quinta-feira, 13 de março de 2014

 
 
 
Henry King talvez seja, como afirma Jacques Lourcelles, o mais reservado, o mais apagado dos grandes cineastas americanos de um certo tempo. Sem pretensão autorística mas antes privilegiando o que narra e a matéria que o possibilita, como o padeiro genuíno que apenas quer fazer sempre o mesmo pão do dia-a-dia, sem inventar ou inovar o que está absolutamente resolvido, deve ser isto. Mesmo que o seja, e num grupo onde estão Dwan, DeMille, Ford e Walsh eu vacilaria sempre, é igualmente um obcecado sem volta a dar. Obcecado pelos altos, pelos Céus, pelas suas transparências e brilhos paroxísticos, pelos Cordeiros de Deus ou pelos tipos comuns com a sua fé e transcendência em primeiro lugar. Seja o sétimo Céu com a licença de Frank Borzage, onde um homem e uma mulher fazem cair toda a lógica da física e mesmo do milagre para transporem isso para o plano do indizível e da demência amorosa; as visões subjectivas e assim reais pelo sem margens-para-dúvidas do anjo da terra de “The Song of Bernadette”; a troca de forças megalómanas e correspondências interiores entre a plena divindade e a fraqueza da carne no “David and Bathsheba”; ou, para acabar o inacabável, esse planalto de ventos, suaves verdes e sombras de árvores que será para sempre o Paraíso que a morte não venceu, onde a borboleta que tudo liga e faz reviver iniciará novamente o amor, perco-me ainda por “Love Is a Many-Splendored Thing”.
 
Não é para poder estar tanto tempo literalmente no Céu, envolto nele ou o mais perto dele possível, que King teria de fazer o chamado filme de aviação. E como já disse e se fica a saber melhor vendo ainda outras obras, esse, o inclassificável, impassível e visceral firmamento, o desmedido, o infinito carregado do Nada e carregado de Deus, foi se calhar mais o centro e fulcro cá em terra do que no seminal “Twelve O'Clock High”. Mas a questão aqui, e por isso a vertigem, é que no outro interesse partilhado com os grandes cineastas citados e com mais alguns – Griffith, Vidor, Hawks, para me calar imediatamente - ou seja, a força dos Homens, ou para me socorrer de diálogos, o saber quanto um homem pode aguentar, quanto se pode superar, ultrapassar. Mais gravemente, até à exaustão: Parem de fazer planos, esqueçam voltar a casa. Considerem-se mortos. Quando aceitarem essa ideia, não será tão difícil. Quanto pode o Homem não dormir, manter-se em pé, ir à luta e não tombar definitivamente. Acima de tudo, e é aqui que entra o risco e a complexidade do General de Gregory Peck, quanto pode acreditar nele próprio. General que puxa por eles, arrisca tudo, inclusive o ódio supremo e a morte irreversível, as cobardias e o heroísmo vazio, para nunca cair na intrujice ou no romantismo balofo, mas para, como o líder dos Marauders de Samuel Fuller, demonstrar que por algumas coisas os mortos caminham. General com asas que os vai entender depois de também levar cargas de porrada e humilhações outras, que voa com eles, chora com eles, dilui-se neles, paralisa-se pela visão demasiado plausível do falhanço dos filhos, acorda quando eles o acordam, e dorme na grandeza partilhada. Ele que não foi na missão capital mas que estava em cada canto das malditas caranguejolas.
 
A superação. Comum aos grandes, claro. É por ver essa imensidão lá em cima e lá de cima. Ver quanto no incomensurável a nossa pequenez de tamanho se impõe. Ver a terra de lá e a destruição. Mortos e mais mortos, mortos sem conta a explodirem nas máquinas voadoras, esse orgulho nosso, e a busca do motivo. A superação, a elevação, a suspensão desafiada aos mitos; para o pior dos males possíveis ou mesmo para a salvação, e o absurdo. A plenitude e a concentração total de força bruta e de alma direcionada à guerra, ao caos, ao desentendimento. Fazendo-nos ver que sem isso não conseguimos estar completos. Henry King, o viciado nos Céus, vai misturar o que filmou com o que outros filmaram. A chamada ficção com a chamada realidade, com o documento. Introduzindo outras questões. Como seríamos, nós, a nossa cultura, sociedade, imaginário, e como seria também o cinema, o espéctaculo, a história de um e do outro, a moral e todas as reflexões sem as tais imagens feitas por não artistas? Essas descarnadas imagens do ponto de vista dos homens para queimar, dos dispensáveis. Às vezes fica-se a pensar que é para se ter catarses, experiências registadas ou memórias mais duradouras e insuportáveis que tais foram provocadas. Mas por amor a ele, ainda ao Céu, e a nós, King abre e fecha o filme com um regresso a casa, à casa daquela ser, à de cada um, para nos fazer ver a união e a família. A união e a família, tal e qual como Nicholas Ray também culminou em “We Can't Go Home Again”: “Take care of each other. It´s your only chance of survival. All the rest is vanity”. Together. Together. Contra o intolerável e dissimulado veneno da grande mentira que mata. É a bênção recíproca e a máxima radicalidade. A derradeira coragem.
 
Um Cineasta da eternidade, chama-se assim o artigo de Lourcelles que cito. Ámen.

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