quinta-feira, 3 de setembro de 2015



"Rua com o cão" tanto pode servir para expulsar de casa o vizinho fino como um rato, morto por meter a sua colherada e mandar mais do que os donos da casa, como para expulsar pregadores modernos com bíblias modernas ou cartões de débito milagreiros. Tanto dá para evitar o "correio da manhã" personificado que espalhará a fresca noticia pela freguesia mais rápido do que o padre, ou meter no lugar o advogado que ainda à oito dias era trolha. O cão será toda a trampa que cheira mal ao humilde e a rua a morada pedregosa aconselhada a bem ou a murro.

Na inacreditável safra que Raoul Walsh iniciou nos convulsos cinquenta até chegar à fase final que de acalmia só tem o sobreaviso de quem viu e provou das guerras e das fomes, de todas as raças e personalidades, percebendo que no final de tanto caminho é tudo uma e a mesma coisa conforme a terra habitada ou queimada, a temperatura e o que resta ou não resta de vida, "The Lawless Breed" traça-se num circulo entre a urgência e a imensidão dos tempos inexplorados. John Wesley Hardin, por Rock Hudson do rosto de leite até às chagas indisfarçáveis, é o homem que pediu que lhe imprimissem a sua história pela própria pena, e pertence aos da estirpe que agindo ou estagnando criam os mitos mais imperscrutáveis. Esse maduro que começa por sair da prisão entrega-nos em palavras uma deriva e obstinação que Walsh enforma frontal, sem qualquer tipo de digressão, para assim sermos testemunhas e ficarmos instante a instante na dúvida e na certeza. Na dúvida: John Wesley Hardin detesta armas mas não as larga; não pensa matar e não puxa em primeiro lugar mas está sempre no centro e na hora exacta da transgressão; vende os livros da lei para existir livre e por si mas no jogo desmultiplica as cartas como por magia. Na certeza: a sua demanda, a sua resolução, nunca é traída pelos meros receios ou imponderáveis superiores a nós, e quando sabe que o que deve fazer só pode estar certo, nada de qualquer reino alto ou baixo tem o poder de remoção. Todo o trabalho de contemplação em Walsh encontra equivalente e parentesco no rosto em modelação de Hudson, portador das mágoas e da dúvida que assiste a quem pensa na função humana em vida e em morte, ora inocentemente feliz com a menina da infância e depois lutando com a explosiva mulher espelho dele, ora aflito e gritando mudo para as suas entranhas que nada fez para penar. E assim, desde que manda o cão contraditório do Pai pregador para a rua e se entrega aos abismos do desconhecido, terá de provar resolutamente a si mesmo que não tem medo, suprema autonomia e utopia que pode resvalar para todas as transgressões indesculpáveis - ditaduras humanas, económicas, cobardes. Só que o social em Walsh é sempre subtil, não gritado, entrevisto no andar ou no respirar de um individuo, e por isso paroxístico. John Wesley Hardin só quer um lar, verde e com água por de volta, paraíso a qualquer um acenado, e o seu rosto começa de facto a revelar que é só isso mesmo. A cena do tribunal é contundente, o organismo do rosto prova que a sociedade e os seus mecanismos estão longe de serem científicos, de impossível ajuste ao singular e à emoção sem legislação.

"Los hombres son dioses muertos / De un templo ya derrumbado / Ni sus sueños se salvaron / Solo una sombra que va" na constelação desconhecida, soturna e brilhante da voz de Mercedes Sosa. A claridade ventosa de um tiroteio anunciador e a escuridão absoluta que esconde as chagas quando falece a menina dos sonhos. No final vemos o Pai, o filho e a Mãe a só quererem a casa, e ficamos a perceber nem que seja só um bocadinho que a flor anónima que cresceu no deserto e secou e o herói épico conheceram-se; errância e justeza passaram no mesmo caminho; uma sombra derradeira contendo todos os abalos, amor e morte. A entrega total, eis do que nos fala este filme e Walsh, tão pateticamente como um melodrama perfeito e tão limpo como John Ford. Disse um dia Jorge Silva Melo sobre ele: "o Mestre a filmar a vida dos homens sem Deus, sem moral e sem sentença". A eterna violência da procura com o destino.

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