Mas há esperança para o futuro. Quando o mundo
estiver preparado para uma nova e melhor vida. Tudo isto se irá um dia
passar...no bom tempo de Deus. São os derradeiros brados para nenhures das “20000
Leagues Under the Sea” pintadas secretamente e em convulsão por Richard
Fleischer em 1954. Nunca apenas Júlio Verne em transposição imagética mas antes
pura poesia em andamento, a desenrolar-se de boca aberta pelas possibilidades
inexploradas das coisas e das suas cambiantes, massa aquosa que transporta em
si a harmonia da rima e o seu contraste terrível; pura poesia atormentada pelo
mal que jorra constantemente sem trégua à vista, pura poesia elevada pelas cintilações
ontológicas inapagáveis; sem retórica ou sublinhado que não a livre beleza
imanente. Não poesia na prosa, fogachos a trucidar uma narrativa clássica, mas
sim a verdade dela, a sua chaga escancarada, desnudada, sangue a correr e esse
milagre nunca percebido. Água, sangue, coisas que correm consubstanciadas. A
trazerem ao de cima os massacres calados pela eternidade tão velha, a
cavalgante sede destruidora, a culpa indesculpável; e o humanismo e a
contradição a surgirem como possível única redenção. É a guerra, não
antecipadora da primeira ou da segunda de um século vinte, mas essa destinada
enquanto razão houver.
O Capitão Nemo sabe que o poder do ódio pode ser
tão forte como o do amor. Mataram-lhe mulher e filha e entregou-se ao génio. Ao
mais puro génio que só tem por finalidade e objecto o mais perfeito mal. Tombou
nos visionarismos e afogou-se na totalidade. Na sua ansia cega de terminar a
morte só responde com morte. A sua libertação pelo privilégio impar dos fundos
dos fundos das águas é a sua condenação e a de todos. Os tesouros e o ouro da
danação terrestre já não fazem ali sentido. Paradoxos aflitos que remetem para
todos os holocaustos recorrentes e sem rasto, na ponta da língua e cifrados na
ciência ou na computação, onde o crescimento para Deus prepara o embate impraticável.
Esperma de baleia à sobremesa, cobra marinha
melhor do que carne de carneiro, charutos de algas, os mortos que ainda se continuam a enterrar
solenemente nas profundezas das profundezas… monstros e mundos da maravilha
e do terror onde se pode viver quando se esquece e mata e humilha o prisioneiro
palco da nascença, com todas as latitudes e infinitudes intactas e fulgurantes,
nada a ver com subsistência mas antes com avanço e potencial nunca sonhado
pelas mentes fechadas no seguro chão. Pensava-se que nas águas se escondia a
maior e mais perigosa das criaturas marinhas e ainda a inteligência e
estratégia oposta. Nemo a crescer para Deus. E em contragosto o marinheiro e
caçador de baleias bêbado de Kirk Douglas, que só tem a carne feminina e o
álcool na cabeça e na ambição, a mais reconhecível das nossas criaturas e Herói
ou Carrasco máximo quanto tudo parece ficar na costumeira paz. Inventor que
junta à música de toda esta pintura a música de guitarras desconhecidas.
Costela Fordiana que impõe o baile à violência, que sente o auge desses
movimentos sem lhe impor moral. Muitos não pararam de avisar que é talvez a paz
que se seguirá ao The End que provoca o caos. Essa da ilusão e da repetição que
antecede o sono e a paralisia, a antecâmara da morte.
Não há fim do beco e luz, tudo se complexifica
na máxima simplicidade, sabemos do que se trata e sabemos que a solução não se deixa
agarrar. Compreende-se perfeitamente o que se passou e a irresolução perene. Os
grandes planos de Nemo dão-lhe a razão tirada pelas suas acções. De monstro a
criança indefesa e a monstro. Quando o marinheiro bêbado o salva e de seguida
se embebeda para esquecer essa infâmia, também fica sem o tapete do bem e do
mal resolvido. A chave ou o pistão que salta será algo muito, muito maior,
inultrapassável, invisível, esquivo aos correntes olhos, irrevelável,
inviolável, aquele ponto onde sempre se tenta chegar, sempre, em milénios e
milénios perpétuos, e que cada vez foge mais, mas comanda e seduz. A poesia,
precisamente, fonte e confluimento de todas as forças, crenças, direcções, onde
nada pode ser descurado na perseguição do absoluto. Perseguição, apenas
perseguição. Absoluto, absoluto, nome para todas as quedas. Em Hollywood e com
a encenação a carburar sem freios, raro tanto se entreviu. Fleischer
absolutamente aberto e absolutamente em sentido. Vigilante e em arrepio, por aí
toda a descarga suave e maléfica desta sinfonia pelo ordinário.
O maior dos oceanos não é o venenoso mas o que
separa um Cristão de um Pagão. As mãos podem cruzá-lo facilmente. Se estas se
tocam também as almas se tocam. E a carne. Quem assim se debate são rainhas e
herdeiros de tempos longínquos demais, suplicando pela fusão. Homens e mulheres
imemoriais. Trabalhos imemoriais. “The Vikings” é já de 1958, auge de outra ou
da mesma poesia que no mais irreconciliável e cavo não desdenha a pujança dos
seres e os esplendores da sua envolvência, jamais fendendo, jamais traindo,
jamais rebaixando. Toda a trama e toda a questão, assim todos os sentimentos,
são mais velhos ainda, velhos como o respirar, por isso iguais aos da vida e da
ficção deste lado do contentamento.
