domingo, 13 de dezembro de 2015



Frank Sinatra faz 100 anos, uma rádio passa durante 24 horas os seus êxitos cantados por ele e pelos seus herdeiros, o jornal da noite diz qualquer coisita da praxe antes da meteorologia, numa tasca ou noutra consideram-no o maior, e fico feliz pois ele resiste a tudo isso e continua grande. Só que, ao exemplo dos últimos anos, penso ou vejo ou escuto Sinatra e só me lembro de “Some Came Running”. Da complexidade da sua vida e da sua obra, das luzes da ribalta aos buracos e brilhos negros, o que sei dele, muito mais do que as ligações à máfia, aos bordeis ou às garrafas de whisky sem dó nem piedade, tem a ver com o movimento torrencial a que ele se entrega, movimento que por consequência apanha os que o rodeiam. Mas antes de ir a Vincente Minnelli, a Shirley MacLaine ou a Dean Martin, vou a James Jones, sem o qual nada disto seria assim. É lá perto do final das 1000 páginas originais deste contundente e contraditório altar humanista que se lê: «a essência, o sumo do que queria dizer, era que o homem constituía por si mesmo um universo sagrado e ao mesmo tempo um balde de porcaria, que infectava o ar do jardim e do qual era preciso desembaraçar-se o mais rapidamente possível. Estas duas coisas não só se misturavam indistrinçavelmente, sim formavam uma entidade só e única, não existindo portanto mais do que uma evolução». É assim que Dave Hirsh – livro ou filme, o mesmo corpo – volta à pequena terra da sua nascença, muitos e muitos anos depois, para tudo isso repelir e insultar, não admitindo que, de facto, os sentimentos não enganam, são sempre fieis quando recordam. E a sua violência, perdição, esse vórtice devorador que o consome nas deambulações, é de uma vez a recordação daquilo que certo dia em certo tempo árido julgou para sempre e assim não foi; e o que se lhe apresenta e se lhe agiganta como um presente prometido e estável que assusta por assim se voltar a apresentar de chofre, sem pedido. Esse embate entre o que foi a infinitude e o que se apresenta a prazo corrói-o inexoravelmente. Era uma vez... e não se sabia da morte, já foi uma vez... e tanto dela se tacteia. O filme, o livro, a vida, acontece: Sinatra a insultar MacLaine indesculpavelmente num segundo para no seguinte lhe pedir ajoelhado que esta se case com ele. Dean Martin a explanar que nasceu para beber tal como o seu amigo nasceu para escrever e por isso vive e morre conservado na bebida como Dave na fogueira literária. Alguns, como estrelas cadentes, tudo em milésimos, de passagem, amando o efémero, à maneira de Eugénio de Andrade.

Demorei muito a perceber tantas coisas do filme de Minnelli. Tantas coisas que não se dizem em palavras mas sussurradamente em olhares e expressões, vazios e silêncios. Mas certa vez, já não imagino a data, descobri que na infância, nessa casa vasta demais e sem contador, quando se é pequeno, vi tantos e tantos tipos como Dave Hirsh. Magalas, fugitivos, imigrantes, desistentes, seres sem rei nem roque que apareciam no lar já não doce ao fim de anos impronunciáveis e causavam sem querer uma hecatombe não muito pequena. Quando se estava no café e se via que algum estranho com uma aura devastadora se encontrava no bilhar e o ruído era mais do que o costume, já estava a ver o “Some Came Running”. Quando na missa as velhinhas e os adultos viravam a cabeça para os lados e para trás e tossiam mais do que o habitual, o “Some Came Running” já estava a ser visto e revisto sem o saber. Se na paragem do autocarro ou no jogo da bola domingueiro uma garota de saia curta e cabelo perfumado e arranjado não olhava para o estranho mas corava, o “Some Came Running” projectava-se sem freios em desmesurada janela e com toda a vibração e todas as cores e melodrama. “Some Came Running” é o mais antigo dos contos e dos dramas, e o grande realizador como o grande escritor que foi aos campos de batalha (sabe bem dizê-lo, sem falar em segundas linhas mesquinhas ou doutas) deram a ver pela primeira e derradeira vez essa ferida e esses desabrochares pois meteram-se no meio, por dentro das dúvidas e nos círculos contínuos, suicidiários e irracionais, talvez salvos pela paixão demasiada, sem distâncias gélidas.

Dou os Parabéns a Frank Sinatra e tenho de os dar igualmente a Dave Hirsh, bruto, caloroso, contraditório, seguríssimo. Não se trata do anti-herói pusilânime ou do escritor bloqueado que redescobre a inspiração, mas de um indefinível genuíno, um puro, uma fonte de confiança e um berço (ventre) seguro; resumindo, tarefa impossível: muito longe do virtual e das máquinas e da convenção, cheio de carne, sangue, suor, amor e raiva, sublime e esterco. E assim, de confiança. Sem lições ou conselhos: cada um como cada qual: um universo sagrado... Sinatra, como Hirsh ou Martin, são velhos como o primeiro cepo do primeiro jardim e novos como a eternidade. Todos os anos de vida.

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