldadinhos de chumbo que se continuam a derreter em prantos nos instantes decisivos e tão fundos que assolam “Gardens of Stone”. Mas a minha pessoa e o seu testemunho pelo cinema e nada mais do que o cinema continua a ser o da lacrimosa, fragilíssima e pulsante Shirley Knight no luminoso e ao mesmo tempo tão opaco “The Rain People”. Letreiro tão lancinante como um “Meet Me in St Louis”, um “On a Clear Day You Can See Forever”, aquele “They Drive by Night”. Do rosto daquela criatura dispersa às paisagens de fim de estação, Francis Ford Coppola, o megalómano, o acusado esbanjador de formas e de emoções, assume-se um humilde topógrafo da solidão, das ambições autênticas, do desamparo sem luz ao fundo do beco, dos ritmos cardíacos ecoantes, desconsolados. Também um perdido à procura de algo, de coisas, qualquer coisa.
Precisamente o oposto do que na mesmíssima época Dennis Hopper procurava com “Easy Rider”. Ambos atravessando e cortando a América. Ambos em fuga para a frente de muita coisa, os dois foram geograficamente no sentido contrário, chegando a um ponto de encontro que os afastou ainda mais. Se Hopper incitava à revolta social, aos gritos, à provocação e a um individualismo destruidor, Shirley Knight, no filme chamada Natalie, lamente os ósculos soprados ao vento, o lusco-fusco das eternas redescobertas, as alegrias de outrora, dialogando com o silêncio. Parceira do Robert Eroica Dupea de “Five Easy Pieces”, da Wanda de Barbara Loden, dos nobres Stallones, da Delphine do “Le rayon vert” de Eric Rohmer. O farrapo de cabeça erguida do Travis no “Paris, Texas”, hummm, talvez. Dos anjos ou estropiados da esquina mais próxima. E, divagação minha ou débil crença de alguns sem medo de serem crentes e errarem, puramente Hawksianos, pois não se trata só de qualquer um deles se estar a borrifar, virar a cara ao mundo ou fugir das chamadas responsabilidades adultas, mas sim o assumirem por inteiro a atitude, darem a cara, fazerem brutamente, deixarem estupefactos os reguladores do meio; ilusões perdidas, mesmo que vacilem ou se contrariem indesejadamente. No fim nunca há cordas na garganta ou enforcamentos, e se os há metaforicamente, qualquer um deles age com mais violência e convicção do que qualquer radical dos filmes radicais. Claro que John Wayne não tinha destes pruídos nem se engasgava, mas ali era matar ou morrer literalmente, por muito que queiramos tapar estrelas mais próximas com peneiras. Neste outro mundo disfarçado ou diversamente encenado, surgem-nos estes seres, causalidades incompreensíveis, e a violência da coragem e da verdade interior que algures assoma ao todo, ou numa aresta e de raspão, precisamente. Se não vamos acreditar em coisa alguma, e aqui está o grande paradoxo para quem pensar nisto como só desacreditação, coisas assim, para dentro e para fora da tela, não valem para nada.
Primeiro plano, rente ao chão. Chuva, lixo e o som de muito ar. Segundo, gotas sozinhas, o fundo desfocado. Foca-se, surge-nos a casa. Depois baloiços, casa novamente. Entrámos num quarto e vemos um casal. Sentimos mal-estar, respira-se mal, corpos gelados. Mais gotas que vão ser visita recorrente. A água de um banho esperançoso, num conto tão aquoso e embaciado. Nada parece ajudar e surge uma inevitável carta. Um último beijo ou até logo, um último toque, a fuga. No caminho dela, a visita parental de aconselhamento ou nada disso. As primeiras recordações e flashs que teimarão em regressar sem pré-aviso. Casamentos, danças e festividades que prefiguram tanto do que Francis fará brevemente. Periferias, arredores, vias-rápidas, coisas sem muita graça e caminhos para lado nenhum ou para os cinco, ou vinte ou algumas horas sozinha que Natalie deseja. Túneis e um fade a negro que corta para a cabine telefónica que não é confessionário. Tão pouco tempo e ferida tão grave. A partir daí não se esmiuça, ou sente-se ou não se sente.
