quinta-feira, 19 de novembro de 2015



Com “Wild Horses” Robert Duvall tentou ainda um lamento por aquilo a que chamam velho estar constantemente a ser engolido por aquilo a que chamam novo; belos e selvagens cavalos em colinas resgatadas e resistentes ao betão e ao combustível. Mas falhou, falhanço que tanto mais dói quando se pensa no enorme cineasta que estava em “The Apostle”, união de Mark Twain e da grande literatura sulista americana com os crepúsculos dos últimos clássicos de Hollywood. Ou porque os executivos (Zanucks do Martim Moniz) lhe sacaram as mãos da massa, ou porque já não é possível contrapor ou conciliar tais coisas – sentimentos, paisagens, arquitectura - num mundo já definitivamente outro e irremediável, o certo é que tirando os olhos fundos e aterrados de Duvall tudo o resto é supérfluo e surpreendentemente mal fabricado (quando se montam silêncios como se montam explosões, é o fim sem princípio dele).

O velho cowboy e a sua sesta pela sombra na desmesurada extensão agreste, o sol queimante fustigando as pedras chamuscantes e o chapéu que faz parte do corpo, a valente cigarrada a rimar com a fogueira da ordem, o cavalo ao lado sentindo tudo e também não descansando... mas, grande mas, o som alheio a esse quadro perfeito já fazia adivinhar a desordem e a tragédia. Aviões e cowboys não é o habitual e a essa estranheza Kirk Douglas ainda não se habitou, nem se vai habituar. Seguidamente são as cercas, arames farpados, propriedades privadas... depois os fumos e os químicos, os monstros motorizados, toda uma sujidade a conspurcar o que era o límpido género cinematográfico americano por excelência. Só nos podemos recordar do raivoso “Man Without a Star” que King Vidor fez apenas sete anos antes de David Miller ousar “Lonely Are the Brave” e termos ainda mais pena desses homens e dessa única mulher que sofrem por não se saberem integrar. John Huston tinha acabado de falar e de mostrar disso no dolorosissimos como o rosto esfrangalhado de Montgomery Clift “The Misfits”, e Wim Wenders iria depois comentar o mesmo em alguns filmes sensibilíssimos e noutros menos bons, só que a definição que Douglas dá à sua estirpe e o final há muito prometido nas paralelas do progresso cravam outra ferida que ainda hoje não sarou. É logo depois de ele ter estado com a mulher do seu melhor amigo e de percebermos um amor para a vida e para a morte entre eles, logo depois da inexplicável e óbvia bulha no saloon, logo logo depois de forçar a prisão para poder estar um pouco com o tal irmão e de perceber que esse homem que odiava as mesmas coisas que ele, esse homem amante da liberdade que ajudava refugiados e não punha limites no que a sua vista alcançava, já prefere aguentar a lei e as suas cordas fortes para poder voltar para a mulher e para o filho e para o lar. Douglas, que jamais conseguiria mudar embora se calhar o quisesse, foge mesmo e volta à mulher para contar do que pensava não ser possível. E redime então infindáveis seres e infindáveis destinos: a doença ou a cruz da solidão; não se escolhe nada disso por moda ou posição, nasce-se assim, aleijado; a única pessoa com quem esses aleijados podem viver é com elas mesmas; matando quem a elas se ouse juntar. E foge, foge, livre como o vento e condenado pela sua natureza. O seu Whisky, nome do seu cavalo inseparável, com brigas e reatamentos incluídos, vai com ele fazer a subida aos céus que costumam fazer tais teimosos, provando a sua razão e os seus motivos, mostrando que se existe para além do carimbo burocrático. Longa caçada e outro ser extravagante para as novas regras e tempos, o xerife de Walter Matthau, tão calmo e pacificado e certo como o fantasma que tem de meter na jaula, ficando feliz pelo inimigo ter escapado para assim poder fazer brotar novos anacronismos, balões de ar e carne e osso que possam falhar, gente contrária aos autómatos que comanda. Opostos nas farda e no ofício, compreendem-se numa paz dos anjos que guardam só para si – esta criação e esta correspondência só o impagável Dalton Trumbo a poderia ter sonhado e concretizado, aposto. Mas, desconfiávamos, aquele adamastor TIR que ia aparecendo sem lógica pelos interstícios, teria de ter alguma função. Quando o xerife só pensava num bife e na cama encontra na autoestrada o cowboy por terra, por lama, vencedor e acabado, grande e imóvel. Sozinho e bravo. A câmara sobe classicamente e alguém vai gritando para se ser rápido, Rápido, Rápido, Rápido, até à exaustão. Para descer novamente ao betão e encontrar o chapéu de toda uma humanidade sem dono, vilipendiado, esquecido e em grande-plano. E as infinitas conclusões para tirar desses choques. Sem legenda necessária.


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