quarta-feira, 20 de agosto de 2014




Num tempo em que o “cinéfilo” parece ter todas as cartas na mão e tantas outras na manga – todos os filmes do mundo e todos os livros do mundo ao alcance de um click – o termo, ou melhor, o modo de vida, encontra-se cada vez mais viciado, falso e, o pior de tudo, cobarde. Inaceitável que tal demanda, doença, necrofilia ou salvação, obsessão ou simplesmente certeza quotidiana que não precisa ser embandeirada – assim mesmo muito próxima da religião e do intimismo secreto e inabalável – se arme minuto a minuto aos cucos no tal do facebook e redes sociais (nojento paradoxo) adjacentes que parecem estar a substituir a lucidez, a maturação, as vias-sacras que no passado o verdadeiro cinéfilo, como o verdadeiro ser humano, tinham de cruzar para uma ou outra coisa fazer algum sentido. De facto, basta um comentariozinho de uma mente sumarenta ou sumamente fascinada que acabou de sacar todas as coisas de Jacques Tourneur em torrent (não em torrente) e numa qualidade cada vez mais virtual, acompanhado pelo bónus do livro do Chris Fujiwara digitalizado, para todos os dourados e muitooo “obscuros” epítetos” de Tourneurianismo (ou coisa que valha) serem lançados à incomensurável teia sem apelo nem agravo, tornando-se o tal “autor” num Autor e a sua teoria absoluta pois com conhecimento de causa abençoada a muito espectáculo. Seguidamente é apreciar os seguidores a espetarem o seu “like” da confirmação e do consenso – que terminará impreterivelmente com o like do já autor original para tudo ficar no tal limbo do simulacro, do não lugar e da não memória e a festa ser completa, volvendo-se a merdiática plataforma – upsss que já me fugiu a caneta para a mesma sanita do infame Vitor Silva Tavares – em altar dos novos papas e aventureiros da poltrona confortável, sofistas de chiqueiro no grau zero. E valeria a pena continuar tão apetitosa enumeração, tipo: a partilha de “publicações” como palmadinhas nas costas avant-garde, os pedidos de amizade verdadeiramente do peito, os maravilhosos tributos de aniversário, de génio, etc. De entre mortos e feridos – todos os mil que esse rebanho (cópias cada vez mais próximas das seitas infames e bem vistas as coisas bem comportadinhas como marias vão com as outras do coro) ataca e os outros mil que se estão a borrifar e que muitas vezes parecem mais honestos - nem uma voz deve chegar ao céu, seja de burro seja de santo. Zero de espírito de grupo - meses para se combinar um café, medo do cara a cara, o mudar de passeio quando se substitui o teclado pelo corpo-a-corpo, o papaguear fácil e a boleia ungida, e a lista de acobardamento seria interminável… - como zero de espírito de comunidade (comum, bela sonoridade), família ou mesmo proveitosa guerrilha, essa que daria resultados se ao invés de tanta garganta existissem coisas práticas, objectos pelos quais depois se pudessem lutar, dar o sangue por, contrapor, assumir verticalmente – isto de corpo inteiro, e não com as meias tintas e com a inveja que existe quando certos fogachos animadores realmente emergem. Quando isso acontece e vale a pena dar a cara - e acontece tão raramente - os tais que pelas nets tanto palraram depois escondem-se. E os “likes” continuam a saltar. 