Fundamental essa chamada, longuíssimo plano de duração essencial, onde ela se despe toda, para do outro lado da linha acontecer o que tantas das vezes acontece a estes nus, o marido pensa que ela está doente. Jamais também psicodrama ou reflexão sobre a depressão. No quarto de motel onde ela relaxa e se esconde do lá de fora que assusta, nada a fazer, nada de nada, a não ser as batalhas eternas com a mente e as imagens inapagáveis, invencíveis com as suas ondas sonoras a picarem para lá do conforme, as que não se cortam como numa mesa de montagem. Por isso a duração volta-lhe a ser fiel, o ponto de vista que lhe cede o espaço necessário e o ar, também. Lá sai do casulo e o acaso prega a partida do costume. Pessoas de chuva, gente feita de chuva, que quando choram desaparecem juntos, porque choram tudo para fora, desvanecem-se, ou coisa parecida. É o que já foi herói e decidiu varrer folhas livres quem o diz. Gente que ele certa vez avistou por aí, real, comum. Bela, com certeza transparente.
Jimmy Kilgannon, apelidado de Killer e encorpado por James Caan no seu auge, é ele que aproveita a boleia hesitante dela e faz o tal destino começar a revirar. Partem por ali abaixo, entre comboios e carreiros da mitologia da americana, e já são dois como diria Gaston Bachelard. Ela inventa um novo nome para ele lhe chamar, ele vai nessa, começam reinvenções logo de partida. Brincam como crianças, por nada, sem esperteza daquela corrompida. Tira-se roupa, bailam sem orquestra, já brigam e amuam. Parecem namoradinhos ou união prometida. Trata-a como uma princesa, devolve-lhe a beleza e a coroa simples, um arco-íris fulgente como as chuvadas que teimam. E ele também começa a ter os seus flashes, como outros, e surge-lhe o brilhante jogador de futebol que foi, o ídolo agora considerado atrasado mental por quem antes lhe deu o corpo e assegurou tudo. E Francis, o machão, o egocêntrico, surpreendentemente, torna-se cineasta da Mulher no sentido fabuloso que importa, sem feminismos ou bandeiras inertes, e oferece, como Minnelli ou Mizoguchi ou Cukor, planos só de e para Natalie, para Shirley, espelhos e brilhos a condizer com a abstracção salvadora deste salvador filme.
Vão por ali fora e acontecem coisas tristes e coisas alegres. Prodígios e lamentos. A morte sobeja inesperada como sempre ou nem por isso. Fábulas como no cinema de género ou no pavor quotidiano. Patético e trágico de mão dada e indestrinçáveis. O resto não sei e não quero insistir muito para saber. Começo por não saber por que ela lhe pede coisas no motel em que passam a primeira noite sem fazerem amor físico, as causas da fúria ainda breve. Por que ela depois o insulta muito mais quando o decide abandonar na berma. Por que o escorraça tantas vezes, o chama sempre, o acaricia sem lição. Por que ela fugiu de início. Causas e menos causas e não sei mais. Sei cada vez menos. Mas percebo, algumas coisas. Quando Killer lhe diz na rodoviária que espera por nada e Natalie lhe confessa o real nome. São necessidades bruscas. E não se conseguem separar. E Natalie insulta-se a si mesmo. Provoca e aparece a indómita ciumeira. Mente. Não sabe se para o menino que não cresceu ou foi diminuindo há-de ser mãe ou a melhor amiga. Não sabem se se amam ou gostam só. É lindo, isto, isto de certas não certezas.
