domingo, 25 de janeiro de 2015



Já estando morto o tinhoso Sonny logo no primeiro Padrinho de Coppola, James Caan teve obrigatoriamente de se meter num personagem ainda mais maníaco e indefinido. "The Gambler" pode ter um título que adivinha todo um programa e uma atmosfera, mas, tendo em conta não só o protagonista como também o escriba e o surpreendente Karel Reisz na realização de uma gesta Nova-Iorquina, e agarrando nas infindáveis forças contraditórias do ar do tempo, torna-se, lentamente, perdidamente, um todo ilógico que aniquila qualquer planeamento do cinema para se colocar nos abismos da experiência orgânica e do singular, de onde as fórmulas da repetição analítica não vingam. Axel Freed é um professor que utiliza Dostoiévski e George Washington não tanto para rasgar horizontes aos seus alunos mas fundamentalmente para encher o depósito próprio que o faz incendiar de aposta em aposta, de desejo em desejo, de medo a medo, para que sinta qualquer coisa a qualquer momento. É ultra complexo pois os seus olhos e suspiros dizem que ama a sua Mãe e o seu Avô - mesmo a sua namorada, pois as discórdias são somente a superfície da paixão - mas o fervor do seu sangue e a sede de risco não só o impelem para o perigo como abrem feridas cada vez mais fundas e insanáveis nos seus. Qualquer coisa vale, da fossa luxuriante de Las Vegas até ao pátio da ralé que tenha um cesto furado de jogo para um qualquer desafio. O filme começa forte e acaba tão forte como os derradeiros, apocalípticos e lúcidos avisos de Bresson - mas aqui ou não se conhece a palavra lucidez ou ela já está noutros patamares. E se os meios parecem guiados na tal da velocidade de cruzeiro constante ou segura, o tal arrefecimento do jargão fílmico e crime indesculpável para os doutores e criativos do argumento, é só porque a coisa é interior e há que se deter e tentar partilhar a tensão de uma coragem desconhecida. Desconhecida e na estrada do aleatório, da fuga em frente sem lei nem ordem, muito menos prestando contas ao tempo e aceitando a agradável consideração. Como "Mean Streets" ou "Bad Lieutenant", ou "Fingers" do James Toback que urdiu ou desurdiu este Gambler, não se trata de cumprir uma missão a contra-relógio e em circuito fechado, antes uma aventura espiritual que já abandonou qualquer plano estudado para vogar na abstracção, essa metafísica compreendida pela ausência de chão ou razão. Se a realização tem obviamente de comungar da bruteza e do degredo dos filmes mencionados, a sua polifonia pontilhada (ou estrangulada) a variações de Gustav Mahler é decisiva pois despega a demanda da vertigem da linha recta e do percurso no presente sufocante em direcção às teias do indestrinçável, isto é, vertigens inauditas, danação, liberdade como absurdo. Não há redenção, só corrida, assim mesmo, com um pé em Scorsese e outro em Monte Hellman - a víscera, a tosse, e a detonação - para se situar na aritmética cosmológica do indecifrável. Várias perguntas possíveis: um romântico looser? Inocente perverso? Monstro insensível? Um rebelde sem causa perfeitamente certo? E nem uma resposta que não seja ainda mais grave do que a pergunta precisamente pela sua partilhada impossibilidade. Apenas, e finalmente, a constatação que contraria a ideia errada (e essa sim totalmente inconsciente) de que o cinema Americano desta era era adulto, responsável, enfim, consciencioso. Esse teria sido, e só em certa medida, o meio clássico, na sua limpidez e harmonia com um mundo que o possibilitou. Entre Travis Bickle e Robert Eroica Dupea, do elo possível que vai do piloto Kowalski ao leal John Wintergreen, a evidência: suicidas, desistentes, Cristos, irresponsáveis, crianças criminosas, velhos putos, silhuetas ao sabor do vento e fiéis escandalosos, quimeras partidas, sonhos vencidos. Ou seja, jamais se tratou do passo seguinte evolutivo, mas realmente John Ford volveu-se Sam Peckimpah, a natureza e a justiça férrea esquecidas no buraco negro e nas cicatrizes da constatação, preço das conquistas e odisseias cansadas. Cicatrizes incomensuráveis, como aquela que Cann ganha no final de "The Gambler" para seu ridículo contentamento.

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