Tem que ver com Irmãos de sangue separados na
vida e reconciliados na morte. Junções prometidas como amanhãs de sempre.
Bruxarias ancestrais. Se nos tempos e lugares desses povos a violência ainda
não teve rival, todo esse vendaval e universo parece bem mais habitável, justo
e honrado do que qualquer civilização, sistema político, organização moderna,
ou seja o que mais for de sentido de decência e cavalheirismo. Ali entregam-se
espadas e soltam-se amarras antes da morte do inimigo, para este ter paz e
encontrar o seu Deus, como gostaríamos que nos fizessem a nós mesmos.
Cumprem-se promessas mesmo que a certo momento inconcebíveis. Abre-se o jogo e
a tal da ambiguidade e das meias-verdades em voga não entram. Visão reconfortável
em comparação com o último chegar da grande panorâmica do tempo.
Claro que os corpos se rasgam em grafismo e fealdade
aterradora, o sangue afugenta-se tristemente, a vingança volve-se visita fatal.
Mas nesse ressoar de suaves trombetas dos anjos sem apocalipse que fazem correr
homens, mulheres e crianças para a felicidade dos novos mundos, pelos ventos
místicos e mágicos e entre as neblinas da perdição navegante que evaporam o impressionismo
e o fantástico rumo à superior abstração da mais pura beleza inominável com o
horror casada, assoma a pulsão original do homem e o seu natural instinto
justiceiro. Antes da degradação pela aparência, precisamente. O choque final é
sintomático, revelador e cheio de saudade – o embate escrito em rodopios ao céu
direcionados, a presença inteira da mulher, a testemunha das forças telúricas expectantes.
E o funeral a suave fogo, chamas bem-aventuradas, devires plenos. Dovjenko nas Fiordes, os planos e a matéria devotamente
ungidos, num dos cimos do seu lado da sagração. Que tanto ainda mais rima com
os fecundos verdes das planícies e árvores invencíveis, a agrura também tão
velha da pedra, os brancos espumantes e jorrantes das águas e das cataratas
procriadoras, prenhas mesmo, o olhar vidrado e rosto esfaqueado do mano
hesitante como o do conto de Lucas. Tudo tão velho, velho, cansado, o ressurgir
de novo, o presente.
As veias que se esticam até aos limites e o suor
que seca o corpo que resiste a tombar, acordado com a pintura dos sentimentos,
a rescendência dramatúrgica, a alma plasmada, o tremor universal. O selvagem a
viver com o artifício mais real do que o convencionado real. Lembra-me “Acto de
primavera”, lembra-me “Le legioni di Cleopatra”. Foi preciso ir tão atrás para
se perceber como se está tão na frente. E, numa oposição tão descabida e bruta,
esse pesar da constatação limpa demais. A derradeira cisão, o buraco desmedido.
Outra musicalidade, esse som dos círculos para sempre.
Assim como assim, não se deve ignorar o encontro
de Fleischer com Mark Twain, no qual um Príncipe, um pobre e um viandante se
colocam em causa para colocar tudo o mais em causa. As fundações gerais, as
aparências locais, os espelhos literais e o poder tentadoramente ilusório do
cinema e da efabulação. “Crossed Swords”, assim foi cortantemente rebatizada a
parábola que para tanto mundo serve; e assim a obra do cineasta que foi
vigorosamente a todas ainda não se podia abrir ao demencial do que seria “Red
Sonja” ou o seu “Conan”, pois a verdadeira demência estava na realidade mais
rasteira. Ou, para não nos perdermos tanto, na realidade edificada pelos
sobre-humanos. Não se pode negar as origens, é o que sobrevém na cena da
reposição final, logo tudo o que se perdeu da semelhança original. O suposto
Pobre a devorar com as manápulas o fino manjar palaciano, as regras de etiqueta
a caírem e toda a sua entourage feliz da vida nessa anarquia; o suposto Príncipe
a espalhar altivez humilde pelas pocilgas, confundindo todos os patamares e
todas as lógicas. O Viandante, esse meio fanfarrão meio revolucionário como
todos os que valem a pena, a planar por onde o perigo der de si. E apetece
recontar a cena mais bela, a mais significativa, para reverberar só um
pouquinho mais: no nevoeiro espesso à beira da encantatória lagoa e por entre
viçosa verdura encontra-se o Rei, ou o Pobre?, e o Viandante, ou um seu gêmeo,
e não acontece milagre nenhum. Olham-se na miséria e na fragilidade, e no
prodígio da aventura de viver, e acreditam-se. Choram-se, riem-se e abraçam-se.
E a natureza com eles. Treme tudo, por dentro. Muda tudo. Sem milagres, mas no
auge da comoção comum. Poesia, romantismo, catarse, o turbilhão do cosmos a
encontrar-se. E os três a unirem-se num só. O Príncipe, o Pobre, o Viandante.
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