E as novas chamadas para o marido, em que ela fala chinês e ele russo ou assim. A gravidez que nada importa e no final quando o polícia (olha, hehe, já é o genial Robert Duvall) com quem vai para a cama trata a filha como lixo já parece importar. Contradições sempre. Esse polícia que proporciona um momento de aparente enamoramento e de assomo lírico na cena da multa, cabelos ao vento e ângulos contra o céu, mas que se desgraça em esquemas podres e baixarias. Mas sei lá se o posso culpar? Posso culpar Killer quando o parte todo como se ainda fosse jogador? Killer confunde o inconfundível? Ou essa menina possuída que diz ao menino que é o mais inteligente que conheceu mas lhe espeta tiros sem dó? Sei lá, vou percebendo umas coisas, outras zero. E que a dúvida é centro destas pinceladas impressionistas e fortes. A câmara por si só não tira conclusão, apenas capta, guarda, faz ver e rever, o pior é o resto, certas cabecinhas pensadoras. Vamos com ela neste percurso e circulação em que o presente se reflete e ramifica para todos os lados, tornando-se ou reconstruindo-se sempre presente. (Linearidade e circulatório, o claro e o escuro e os perfis entrevistos na cena da roulotte, a vida?) Lá está, desfocando, focando, e assim vai. De Nova Iorque para Oeste e se mais houvesse mais se galgaria. Era a intenção dela, acaba em Pietà no escuro calado da noite. E isto vai passando. E um tipo sabe cada vez menos, mas às vezes, uma luz dali, um cruzar de braços dacolá, o corpo mal posicionado…
domingo, 8 de dezembro de 2013
Nova Iorque, 2022. É o que nos informa a legenda
de “Soylent Green”, mas o que ela quer situar e mostrar verdadeiramente é o fim
dos fins de uns inquilinos que passaram algures numa via láctea e não souberam
que fazer, o novo do novo que para aí remete, o inaceitável. Por isso, mais
perto de um Robert Bresson ou de um John Carpenter, a luz que se fecha e mais
evapora a cada segundo passado a pacto com a unificação a toda a força e
violência do estilhaço e do fragmento que corrói, do que visionarismos ou
criatividade da ficção dita cientifica ou da antecipação da humanidade e do
high tech, essa que normalmente limpa os prémios de efeitos especiais e
cataloga de freaks os autores envolvidos. Como chegámos a isto, o mundo era
melhor lá para muito atrás, eu estive lá, posso prová-lo, tudo isto são
interrogações e tristes afirmativas do mais velho ser que ainda paira e vai resistindo
num mundo que mais do que perto do colapso está insuportavelmente possuído pela
mais incrustada fealdade. Talvez por isso se chame Sol, e vá dando uns toques
latinos para mais disso se recordar, e tenha sido interpretado por Edward G.
Robinson, também no último papel da sua espantosa e combativa carreira. Porque
ali ele é o único jovem ainda, com sangue na veia e sede de saber e comer bem
comido. E é o que vai passando ao Thorn de Charlton Heston, amor, conhecimento,
beleza, o sabor antes de todo o pré-fabricado, plástico, de todas as correntes
de degustação asséptica, de limpeza corporal e moral e sexual. Vendo agora,
estamos de facto muito perto. Valha Deus aos macrobióticos e aos saudáveis sem
carne…
Uma simples maçã que parece reluzir fora do seu
esconderijo e exterminação, o espanto por um bife clandestino e com osso
suculento há muito apagado do mapa, saladinha verde na proporção contrária aos
raios queimados da panela de pressão que derreta as ruas, um refugado que
envergonha as barrinhas que se tornaram único fruto, meia garrafa de Whiskey do
divino gamada ao demo, uma colher rapada de morango desconhecido…um jantar a
dois entre o velho e o seu pupilo já maduro que olha para o que já foi habitual
e banal e ali é exotismo histórico…solenidade e ritual só a ver com o arroz
malandrinho e os jaquinzinhos que João César Monteiro sacralizava e convertia
na mais alta forma de sagrado nos seus sagrados banquetes. Música erudita
também já esquartejada pela eletrônica e muitos sorrisos matriciais e sibilinos
para um acto perfeitamente proibido, o de comer bem do que a terra oferece, a
animalidade ou bestialidade orgulhosa da sua origem. O embalo e o instante
perfeito ameaçados pelo fora e pelo bem geral que tudo calcou. Bem fundo
naquela casa de madeira partilhada e forrada a material alienígena, livros,
papel, material de escrita manual. Obviamente um último reduto a abater. Numa hipotética actualização realizada por um vencido da vida que continua a socar como a beber trocava-se a película pelo vídeo e pelos DCPs vigentes e era o mesmo efeito? Como é que no tempo da Maria Cachucha se aguentavam riscos na tela gigante demais, saltos daquelas coisas chamadas bobinas, quebras abruptas e mesmo a possibilidade de incêndio? Eram felizes aqueles seres?
