domingo, 9 de fevereiro de 2014

 
 
Maquinismos gélidos como só eles, ferro, cabos, torres; cheiro a seco, cilindros, rodas, motores, cronómetros; uma pequena criatura no meio, minúscula. E estouram as nuvens, com os raios, a precipitação e o ataque. É o que acontece na primeira meia dúzia de segundos em “Manpower”, o caminho da poderosa invenção Terrena até ao domínio dos Deuses. O combate continua, vomitam-se faíscas descarregadas do céu que nos ofuscam, interrompe-se profanações de corpos humanos, torrentes de águas marítimas aliam-se às águas da chuva, falésias resvalam como castelos de cartas de um magnata caído em desgraça; o nosso auge tecnológico humilhado e clama-se socorro às autoridades, como no antigamente se clamava para todos os Santos e para Santa Bárbara em particular. Deste lado do tempo e do lugar já não planamos pela limpidez mas sim escorregámos na sujidade, no ruído, na completa descarga eléctrica que o filme de Walsh produz. Um minuto e muito pouco, a planos de dois e três segundos ou menos, que se rasgam, chocam, interlaçam. Planos imensamente mais fulminantes e breves do que os de qualquer jovem MTV esfomeada, mas que largam um rasto inapagável. Planos de dois ou três segundos com a mesma totalidade do inicial de “Saskatchewan”, só que se esfumam, indelevelmente manchados. Flashes subliminais, clarões ameaçadores, atmosfera fosca que rara luminosidade deixa passar, e por aqui toda a mestria do cineasta – na brevidade de cada plano, o máximo de intensidade, fulgor, carga; paralelas, obliquas, explosões aleatórias, uma batalha impossível entre a selvagem força da natureza e a ordenação formal das orgulhosas sociedades modernas. Em intuição aguçada e em ascetismo puramente materialista iremos pairar, com os problemas e misérias dos pés assentes no chão e o salto no escuro dos medos, toda a tensão em ebulição.
 
Edward G. Robinson e George Raft estão umbilicalmente ligados numa amizade sem preço, e vagueiam pela vida à procura de rumo como vagueiam nos mais recônditos cimos até que caiam electrocutados ou sem rede, super-heróis das companhias que fornecem luz às casas e outras coisas reconfortantes. Homens de poder, energia, borracha, sempre a afrontarem o movimento imemorial da criação com o seu movimento genial, inventivo, novo, para o resultado ser eternamente o mesmo, o nosso rebaixamento, tortura, colocação no devido lugar. Mas este par jamais se trairá ou jogará nos mesquinhos jogos e passatempos das horas vagas; em causa estão homens que obrigatoriamente e normalmente se passam dos carretos aparentemente sem causa e em hiatos insignificantes, formas de compensação de quem toca demasiadas vezes a morte como se não fosse nada. E do nada, sem nunca o terem esperado, aparece Marlene Dietrich e o invólucro loiro e luminoso como peçonha, dilúvio ou outro tipo de magnetismo tão letal como, e lentamente os vai começar a afogar ou a queimar. A cena da sua aparição é sintomática como uma sentença; está ela a sair da cadeia, a ignorar o Pai e, no momento em que pede um cigarro, o plano-médio já está em Raft, que tem a chama com ele; que Robinson se perca inocentemente de amores por ela, que se case e ignore as instruções do seu ofício, são apenas os elãs de uma tragédia ali prometida como destino ou crueldade do acaso. O amor e o poder da carne ou as ensurdecedoras tempestades?
 
A encenação vai ganhando ainda outra explanação e ritmo, Walsh como noutras vezes enquadra tudo de frente e monta tudo em lógicas dramatúrgicas implacáveis, podem ser papéis, cartas, jornais, datas, o que for preciso irromper no ecrã, com a devida escala; Ritmos e explanações que numa gravidade surda, mesmo nos trovões e nas bocas dos infernos, preparam o leito final onde os três se vão encontrar em composição sacra do nacimento do Salvador, nascendo outro tipo de amor asseverado pela morte; foram precisas muitas coordenadas estranhas e partidas dos sentimentos se combinarem para esses dois amados terem deixado que as loucuras momentâneas normais a que estavam sujeitos tivessem funcionado entre os dois no mais alto grau. Toma conta dela, diz Robinson para Raft imediatamente antes do seu apagão final, depois a caravana parte e outro par fica efectivamente. Cinema, máquina entre as luzes e as sombras, ilusória cartografia das paixões, sempre a vaguear entre espectros. Das várias alianças e discórdias existentes em “Manpower”, a mais capital é com o que está para lá do nosso cerrar de olhos. O escuro, que ali teve de ser a única luz em que acreditar.

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