Cinefilia é uma coisa que hoje – e agora assumindo o escatologismo que se quiser – se encontra na sanita sem autoclismo que leve tal degredo. É por demais simples e impressionista arrear sobre as sombras, os tormentos e os suores de “I Walked With a Zombie”, sacar uma frase vencedora escondida de um artigo que alguém “subiu” no site da moda, impor ao vencedor de Cannes ou Locarno (quanto tempo até um “nosso” herói ser um porco por lhe terem dado um prémio?) os mestres de outrora. Será mais difícil gostar – mas mais dias menos dia uma das revistas internacionais dos escaparates chiques dedica-lhe um número em que se analisa tudo o que se pode analisar com peúgas quentes e charuto cubano - ou digerir alguns filmes de um Martin Ritt ou talvez - para não me chamarem velhadas – de Wang Bing, modos, antes de filmes, de trabalho mesmo, trabalho trabalho, coisa de trolhas e pedreiros, patriarcas e aldeões imemoriais, monges e samurais bichos-do-mato, andarilhos e frequentadores de espaços ignominies fora-de-horas, onde não só as personagens a esses se equiparam, como o trabalho dos senhores directores e o seu tempo (nada) livre é da mesma medida e moral dos que pegam em gamelas, massa, cimento, ditos ancestrais e seguros como os pilares da sabedoria, gastam sola ou epiderme, suam até à ponta dos pés e se refrigeram e protegem a cevada de cerveja e palha de cigarros. Aiii a violência, as raparigas sensuais malucas, a fantasmagoria, o misticismo dos tipos da RKO…aii o plano fixo, a recordação e rememoração Hollywoodiana, o tratamento do tempo e da palavra do Straubiano que merecia os prémios e não os tem e só eu sei que os deveria de ter…Fossem falar disso aos Jacques ou aos Ottos e eles imediatamente lançariam os feitiços e as demências impregnadas nos seus contos contra tão empertigados interlocutores.

Perdeu-se o que importava, o que importa, e o que é a cinefilia, a arte de amar, de viver, de ir à luta e aos beijos, Jean Douchet com cara de mau e absolutamente disponível – que nada tem a ver com vaidade, conforto ou consenso, nem mesmo com o usar de teclado diariamente não como quem defeca (causa natural e logo necessária) sim apenas rotina dos que têm medo de flutuações e fossas do ego - mas antes com generosidade, paixão individual que a não esconde dos seus, sem receio de se bater e disputar com quem ama e com o que ama, actividade diária no duro da mesma maneira que Víctor Erice sempre será um dos maiores Homens do cinema sem mais nada ter de provar, um posicionamento e uma atitude que o faz ter razão sem precisar de diarreias ou de aparecer diariamente nas manchetes facebookeiras mais potentes que revistas cor-de-rosa. Finalmente para dizer que nada contra essas ferramentas, de certeza que há quem as use bem e há tudo o que eu desconheço, sim contra a desumanização e o facilitismo e a intrujice. É-se porque se escolhe, porque só se pode ser assim, porque se tem uma pancada, e o bem e o mal, o reconhecimento do certo e do errado, do que cheira mal e bem, da beleza e da miséria, revela-se ao longe - aquele está a imitar Preminger e nada tem a dizer…mas olha, aquele com nada se parece, mas faz-me lembrar John Ford sei lá como… 