Até à morte de Robinson, talvez a mais fabulosa
e transcendentalmente terreste dos filmes de Richard Fleischer, grande cineasta
da morte, da arte de morrer e do percurso derradeiro, onde todos os pixels
esborratados da aparelhagem virtual que comeu peitos e coxas surgem devorados
pelo que no auge da grande arte e do autorismo seria só bilhete-postal. Naquela
redoma horrível e íntima o asseadinho vai ser vergado pelo onirismo, campos em
flores e beleza etérea de pacotilha são o aquecimento e a salvação possível, ao
ritmo da suavidade melodioso que hoje toca nos hipermercados. Momento em que o
sensível e o crescendo boquiaberto rima com a abertura fotográfica de imagens
congeladas da Magnum, que vão desde os sépias familiares da nossa descendência
e contentamento, de Ford (John ou Henry) até Faulkner ou similitudes confluindo
em fumos e lixo, fogo e máscaras do gás e do medo. Da sombra e do cinzel ao Photoshop.
Arco temporal e desembocar lógico para os cadáveres que nos darão de comer,
para os fornicamentos sem centelha, escravidão sem nome nem consciência. Se nos
momentos de “The Boston Strangler” a “10 Rillington Place” a cabeça doente
propagava ao meio, aqui, valha-nos Maria Santíssima, nem os mortos podem
aspirar ao eterno descanso ou a outra ascensão qualquer. Tudo a mata-cavalos e
no speed do áudio e do visual conforme? Precisamente não e tudo sequencialmente
e agrupado, puzzle em visão conjunta, para apreciarmos limpidamente e em
cristalina filigrana o êxito da expertise. E queima, queima, arde, como os mil
graus que na rua se adivinham. E só faz bem, se esta genial obra ainda puder
ser vista, será o melhor dos nossos remédios e das nossas rezas.
“Alguns me acusam de demasiado parcial e, em
tempos, na Cinemateca, houve quase uma tentativa de revolta de massas por eu
ter incluído Mandingo entre as obras-primas do cinema e defender que é obra, na
gesta sulista, a colocar acima de Gone with the Wind.” Não seria preciso João
Bénard da Costa para ajudar ao que agora tem de ser uma evidência,
principalmente depois do gato por lebre da chicoespertice bem comportadinha com
que Tarantino chegou às estatuetas e aos tops pops, inconsciência que muitos
comeram como o prato frio mais requintado da severa justiça, e o que é certo é
que gostava que J.B.C me ajudasse a disparar. “Mandingo” é já de 1975, ano de
liberdades, e como um amigo meu também me disse, uma das únicas obras sobre a
escravatura ligada à sede de superioridade desta raça nossa admissíveis na arte
cinematográfica.
