quinta-feira, 22 de março de 2018



Mais de trinta anos depois pode-se discorrer das profecias de “Taipei Story” e da sua perfeita actualidade. A visão de Edward Yang era local, cimentava-se na sua naturalidade, agigantava-se com o crescimento desenfreado e desordenado dessa cidade, a gentrificação revoltante, uma falta de visão grosseira e os favorecimentos corruptos, incríveis erros crassos de planeamento e a plástica indistinção, ou seja, tudo o que hoje se debate em qualquer grande urbe europeia, todos os super-problemas; quanto à construção cinematográfica ela surge insólita, vacilante, carregada de espaços ocos de narrativa e de não-lugares, de enquadramentos ao lado, perdidos, com elos que se desviam ou partem antes da união significante e silêncios que acabam os ditos, esquadrias e balanços resvalantes, em foras-de-campo que se completam por si mesmos e frontalidades ilusórias, utilizando argamassas tremelicantes que bazam por atmosferas dúbias. O ar e a maquinação de um tempo a influir na construção geral e na arte.  

Como todos os grandes cineastas livres e comprometidos, de Michelangelo Antonioni a Paulo Rocha, dos quais Yang não imita nada mas é puxado pela mesma corrente funda e pesada de romanesco e de presente – o místico rio oriental de um Mizoguchi está aqui no céu universal lá longe e impenetrável, no seu sangue e nos seus mistérios – o tema não são esses problemas tão novos como imemoriais que se perpetuam e renovam em constante espéctaculo sensacionalista, mas sim o desajuste de uma sensibilidade para com essa paisagem, para com esse meio, para com essa inteligência, para com essas fatalidades a regressarem travestidas. Há quem aceite e tome partido desse caos para vencer, tal como nas guerras existem aproveitadores sombrios, e depois temos os que entram em rota de colisão e em guerra com o que os ultrapassa por natureza; então, Lung, a personagem de Hou Hsiao-Hsien, é alguém que ainda tenta ser um oportunista, um negociante, um hustler no sentido puramente americano – e o tema da América e do american dream, e do que isso também representa e reenvia para a geração e colonização de Yang é outro centro descentrado e estilhaçado desta obra descalibrada – mas se deixa trucidar pelos sonhos e pelos contos-de-fadas da infância que jamais conseguiu abater para o seu suposto bem. O seu velho treinador que ele insiste em procurar e apoiar é a cepa e o tesouro de um paraíso perdido, ave rara ou ecossistema que terminará por decisão própria.

O tema primordial e que tudo arrasta para a perdição mais lancinante é o da inocência; Lung carrega uma marca, tal como o Scarface de Howard Hawks; um falhanço uterino, como o “Xavier” de Manuel Mozos; uma estupefação e não aceitação do inaceitável, à maneira de Robert Mulligan e do “The Nickel Ride”; e parecendo tudo terminar em tragédia total ele sai tão vencedor como o Cosmo Vitelli no “The Killing of a Chinese Bookie” de John Cassavetes; uma vitória espiritual, a pairar para lá das nuvens, como flor desprotegida no incomensurável deserto, praticamente nada, mas qualquer coisa que vai ser contada à porta de um berço futuro, perpetuando as fábulas justas e salvadoras. Lung foi alguém que por motivos que nos vão ou não ficar alheios permaneceu um sonhador, permaneceu nos campos dos domingos de festa com bastas assistências e nos treinos vazios do seu baseball, palco de ouro que poderia ser outra magia qualquer, permaneceu com todas as esperanças e possibilidades intactas do merecimento e da justiça da palavra ensinada numa escola ou numa igreja, pelo avô no campo ou pela mãe à mesa. Não cresceu, não se ajustou, mas como se calhar viu filmes a mais com gangsters, acreditou nessa possibilidade, tentou a dita normalidade, forçou a barra, abafou o coração, tocou no podre, e embateu de frente e com todo o peso na lengalenga verdadeira que alguns nunca matam; regressou ao paraíso perdido e percebeu de tal impossibilidade.

Tudo isso foi o que a antiga princesa dos seus sonhos lhe atira à cara numa cena nocturna de baloiços e de timidez, nessa noite mágica e amarga que cede rampa à morte prometida que ele parece esperar; “Taipei Story” são todas as actualidades dos telejornais e dos correios da manhã a humilharem a criança de outrora. E a morte a ser mais doce do que a permanência no cinzentismo inegociável. Não se trata de desprezar as duas presenças e forças femininas, as mães e os pais, o amigo tão terno, mas tudo converge e sintetiza, fantasmagoria mas ainda pulso, em Lung. Os planos finais, como todos os outros, são inaceitáveis e são doces, e Lung é constantemente – como no filme de Mozos referido, como nos outros – um meteorito que enquanto dura envergonha o degredo, esse orgulho dos tecnocratas superiores. Uma presença de anjo a entregar de boa vontade o dinheiro que não tem, a resgatar condenados merecidos e inocentes, a dar o leite aos seus órfãos, a cavalgar num inferno que de tão mesquinho e falso e frio nem Dante imaginou; Lung não tem pena de si mesmo, apenas segue o único curso e a única música que pode seguir. Pelos esconsos cantos e pelas fissuras do vento lá vai um principezinho, um capuchinho vermelho ou um exterminador implacável que um dia há de aconchegar dos seus e forçar mais um pouco da revolução secreta.

É isso ainda que nos faz ver as luzes nocturnas das festas de libertação e de sexo, sofisticação ou aberração tornada pura poesia na conjugação e comunhão de todos os elementos, a electrónica e a carne, como as montanhas e o respetivo sopro lírico das sequências próximas, continuando o humanismo de Yasujiro Ozu – não se critica nada e quem quiser que o faça ou simplesmente ame. Tais como as sombras e o surrealismo da observação pausada, sem tempo, nos monumentos seculares e sacros ou na pedra moderna a cair dos prédios ainda não reparados, o diálogo entre o mais longínquo e todas as ambições imortais. “Taipei Story” trata da casta das vias-sacras e da pureza sua irmã. Para daqui a triliões de anos vezes infinitos.

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