terça-feira, 11 de fevereiro de 2014



“The Bravados” é a história da vingança de um homem que perdeu o que mais amou, tornada questão imperdoável; mas sobretudo o caminho espinhoso que vai da perdição até ao ressurgimento, da morte em vida ao acreditar. Gregory Peck é esse anjo enegrecido caído em desgraça que tem de olhar olhos nos olhos os supostos assassinos da sua mulher, que vai até ao fim do mundo para lhes pagar com a mesma moeda, se equivoca muito humanamente e, nesse entretanto penoso, vê de novo o caminho iluminado e a queda das sombras, opondo a fronha da morte à questão de fé. Tal como em “Jesse James” ou mais tarde “David and Bathsheba”, Henry King trabalha ainda nas temperaturas agrestes e despojadas (e como eram verdadeiros os fantasiosos lustres de um “The Black Swan” até tudo se rasgar…), em correrias afagadas pela determinação e certeza absoluta do que está em causa, carregado de latências que conferem ao todo uma densidade psicológica perto da tortura.

Uma caçada, um percurso, uma busca, com paragem inigualável nesse lugar que será o altar de todas as purificações. Ou de todas as ambiguidades. O essencial passa-se então na noite mais longa do filme. Essa onde se passa tudo, toda a gama que vai do mais visível ao mais opaco. Noite cinematograficamente americana, que então subverte a luz diurna, pintada em transparências que cedem lugar a finos ventos líricos, à dureza das emoções cruas, mas urdida em moldes litúrgicos que tudo transfiguram. Na presença e testemunha de infantes coros orquestradores, Santos de menino ao colo, intrincadas devoções, correrias e abandonos silenciosos, traições, artimanhas, conspirações; e selamentos eternos ainda sem se saber, pedidos de salvamento e predisposição infinita, confiança; Sangue derramado e corpo de Deus; e esse discurso do Padre em reconhecimento de Santo António e em vésperas de enforcamentos que trata de coisas assim: caiu uma sombra, a sombra da forca que se ergue até na noite; a morte inadiável, a lei e César; mas todos são criaturas de Deus, passíveis da mesma misericórdia, das mesmas orações; execuções em Gólgota e perdões supremos; Para todos um novo dia, o mundo gira sempre uma volta, isto já é meu, mas para aqueles quatro da cela cairá a meia-noite das suas vidas, isto a escritura dos juízes.

Discurso que nunca é sermão, muito menos coação, em todo o caso a grandeza e irradiação daquele precioso servo de Deus, bem como a personalidade e estoicismo de Peck nada disso permitiria. Quem não pede, não ouve Deus, diz uma antiquíssima crença do povo. Neste caso, o Deus que interessa é o resgate do lado original e transparente calcinado pela tragédia. E ali aqueles dois monstros sensíveis entendem-se, falam-se, unem-se, não literalmente mas pelos campos/contracampos unos e miraculosos do acreditar e do ofício e da moral do cineasta. Último olhar trocado e volta o coro, algo já mudou, muito já mudou; crimes e transformações na noite mais longa. Sacrilégios e fidelidades. Manchas e limpeza. Veja-se o assombroso e assombrado quadro da mobilização geral de Arriba, esse ciclone visto da janela do homem que dorme para melhor se preparar, que só se pode ligar com o plano mais sintomático e abissal deste todo estilhaçado e compacto, esse quando Peck trava à porta da catedral com a Dama que fez questão em acompanhar, logo depois de lhe confessar o inconfessável, sendo a porta de entrada que os espera um abismo para as mais perenes dúvidas.

Abalámos dali, daquela concentração paroxística, para extensas e altíssimas montanhas, ranchos com livres cavalos, Pais que pedem desculpas aos filhos e recuperam o essencial; outro tipo de sangue derramado, danações a frio, arrependimentos, equívocos sepulcrais, remissões. Em certo lugar, a certa hora e visto o que nunca se deve ver, fica-se cego. Peck não é só ele mesmo na sua singularidade, e é um dos papéis da vida de um actor subtilíssimo quando bem acompanhado (nos seus olhos feridos e molhados toda a medonha elipse em permanente debate), mas milhões a quem a hora da meia-noite também caiu não só metaforicamente. Neste conto ou parábola de horas terríveis, do lobo ou do eclipse ou apocalipse, ele é, sem vergonha da extrema religiosidade sem freios deste monumento catártico (religioso não só pelo catolicismo, pelos símbolos ou palavras, mas muito esteticamente, com o esplendor dos diluídos púrpuras, dos azuis prateados que cinzelam halos, até aos encarnados e dourados que protegem a afecção redentora), a ovelha que estava perdida e regressou. No sentido lato, universal, radical, que regressou a si e ao traçado que instaura o reencontro do homem consigo mesmo (João César Monteiro dixit). Nada maior se pode almejar, no cinema e na vida.

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