A sequência introdutória de aproximação. A medo,
devagarinho como quem entra num castelo de fantasmas e de horrores daquelas
feiras geladas como incêndios. A câmara vai baixando, se abaixando, entrando em
propriedade perigosa ou manhosa, e a muito custo cai sobre aquela terra onde
vamos estar durante longo tempo demais, depois de ultrapassar grades de meter
respeito…e fica, fica lá por terras de contendas e de rasgos de humanidade às
escuras. Quando sai, o sangue ainda mais verte e amor só a caminho da morte. Tremenda
movimentação e tremente plano e conjugação clássica de planos, mas no caminho
dessa legibilidade inventada por ali perto, a parceira e tão conflituosa
parelha da imagem começa a espicaçar rumo a dialécticas desconhecidas, e vozes
que sabemos de quem garantem-nos que delas só guardam o sentimento. O
sentimento como património a priori inalienável.
A constatação da barbárie é imediata, com
garotas perfumadas para brancos usurparem e rasgarem de primeira vez, quase
bebés que curam reumatismos a lordes, ou maiorais que apalpam e olham o olho do
cú dos pretos como se fossem vacas antes de fazerem a oferta da sua glória e
imposição. Invoca-se e puxa-se Deus para o seu lado benigno e canceriza-se os
subalternos como a pior das raças e o pior do sangue que alguma vez pulsou.
Chicotadas, penetrações, lutas de morte, jogos de poder, de conflitos e de
demência e dependência sexual, escravatura também sexual próxima dos jogos
fetichistas e do castigo, e ainda estamos no campo do eufemismo. E a novidade
ou não é que Fleischer, no aparente abandono do pudor e da poderosa sugestão que
a sua posta em cena sempre primou, só vai escancarando para tornar tudo ainda
mais opaco, dúbio, ambíguo.
Quando os patrões têm medinho, há que renovar as
estratégias de ostracização à escumalha. E não os deixam ler, escrever, pensar,
viver. Como hoje os patrões da televisão e do estado tão democrático não deixam
nas horas que importam vermos as coisas que importam, para não se soltarem
personalidades singulares ou a rebelião ser entrevista. Para as contas que
importam e a sensação grave ficar perenemente estrangulada na corrente de
forças. “Mandingo” jamais passaria às nove da noite do canal da populaça. Mas o
que trama a démarche e a honra do patrão James Manson é como um volte-face dos
destinos e das distribuições lá dos altos, porque o seu grão, a sua
contribuição, vai começar por se comover com aqueles segundo os quais as suas regras
há que calcar ou perfurar. E tudo se volve e revolve entre o que não se explica
e o acordado, o tácito e o instinto, o coração e a loucura cega, surda e muda
em combate com esse saber-estar.
Se a tragédia é final e inevitável mesmo que
aquele filho bastardo de Manson seja jogada abençoada e demoníaca de um ou uns
poderosos em contendas outras (veneno de anjos ou presentes infernais, São João ou Apocalipse), todos
os limites do que não se ultrapassa há muito que se transgrediram
infinitamente, tudo é porco, e qualquer tipo de alvura seria ali conspurcada. A
certa altura esse filho bastardo que terá um filho também bastardo e entrará
assim em demente pirulito, diz à sua marioneta branca de conveniência que nem
para a cama serve, e grita-lhe que não consegue dormir quando está a pensar, o
que numa machadada o coloca ao nível de qualquer um daquele reino e de todos os
reinos.
O momento falsamente sublime em que Perry King
pede em casamento aquela noiva por momentos brilhante é definitivamente
desmascarado quando sabemos que o maravilhoso e o verdadeiro em termos de união
acontece quando este oferece os brincos à negra da sua perdição. O resto, os
resquícios, são os trabalhos ordinários e seculares da farsa do casal decente,
e os problemas e guerras conjugais só se dão com a oficiosa esposa clamante de
sexo. Essa que se vai tornando bruxa e que se deixa violar pela personagem
central do Mandingo Mede, colossal bloco de todo o descentramento moral e
sexual das personagens em causa. Na cena em que a desgrenhada bruxa se
autoconsola de chicotadas na rival que a trai pois é a rainha do seu marido, a
distância entre os dois rostos que se espraia e revela pelo enquadramento, só
pode ser a distância da nossa mascarada sociedade que dali e de outros massacres
traseiros advêm. Todo o sentido nessas cortadas expressões, contrastes e
iluminação, toda a família universal.
