terça-feira, 2 de junho de 2015

(Aqui fica a minha contribuição para o mês de Maio do Cineclube do Porto. Bem hajam!)


"Um Adeus Português", João Botelho, 1986



João Botelho tem já uma longa carreira em mais de trinta anos, com objectos muito diferentes e constantes desafios, tendo estreado recentemente aquele que poderá ser considerado o auge do seu interesse pelo artifício, pelo grafismo, pintura, enfim, um investimento no chamado "falso" para desse modo atingir uma emoção que advenha do cinema como conjugação das restantes artes, num auguro de gesto total que dispensa a invisibilidade clássica e os seus mecanismos realistas. Mas o filme que aqui nos trás hoje é uma página rara e delicada, o seu melhor; está bem longe de "Os Maias - Cenas da Vida Romântica" e nem o constante choque entre o passado e o presente, a guerra e a paz, preto e branco e cores, consegue anular o profundo humanismo, calor e suavidade (e calor e suavidade tão grave em certos momentos) que se desprende de "Um Adeus Português", que só terá comparação com outro seu filme secreto e intimista feito já no início dos anos noventa, "Aqui na Terra".

Na altura alguns lembraram-se daquele que porventura também será a obra mais lancinante de Yasujiro Ozu, "Tôkyô monogatari", e, de facto, não nos podemos deixar de lembrar dessa visita de um casal assente longe dos grandes centros aos seus filhos citadinos e do desfasamento que tal encontro revela quando Isabel de Castro e Ruy Furtado deambulam tristemente por Lisboa. Aqui como no Japão. Do Norte Português parte esse casal em direcção à capital, para matar saudades e para apaziguar almas, mas o que aí encontra são os seus não lá muito bem na vida e cheios de afazeres, embrenhados no ritmo moderno e numa luta pela sobrevivência que adormece os bons sentimentos de cada qual. Particularmente exemplar é Alexandre, subtilmente encarnado por Fernando Heitor, fantasma envergonhado pelo seu ganha-pão, da sua inércia abstracta, que não o deixa como a tantos outros expandir-se. E assim, esse périplo ou essa peregrinação, destapa tanto as feridas da guerra e do passado português como do falhanço da sua revolução. E a acalmia, como o abafamento e o silêncio incómodo, fazem depender os tempos uns dos outros rumo à evidência de um destino conformado que teima em não virar.
Além da beleza, mesmo que trágica, fluente ou assombrada que assoma momento a momento, não esquecendo uma montagem que não quebra mas antes unifica, vale a pena insistir: Isabel de Castro e Ruy Furtado, dois dos nossos maiores actores, são a imagem, o corpo e o peso da grande gente lutadora e da grande tradição humanista e panteísta antes do descalabro social, cultural e artístico do contemporâneo e do virtual feito moda. O filme trata muito disso e o aparecimento do grande cineasta António Reis em trabalhos do campo só relembra a questão da verticalidade humana ao invés da corrupção fácil. Na sua aparente pequenez, uma verdadeira grandiosidade. A permanência a si, essa fidelidade.

"December 7th", John Ford e Gregg Toland, 1943

As razões que levam um homem a ir ver a guerra são verdadeiramente obscuras, alguém o disse certa vez. John Ford, o grande cineasta americano, foi-o algumas vezes, e não só pela potência construtora da ficção. "December 7th" é um caso paradigmático e no seu contexto bem enigmático. Depois das grandes obras que lhe deram o reconhecimento e o sucesso, de "The Grapes of Wrath" a "How Green as My Valley", Ford (acompanhado pelo não menos guerreiro e sensível Gregg Toland) interessou-se, em plena segunda guerra mundial e nas convulsões inerentes, a ir ver in loco como funcionam tais mecanismos, pretensões, enfim, o grande tabuleiro da existência humana. Mas, coragem maior e abertura à complexidade infinita das coisas e do mundo, da natureza e do homem nela, não se limitou a mergulhar de cabeça nos abismos da realidade - como também mergulhou sem qualquer rede - antes efabulou ainda a partir do que viu, ouviu e sentiu para assim as coisas atingirem não só a ferida do instante agudo mas também os ecos e reverberações do grande arco da História, mitos incluídos. Do plano inicial de um avião desfeito até às bandeiras finais ao vento da união, monte-se em conjunto e perdição as crianças asiáticas a cantarem o hino americano com o rosto de um bebé ligado a uma campa do cemitério - é a eternidade, as suas voltas e revoltas e a impossibilidade de juízos demagógicos. Pois demagogo ou propagandista é tudo o que este "December 7th" não é. É sim, como noutro filme duro e terno realizado dois anos depois, "They Were Expendeble", uma travessia nos destroços nossos. A encenação, o lado descritivo, arquivista e até romântico de querer saber do próximo e de como sopra o vento comum no outro lado da terra, por inteiro - cada árvore uma árvore e cada choro ou riso um choro e um riso sem truques - olha a massa do real de frente e não lhe nega qualquer segredo ou incompreensão. Todo o Cinema de Ford, o muito Humano. Para lá ou para cá da civilização domada.

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