sábado, 16 de janeiro de 2016


Se neste mundo a justiça fosse plena, assim como a lógica, um filme como “Hitori musuko”, “O Filho Único” na nossa língua, um dia haveria de acertar as contas com ele, ajustando todos os atritos, voltando a um princípio claro, cheio das oportunidades e da afinação que certa vez nos concederam. A beleza de Yasujiro Ozu sempre foi a beleza inequívoca da passagem, chegando-se lentamente e normalmente do novo ao velho, do arcaico ao moderno, do nascimento à morte; e do dia à noite, aqui literalmente pelo milagre da exposição e da fusão da película. Passagem agarrada no seu pleno, numa construção indestrutível que revira inclusive os pressupostos e a cronologia. Mas nesta caminhada da Mãe que sacrificou a vida toda para dar o melhor ao seu filho, chega-se ainda a outro patamar de passagem. Sacrifício que pretendeu a honra, a posição social, o bem-estar financeiro, mas que pelo acaso e pelo fundo que passa de sangue para sangue, de espírito para espírito qualquer, se volveu dignidade. Na aldeia velhinha era a tecelagem e os sonhos fora dela; na Capital nova esse compasso mecânico e o seco desengano. Da aldeia sai-se para se ser maior; a Capital espeta cada um no seu devido lugar e altura. O professor que largou a sua terra para evoluir e acabou na evolução a vender carne frita. E a Mãe que redescobriu o filho por quem se esfolou já com mulher e um filho também, mas de cabeça baixa, paralisado nas contas da consciência. Onde as elipses são toda a história possível deles e de nós marcada na face e na alma. Se neste mundo a justiça fosse plena, assim como a lógica, as lágrimas e as palavras da Mãe sobre a importância de continuarmos de pé e de construirmos o nosso trono valeriam para todos e cada qual, ajustando a ganância e o arrivismo, ruído abjecto que humilhou o canto iniciático. E o silêncio final, porventura terminal, desencanto volvido encanto, luz singela da satisfação plena da naturalidade, teria a força dos conquistadores primitivos, dos projécteis lunares. Como o teorema do quadro do professor pobre que só lá pode estar para reequilibrar as crianças e nos reequilibrar sabidos. Naturalmente.




Creed”, oferecido por Sylvester Stallone a Ryan Coogler tal como há milhões de anos lhe tinham dado a única oportunidade, larga-nos obviamente na escadaria monumental que urge subir, para vermos toda a vida e toda a terra, dois seres fundidos contra a violência da prometida solidão, eternamente. Daqui a mais alguns milhões de anos, continuarão lá, o velho acabado e doente abraçado à estrela do momento mais ofuscante, sem distinções e salvando cada queda mal dada. Rocky Balboa é uma Mãe doce de Ozu, um obstinado puro de Frank Capra e um Hawksiano firme como um cepo. Pode dizer-se Mãe dura como um cepo de Ozu, um puro de Hawks, e um doce de Capra. Pode continuar-se a inverter as combinações e tudo dará tão certo como o dito teorema. Chegando-se à conclusão de que a arte e a moral de Stallone nunca foi a do romantismo mas antes a do trabalho, da realidade bruta, disciplina como na guerra ou no xadrez, sem comiseração. Essa dedicação bela que retira a carga negativa ao sacrifício. Mais perto dos pequenos clubes desportivos do fundo da tabela que vão fazer o brilharete ao campo dos tubarões do que das metáforas testamentais. Stallone vai à prisão ver o miúdo que ele mesmo foi há uns dias e promete não se matar vivificando o seu duplo. O miúdo perde e ganha as noites no hospital que é um lugar como os outros. Stallone sussurrou-lhe do tempo, o único adversário invicto, que importa agarrar na essência; isso é, vai-se compreendendo na demanda do conto, misturar os humanos uns com os outros, no suor e nos abraços, na carne e na experiência, sempre a aprender e a passar, unos, principiantes, consumados. A Mãe, Sly, o puto de Ozu ou de “Creed”, nas rezas ou nas noites perdidas das questões impronunciáveis, na aflição ou no momento do condão de fada, de certeza comungam com Robert Musil em "O homem sem qualidades”: «Deprecio pessoas que não seguem a expressão de Nietzsche: “passar fome na alma, por amor à verdade”; os que recuam, fracassam, os moles que se consolam com doces palavras sobre a alma, e a alimentam com sentimentos religiosos, filosóficos e poéticos que são como pãezinhos desmanchados no leite, por recearem que a razão lhes dê pedras em vez de pão.»

1936, América das oportunidades, 2016 ou o Japão expectante, a limpar o chão ou a tentar caçar galinhas, com o título mundial na palma da Mão ou prometendo ao bebé que dorme – movimentos embrenhados, encontrados e passados algures no tempo e no espaço que nos envolve, de onde a fatalidade se ajusta também. Em pleno, olhando o desenrolar e o encontro. Um passo... um soco... um round... os eixos partidos do nosso pedaço a recomporem-se. Doridos e felizes.

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