A cúpula interdita entre Mede e Susan, o
movimento ascendente com uma luz desnaturada e desaturada, acontece logo depois
de se ouvir o coro pela segunda vez, a terceira passará nos créditos, e de cada
vez com mais ardor. Sacudidela catártica e purificadora, e fonte jorrante de
mais veneno. Via capital do imparável rol de violência prometida, o amor com
amor se paga da fêmea ao macho em cisão, mas também ou sobretudo a mescla, o
impuro, a impotência que a bondade tem encontrado para afastar definitivamente
o seu contrário, e com isso a constatação da parte negra de cada um à espera de
ser despertada do sono eterno. Mesmo que os sorrisos de Perry king à sua
empregada tenham valido o mundo e a justificação do nosso andar nisto. E
valeram.
Tudo o mais é a incapacidade de se falar ou
escrever sobre a loucura ou lucidez que investiu sobre a cria de Mason e o
degenerou mas não o fez ou fez igual a ele. Incapacidade do cinema como do
realizador em entrar na cabeça e na complexidade terrível das pessoas para as
manietar a bel-prazer. Aconteceu como vimos, mas poderia ter acontecido
contrariamente, é certo. As certezas ficam para Triers e Hanekes canónicos,
como o racismo primário fica para os críticos que nada viveram e apelidam Hawks
e demais de racistas, sem irem pelas formas ou não saberem sequer que os actos
e seus responsáveis não são o discurso fílmico, pois neste piso de tudo foi
deixado. O discurso de “Mandingo”, como qualquer coisa que importe, é o de ver
até aonde vamos, de nos vermos, sem ter discurso nenhum. Cinematógrafo consiste
em mostrar. Mostrar. No final a câmara sai, ou foge, lá para fora como no
princípio, que agora é fim. Eterno retorno, girândola e boomerang de ida e
volta vitalícia, e contente assim. E só ficam dúvidas, perguntas. Isto de saber
do que se trata.
“Red Sonja” nasce a ferro e fogo em 1985,
penúltima longa-metragem de Fleischer e situada entre o já fabuloso “Conan the
Destroyer” com o invencível Arnold Schwarzenegger e o quase abafado, sabe-se lá
por que carga de água, “Million Dollar Mystery”. Produzido por um Dino De
Laurentiis fiel a si mesmo, dono de todas as possibilidades megalómanas e
refinadas varinhas de condão, com a mão dada por Ennio Morricone na
orquestração, é qualquer coisa muito atrás ou muito à frente, onde a cronologia
e fidelidades de catálogos pedagógicos não interessam por aí além. Vamos parar
literalmente a mundos outros e a arrepios outros. Atente-se à legenda que
funciona em cortina, que vocifera vinganças, fala em mundos selvagens e tempos
de violência passados, remotos ou futuros, em lendas e em cabelos vermelhos
incendiários de guerreiras que saberemos eternas como Arnold, que enfim, nos
prepara para guerras.
No centro de tudo, para além de Red Sonja e
kalidor feitos colossos da espécie, está um talismã que de tanto uso e abuso
tem de ser destruído antes de ele mesmo destruir a terra toda. E uma outra
princesa má, mais falsa do que o principezinho sem trono com os mesmos tiques
dos principezinhos do Mark Twain de “The Prince and the Pauper”, que a pretende
conservar para conquistar tudo o que existe e não existe, para ser a Senhora.
