sábado, 9 de agosto de 2014

 
 
Pelos tempos de crises e depressões dá ao realizador John Lloyd Sullivan um ataque furibundo de consciência, e decide retirar-se das comédias e dos musicais coloridos para ir ao encontro da realidade desmaquilhada, do social, do documentário. E diz tais coisas convictamente e com uma raiva no rosto que até os bosses ficam praticamente convencidos, visto que nem admite que digam mal do Frank Capra dos zés-ninguéns e decide meter-se ao caminho todo esfarrapado e com uns tostões furados na algibeira. Mas é pouco depois que o seu literato garçon lhe diz que não gosta de caricaturas nem falsidades, informando-o polidamente que o que ele pretende fazer é a enésima variação do burguês que pensa que os pobres são infelizes por serem pobres… e que não é nada disso, fornecendo-lhe exemplos de felicidades para eles inconcebíveis que lhe ficam a bambolear na cabeça. Mas o raio do realizador atraente e atractivo de Joel McCrea é teimoso e lá vai, não gastando muito a descobrir que tais pretensões o trazem sempre de volta ao seu berço dourado com ainda mais clichés para o papel e para a câmara. É num desses regressos que apanha a loira platinada que lhe irá dar toneladas de humildade, criatura que já se estando a borrifar para Hollywood e para as estrelas dos seus sonhos, desse modo preferindo trasvestir-se numa Sylvia Scarlett a vender o corpinho que não a Lubitsch. A personagem chama-se The Girl, a actriz real é Veronica Lake, e jamais poderá ser por acaso que o bondoso e tramadamente sábio Preston Sturges a escolheu.
 
Pois claro, lançam-se ao caminho os dois, sofrem um bocadinho por entre vagões de comboios sulistas e feno de palheiro, só um pouco para ele se crer um Capra ou um Cooper, e tudo promete um pastelão melodramático carregado de boa consciência para muito em breve, entre pompa e circunstância. Só que…vai encontrar da maneira mais árdua o que se encontra quando por isso não se brada. E vai realmente vê-la e apalpá-la de perto, sentir no corpo essa miséria sempre fascinante a alguns que tudo têm. Descobre ainda umas coisinhas preciosas para a vida: que nem todos os pobres são bons como nem todos os magnatas são mercenários, que o mal é coisa que não se afasta de classes, crenças, famílias. A sequência nocturna da troca de mortos é extraordinária e grave como nada mais: e o plano com as botas, o dinheiro e o comboio que come aquele corpo ávido sem escape apenas diz da fatalidade do destino e da estupidez das ideias preconcebidas. É o corpo bronzeado e nutrido dele que vai parar a uma pocilga escanzelada, com capataz diabólico a ordenar o palco, ilha de escravatura que nenhuma ficção seria capaz de descrever. E realmente aprende umas coisinhas como se deve aprender, pela carne dentro.
 
Ali, quando já todos o davam perdido e as burocracias o libertavam finalmente de outros embustes, sendo Veronica Lake a única fiel desde sempre juntamente com o Garçon das verdades cruas, levam-no ao cinema do povo e as sombras com luzes mostram-lhe os pobretanas que o fascinavam a rirem-se com patetices. E ri com elas e com eles. E o seu cérebro, as suas ideias, a teoria barata e a criatividade começam a entrar em parafuso. Faz-se mais Homem e descobre a comunidade, o verdadeiro outro, e a razão por que nos tempos de paz o supracitado Capra não é levado a sério. E o que interessa não é a “mise-en-abyme” costumeira ou o filme a construir-se na sua meta-ficção insuflada com discurso filosófico, mas sim a consciência que: 1) não se deve passar pelo que não se é. 2) há filmes, como há atitudes, que não devem sair da gaveta ou sequer da boca. 3) ninguém entra na cabeça de ninguém, mas pode-se chegar ao coração.
 
A caminhada, a via-sacra, foi proveitosa e melhorou também um bocadinho o mundo mundo e o mundo das ilusões. Mas a coisa não é tão nobre e o compósito final em sobreimpressão deixa no ar uma obscuridade e um sabor amargo de boca que se pode comparar às elevadas intenções do extraordinário e tão ambíguo Leo McCarey de “Ruggles of Red Gap” (sombra mortalmente ambígua no claro halo de felicidade), ou seja, não é seguro que tal equação, tal dedução, seja benéfica, muito menos revolucionária. A convicção de que fazer rir os desgraçados é o certo pode ser tão válida (ou inválida) e simplista como a de fazer filmes sérios (coisa horrorosa) para a elite. Com tanta bondade pode-se estar perto da coisa do enfarta burros ou do pão e circo dos antigos romanos. Quer dizer, longe da sinceridade funda da grande Hollywood generosa, perto do que são os estudos das potencialidades de bilheteria cada vez mais agressivos, fórmulas blockbuster, espéctaculo pueril de alienação e embrutecimento de massas. E pior: cineastas-estrelas do interesse/desinteresse pelo próximo que fazem brilhar o nome acima do título e rebaixam o essencial, autores do exótico com cauções abraâmicas, esses que vão a ilhas ou a fins-do-mundo não por necessidade ou porque o sangue lhes ferve no miolo mas por manha, sempre em busca do “diferente” como do monstro, todas as centenas e milhares de propalados documentos do real que nada mais fazem do que vilipendiar e pornografar esses lugares e a humanidade neles. E depois, o crítico que abre a boca de espanto e prepara a passadeira vermelha de ditirambos semanais e sacrilégios pueris, o membro do júri conivente à caça de contrato e justificação da estadia, o empolamento das redes sociais…
 
Isto é o que este magnânimo, luzente, virtuoso e finalmente feroz “Sullivan's Travels” mete em questão. É uma das pedras mais ofuscantes dos inícios dos forties americanos, e importa resgatar imediatamente, mostrar nas escolas de cinema e aos artistas consagrados. Preston Sturges, que não tem filmografia extensa como mestre de cerimônias e que nesse mesmo ano decisivo para esta labuta nos falou também de uma certa Eva, urde de uma só vez a mais admirável e arrevesada das ficções (onde numa hora e meia acontece tudo mais um par de botas), onde apreciámos Lake e os seus vestidos e decotes a casar com sorriso sincero, e um sequíssimo e triste retrato das ambições, enganos, enfim, por McCrea (esse que Goldwyn quis fazer passar por Cooper rotulando-o injustamente “the nearest facsmile”), nada culpado, perdido nesta perene flutuação deste pântano que não nos fecham. Portentoso.

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