domingo, 8 de fevereiro de 2015

ainda American Sniper


por João Palhares

"The auteur theory is out of fashion today". E o que era elogio há trinta anos ("os grandes autores fazem sempre o mesmo filme") tornou-se em enxovalho. Nada pior do que ser predictable. Nada pior do que demonstrar um "estilo consistente e reconhecível", uma "visão temática". Nada pior do que fazer filmes que sejam parte de uma obra e em que o conhecimento da totalidade desta ajude à compreensão. 

João Bénard da Costa, sobre Escape from L.A. 

Se Clint Eastwood está nisto do cinema há cinquenta anos e já fez um punhado de filmes extraordinários (Honkytonk Man, Sudden Impact, Unforgiven, A Perfect World, The Bridges of Madison County, Blood Work, Changeling…), não nos faria mal nenhum pensar se o que continua a fazer será tão simples, reaccionário e servil como tem sido descrito. Para não dizer mesmo partir do princípio que não é, de todo. Mas pensemos, é melhor. O que é que há de simples nas primeiras cenas de American Sniper, que são totalmente despojadas do acessório? Duas décadas descritas em parcos minutos e com cortes bem arrojados, generosamente dependentes de toda a atenção de quem as vê - esse tal elogio à inteligência do espectador. Elipses que de simples têm só a aparência. Tornámo-nos tão letrados em dramaturgia que já nada nos impressiona ou (mais provável) continuámos a tomar a verdade pelas aparências? Quem vê caras vê corações? 

O que é uma elipse? E falo agora da mais terrível: porque é que naquele último plano na porta dos Kyles fica tanto o pressentimento da ruína de Chris como a certeza de que ele já não era de Taya e por isso ela o olha desalmadamente. Ele quis salvar toda a gente menos a família e ela odeia - pode-se ver - todos os momentos que o marido passa com os veteranos de guerra e sem ela e os filhos. Os próprios veteranos se ressentem com isso. Eles não têm nada, ele tem tudo. Talvez por isso um o tenha morto. Mas nem só isso. Se a sociedade americana a partir de certa altura começou a ver a guerra do Iraque como um tumor, mas em vez de o tratar o quis esconder, talvez fosse inevitável algo explodir. Se há tantas incertezas e tantos "talvez" como é que American Sniper é um filme simples? Ou muito melhor dito (e cito mais uma vez Carlos Melo Ferreira), "que uma lenda viva da guerra, texano e membro dos SEAL, equiparável ao "Sargento York"/"Sergeant York", de Howard Hawks (1941), tenha um fim diferente do deste põe imediatamente todos os americanos (e todos nós) a pensar no que mudou desde então no país." E pensar não faz mal nenhum. 

Vou divagar um bocado e escrever que não há como ir para uma sala de cinema e ver aquele logo prateado da Warner com o som já lançado na acção, como normalmente acontece nos filmes de Eastwood. É como entrar num mundo e já não poder sair dele. Ora aí está uma forma de trabalhar a ficção. Lembram-se de In The Mouth of Madness e Videodrome? Tentem separá-los dos logos da New Line e da Universal, quando as guitarras e os sintetizadores criam a atmosfera que fica a ressoar e nos faz querer acreditar nas coisas que depois vemos à nossa frente. Mas já ninguém vai ver os filmes às salas de cinema? Nem de propósito, é disso que fala Eastwood na sua primeira obra como realizador, The Beguiled: The Storyteller, associando o trabalho de Don Siegel ao de Edgar Allan Poe e descrevendo essas atmosferas e esses mundos. Haja quem ainda pense que o cinema é uma experiência, um belo acidente no fim do dia ou no início da noite, ainda possível para quem decida lá ir por não ter nada que fazer e, no fim, achar que pagou o preço por inteiro. Mas alguém acha que se fazem estes filmes para críticos e connoisseurs? Não, é para inúteis que não têm que fazer ao tempo e que por os verem podem passar melhor os dias. Já no genérico de Jersey Boys íamos do logo da Warner Brothers para o da RatPac Entertainment e daí para a frase semper fidelis e origem de toda a saudade e todo o trabalho feito para trás, A Malpaso Production, portanto aí não há dúvidas, é consciência (mas inevitável) de toda uma obra que precede o filme.

Quando Tarantino escolhe músicas de spaghettis obscuros para os seus filmes, não há quem não faça a vénia e reconheça homenagens, genialidade e o diabo a quatro. Quando Clint Eastwood, que entrou nuns quantos (já ninguém se quer lembrar), sem levantar ondas, termina American Sniper com a marcha fúnebre de Una Pistola per Ringo, de Ennio Morricone, fazem-se ouvidos moucos e olhos vesgos. E que belo é esse final, com as imagens da auto-estrada e do veterano sem pernas a abanar essa bandeira americana de que só Eastwood, como Cimino, parecem saber o segredo e os mitos. As mil aventuras e os mil martírios, eu sei lá. Sem me dizer nada a bandeira, diz-me a ondulação dela ao vento, a imobilidade sepulcral dela em cima dum caixão ou a forma como personagens se encontram e desencontram nesse e noutros filmes. Já se sentia isso com a marinha e o exército de Ford, como com os heróis despedaçados e cheios de falhas de Lang (entre dezenas de exemplos). Todo o Homem merece a sua canção. Dizer-nos isso alguma coisa é só prova do engenho e do talento de quem no-lo conta.

E se falasse ainda dessa tempestade de areia, isto não acabava. Ou de Bradley Cooper e Sienna Miller, do primeiro encontro no bar à porta que se fecha para o abismo. Ou do irmão que quer que "tudo se foda" e dessas primeiras imagens no bosque da infãncia de Chris e as hesitações e as respirações quando se tem os alvos na mira. American Sniper é um grande filme. Peço desculpa à "boa consciência".


por Sérgio Alpendre

Sniper Americano é um grande filme. Anti-guerra, obviamente. Só que não da maneira que se espera, e isso confunde muita gente.

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