Sede de poder e de posse que se prepara para levar à ruina um universo tão
brilhante, febril, estonteantemente mágico e de condição tão maravilhosa e logo
horrenda e insuportavelmente feérica, mil vezes mais do que todos os Senhores
do Anéis juntos, tornando tal atitude ainda mais incompreensível do que quando
tudo era nivelado na sociedade do “tasse bem”.
Feito o roubo pela histérica próxima Rainha,
queimados os belos exemplares dessa armada formosa que acaba por gemer no fogo,
o super-homem e a super-mulher encontram-se, salvam-se, desencontram-se,
atraem-se, e vão juntos e com mais ficção em torno até às bandas da noite
eterna, que é o nome da arena da batalha final e esconderijo da joia e não
arremedo poético. Na fábula e na magia caímos e pela magia e fogosidade das
linhas que rasgam o desmedido scope, pelas transparências e ofuscação das
superfícies, vales, montanhas, neve e fogo, luta de contrários e de poesias
prometidas, a Sonja ardente diz que não quer homens mas antes prefere o
individualismo, opção tentada ou marcas do passado. Mas vai ser neste cosmo do
irreal mais do que real, um todo visceral e aglutinador como lava, que se vai
ficar novamente a saber do que trata o toque de dois corpos, a troca de fluxos
como de imperscrutável ou de alma, o sexo que parece desaparecer quanto mais
para a frente se anda. Sequela perfeita e mais pedregosa ainda do que o “Bandido”
de 1956.
O momento decisivo pode ser a salvação global ou a luta entre os dois que em situação normal, ou anormal, não caberiam no mesmo espaço nem partilhariam o mesmo tempo, o mesmo leito. Luta que é todo um manancial erótico em cenografia concordante. Na espadeirada e nas voltas, mortais, saltos, curvas e contracurvas, todas as posições e encaixes do par são testados e praticados, até à exaustão e momentâneo repouso, com esforço final e repetição incluída. Entram-se, saem-se, a arma vai ficando cada vez mais pontiaguda, convidada, resplandecente. Perpetram, penetram, rasgam. Ousadas investidas, furiosos balanços, resvalares. Coreografia orgástica que advém obviamente de Josef von Sternberg, passa por um Vittorio Cottafavi e explode aqui. E para não entrar em delírios lamentáveis juro que não me vou pronunciar sobre aqueles ecrãs adivinhadores, oráculos ou cabines expiatórias, porque outra vez não faço a mínima ideia se estamos nos campos das feitiçarias ou já do pós-plasma. Ecrãs dentro de ecrãs e toda a semiótica a reboque? A academia que se ocupe disso que o outro lado é bem melhor.
Quando o talismã verde cai ao fogo e com ele
todas as metáforas do mal e da sua perdurabilidade, se salvam crianças e os
céus continuam a soltar os seus adventos e a tocarem as suas trombetas, se a
pincelada que os envolve tanto é William Turner ruivo e dourado como
apocalíptico Rembrandt como a Bíblia Sagrada, se parece que a marcha da
juventude e do saber pode continuar a desbravar caminhos e ousadias, a moldura
final, esse plano mais médio ou menos médio sem linguagem em que Sonja e
Kalidor se agridem para se beijarem e sorrirem é talvez a chegada e fulcro de
tanto caminhar e, acima de tudo, de tamanho cinzelamento pelo planeta e pelos
géneros, cinema e vida. A luta para chegar ao amor e todo o vice-versa
reservado, sem resolução. Fleischer foi aos abismos e aos eus confins, do
cinema e da espécie, e voltou, para nos dar testemunho e fazer ver, acreditar.
Cineasta do sagrado que acredita no que filma e sabe que todas as coisas têm
razão de ser. Assim as correspondências entre autêntico e escavado, vacilante, aparência,
real. E que faz tudo parte da mesma experiência. Coisa total cada vez mais
perdida nos silogismos e na teoria. Transfiguração, prática, superação, paixão.