segunda-feira, 26 de janeiro de 2015



Inconcebíveis e recônditas cicatrizes elevam o Paul Muni de "Imbarco a mezzanotte" das sombras de um buraco de bicho de mato para a claridade tenebrosa da civilização. Tem umas horas para regressar ao refugio depois de cumprido o objectivo do seu périplo cimeiro. Mas há marcas (ou visões) que são inaceitáveis para a vida terrestre. Olham para ele e não lhe aceitam fome, sede, dignidade, existência. Tudo o acusa, aponta o dedo, o vende como gado para matadouro. Cede, cega-se e mata. Até que um miúdo muito novo e muito sábio, carregado de desejo e de memória, olha para ele limpo, lhe dá a mão e recebe um Pai.

O que é verdadeiramente espantoso e revolucionário neste conto ou nesta parábola é que no inferno desta corrida que nem o dia inteiro dura Muni justificou, redimiu e ganhou a vida. O filho, uma mulher e o beijo mesmo que por instantes, o descanso total da efemeridade mais que perfeita. O maravilhoso regresso do longínquo. E no corrupio: as imemoriais zangas, dúvidas, traições e reconquistas, abraços, fidelidade selada, acordo além tudo. Muni a ganhar a sua vida e a lançar outras. É o balanço e o fascínio que envolve o movimento do plano final. Transfiguração concretizada nesse ciclo.

Joseph Losey, sempre sintético e infinitamente múltiplo, claro e rugoso, agarra e faz acontecer tudo isto em pulsões que excedem a condição neo-realista. Dispensa toda a potência económica e social como paisagem definida, alarga e areja todo o contexto para ficarmos com o percurso condensado de uma vida num pequeno e eterno hiato. Elidindo retóricas políticas e discursos armados, apagando as legendas e os patrocínios, é pela realização (a mise-en-scène) que toda a condição, contradição e harmonia aparece de dentro e pelos fundos. Todo o recuo da História e logo todo o avanço dado pela revelação. Num dia, nem isso, todo o tempo, toda a idade, experiência.

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