E por falar em Otto Preminger, há tanto filme seu que nos diz disto melhor que mil palavras (acto de contrição) …que retira o tapete aos conceitos, aos clichés, ao plano sequência como aos transes ou hipnotismos ou Freud ou… Por colheitas e ressacas destas, “Fallen Angel”. Tentando resumir factualmente (e assumindo o falhanço): um fracassado – o bebedolas de Dana Andrews – andou por muitas outras bandas a tentar ser feliz e a tentar a sua sorte (ou o seu azar), mas, o acaso, que cola melhor com esta realidade e com estes cuspes do que a predestinação do “film noir”, fê-lo desembarcar num esquecido vilarejo esmagado entre a Cidade dos Anjos e São Francisco. Vai tomar o trago que o seu dólar permite e derrubasse-lhe às vistas e ao resto como as bonecas partidas uma perdida da vida ou da morte. Só que essa boneca, esse anjo ou esse demónio dos desejos molhados, detém as carnes e a aura de Linda Darnell e já se sabe que é impossível a coisa acabar em bons tons. Dana, que no entretanto se entretém em vigarices honestas para adiar a treva prometida, ajoelha-se aos pés de Linda e desde logo lhe quer beijar e possuir tudo. Sopra-lhe promessas de lares e alianças, perde o estoicismo, a retórica e as firmezas dos vagabundos que importam, compromete-se, esquece qualquer estribeira, alucina, está pronto para apostar tudo num golpe sem considerações. E, noutro entretanto tão inexplicável como os demais, desposa-se com uma loira púdica de pianos e canções de paróquia, tenta amizade e reconciliação com o futuro. Encalacrado entre a voluptuosa que se ataria – ou mataria – com o primeiro que lhe apresentasse garantias concretas - essa que mantinha aninhados e babados como cães outros tantos em umbrais do inferno - e a sua oposta que vai perdendo a alvura, a ambiguidade penetra ou jorra de todos e nada é seguro, numa convergência que tudo parece sugar. A coisa começa a ficar cada vez mais negra - ou cada vez mais metálica nesse preto-e-branco que funde horizontes, vontades, linhas e vãos de escada até à uniformização terrível para o derretimento, daí que nunca aja esses planos onde a montagem está inerente a eles simplesmente para elogios caheristas mas sim (ou não) para contemplar fundos – e a malvada da cabeça mistura tudo. Dana já não sabe do que gosta ou de quem gosta, se de Linda, da púdica transformada, do dinheiro ou simplesmente de bailar com a morte. Cai a tragédia pois parece finalmente começar a perceber um bocadinho do que trata a Vida e o Amor. Depois, o fado destes e de sempre, mortes e suicídios e apagamentos para a retaguarda dos holofotes, para o hiato fechar de maneira imprevisível. Inverosímil, dirão os doutores de argumento ou os peritos do cânone.

Mas o que importa aqui é que tudo, abençoadamente ou amaldiçoadamente, está para além, para aquém, ou fora desta maldita órbita, de qualquer congruência, da mesma forma que pulveriza qualquer “cinefiliazinha”, Premingerianismo ou amparo no outro com certeza magnifico compêndio de Fujiwara ou mesmo de Jean-Claude Biette ou de quem for. Nem mesmo as genuínas análises críticas e objectivas que já fazem saudade (os curtos e grossos socos de Jacques Lourcelles) se aguentam na ponta da língua do twitteiro. Se se quer falar disto há que falar por si e com conhecimento de causa, talvez pensando nas urgências dos hospitais, no cheiro a podre ou como se colheu o milho a quarenta graus sem sombra, partilhar experiência e abrir-se sem os truques que tanto profanam o chamado objecto amado. Ou então simplesmente do que se viu na tela, sem padres, sem bênção, medo do ridículo, sem a outra rede fundamental da respeitabilidade, de cabeça limpa e flagelado. Nada é seguro em filmes destes e quem acreditar em Happy Endings está realmente no caminho para a felicidade (zinha). Outro tipo de resumo, muito mais fiel e aceitando a porrada de Harry Kleiner ou de Marty Holland: “doentes mentais”, perdidos da vida, obcecados, suicidários (ou Aventureiros com letra maiúscula), corpos e percursos sem cabo nem rabo, mentes que não percebem como o mundo e a máquina funciona. E não aos comandos disto como um lorde, mas antes partilhando do mesmo abismo, Otto Preminger, que jamais julgará, jamais culpará por exemplo Dana ou os outros cães do mesmo osso pelo destino tão triste de Linda, antes indo no vendaval e deixando-se disponível para ele e os seus entreverem no turbilhão total a luz essencial, essa que pode redimir num ápice, êxtase merecido à espera de qualquer alma. Ninguém tem culpa. Enfermidades dos que não encarreiraram. 


A loucura da vida, que olhada de frente e sem os filtros que hoje nos querem tornar nos mais libertários e radicais seres à face da terra – faces, twitter, instagram, flickr, lux, parlamento, pingo doce – nos surge no grau mais sensível onde se sentem realmente sentimentos (riam-se). Sem tombar nas lengalengas tão imediatas e tão pueris da caixa de comentários, amando (riam-se à vontade) até à exaustão. Não é o destino, é a ambição ou promessa original que vale a pena tentar, nem que seja somente tentar, resgatar.

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