domingo, 20 de dezembro de 2015


“The Breaking Point “ é um protótipo dos cinquenta americanos procurado por Michael Curtiz, quinta-essência dessa terra e desse ofício, definição de realizador, retomando águas, paixões, destinos e o muito fogo de “Casablanca” ou de “Passage to Marseille”. Que os pergaminhos e alguma alma tenha sido pedida a Ernest Hemingway só expõe vias e pulsões que não se previam assim, entrando estas de rompante e devorando as maquetas e a magia e o argumento, lado incontrolável dos mais recônditos fundos orgânicos. Pois os timings perfeitos do mítico filme de 1942, a encenação a milésimo de segundo calculada, essa luz prodigiosa e dramática dos estúdios mesmo que mais reais do que o real, fogem para o lado contrário e o que irrompe é a câmara solta e perscrutante de Rossellini, como que ao sabor das aragens e das marés; uma auscultação das vibrações do meio natural e do humano como coisa uma, antes de qualquer maquinação estilística, comunhão e compromisso do mesmo sangue do incaracterizável “Deep Waters” de Henry King. As misérias da terra e do mar, os problemas e o caos de todos os credos e desejos: dos refugiados tratados como dejectos até à negociata e corrupção rasteira que vai apodrecendo sucessiva e lentamente atingindo as medalhas dos genocídios apocalípticos dos imperiais topos. Mas do que se trata é evidentemente, e pela ordem inata, de histórias de amor, da perdição e da solidão contundente; concentração e circunscrição dos fulgores e dos rastos de uma existência. Para ser óbvio que é John Garfield que numa das suas maiores vivências dinamita qualquer planificação escancarando os abismos sem rede. História de amor dele para com a sua esposa resistente às tentações clandestinas e sociais – juntando o sorriso infantil dela antes do sexo (uma das cenas mais secas e belas do Cinema sem se dar por isso) ao choro limpo perto da morte no final; de Garfield para com o amigo e parceiro e mais lágrimas por não o conseguir escorraçar e assim salvar; e acima de tudo amor a si próprio que aguenta todas as penúrias e humilhações daqueles que insistem em fazer, ou tentar fazer, aquilo de que gostam pois nasceu com eles. A guerra do lobo dos mares não é tanto para com os criminosos – isso são estilhaços colaterais – mas essa do par e filhos e busca da felicidade a todos reservada no princípio. John Garfield está para lá de qualquer representação pois sabe-se da sua própria vida e sorte, sendo impossível que isso não lhe tenha alimentado a fúria, consumido as entranhas, dilatado as veias e tomado conta dos olhos na película que não atenua mas amplia e descasca. John Garfield é um vulcão jorrante e um poço sepulcral, ser comum que dá raiva e razão a biliões de seres vivos e mortos, seja numa pequena aldeia esquecida da nossa beira interior ou na desolada Nova Iorque dos genuínos. A conclusão de tanto afloramento e confessionalismo, fogo que não deixa de se misturar com o gelo em suores frios de pesadelos nocturnos temperados com nicotina, é a criança largada no cosmos, ao deus dará..., ponto insistente e final para onde confluiu tanta complicação e novelo da raça. O filme deixa-nos e nada mais veremos, a não ser um ressoar que continuará na próxima saída à rua, pelos passeios miseráveis ou num hospital insone. Curtiz e Garfield, o controle e a devastação, num abalo que é o movimento perpétuo que ainda nos aguenta.  

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