quinta-feira, 18 de janeiro de 2018


"The Nickel Ride", Robert Mulligan, 1974

"Nickel Ride" refers to the act of police officers throwing suspects into the back of a police transporter. The suspects are left without restraints and are thrown around due to the reckless driving of the police, who intend to harm the suspect.

urban dictionary

“The Nickel Ride” é, como muitos filmes de Robert Mulligan, extremamente realista e sempre a deixar escorrer por entre as brechas do concreto a luz indefinível e o som de espanto dos sonhos. Um realismo aqui depurado pelo formato largo e pela crispação das lentes da máquina de filmar, lutando sempre com espaços reais nos quais os ângulos não estão à mercê como nos estúdios, e onde tanto o imprevisível como a redefinição espacial cinematográfica se travam de razões para surgir uma gravidade na relação das pessoas com o meio que é tão próxima ao filme noir (“Lady in the Lake”, “Chinatown”) como aos jogos de vídeo first-person shooter (“Doom”, “Turok”) em fuga para a frente dos "Tomb Raider", acabando no neo-realismo Rosseliniano (“Viaggio in Italia”); por causa de uma suposta ausência de estrutura narrativa e de uma lógica de mecânica reconhecível, e por não se encaixar em géneros que não pretende mas que somente faz lembrar pela iconografia que se tornou parte do quotidiano – do western ao policial – este belo e triste filme de 1974, talvez o ponto alto de uma sensibilidade caseira que milagrosamente se safou na industria, foi arrumado como perfeitamente ilógico e patético na sua construção. Ainda, segundo os comentadores, a sequência em que o sonho e a realidade se literalizam, se mesclam, já perto do final, excedeu o ridículo e deitou tudo a perder numa empreitada que pelo menos pelas ambiências e pelos actores se poderia safar nas duas ou três estrelas do quadro crítico. Mas essa maravilhosa sequência em que o personagem do mais magoado e raro actor dos anos setenta - Jason Miller, ainda fuzilado nos olhos pelas chamas e pelo gelo em luta do seu Padre Karras no "The Exorcist" – adormece e sonha que o neo-cowboy o vem terminar (como terminar se dizia em “Apocalipse Now” para não ferir susceptibilidades oficiais) ao seu lar alternativo para aonde fugiu com a sua menina impossível (Linda Haynes, frágil e bela como Judy Garland e Lee Remick fundidas) - “They Live by Night” hipnotizado pelos néones do pós-modernismo globalizante e o cheiro da fritura dos Mcdonald's – é somente o paroxismo da questão deste filme que é a questão da América desde os remotos tempos da Guerra Civil até à actualidade das fronteiras que se querem fechadas – entre o espaço intimo das paixões, da verdade e da família (a cabana de Michael Cimino às portas do céu) e o sonho americano em que impera a velocidade, a distância e o jogo ambíguo (hustlers, gamblers, pool sharks...), existe a soma, ou uma dívida que muito dificilmente não se pagará, cheirada pela tragédia até ao recanto mais insignificante de uma nação desmesurada. Conclusão fundamental, TNR não tece sobre a figura do looser como uma parte importante da arte americana, mas antes constata as profundas desilusões das grandes promessas, onde fulgurantes ideias e abstracções idealistas que moldaram uma ilusão de sociedade perfeita (constantes New Deals ou democracias avançadas) surgem longínquas na solidão do indivíduo atirado às feras.

Então a sequência central não será essa mas um instante filmado com a funcionalidade de um realizador clássico da poverty row que tem de entregar ao montador as filmagens da obra de dois ou três dias para este sacar in extremis uma peça acabada: Cooper, assim será o nome verdadeiro desse homem que fez escola no submundo e que foi (ou é) na sua área um doutorado ou um King of Los Angeles - o tipo e a sua inteligência a espalharam magia pelo mundo dos armazéns manhosos (warehouses, que não por acaso se pode fazer confundir com whorehouses) e pelos becos da perdição volvida salvação (ou vice-versa) - encontra-se pela primeira vez com um jovem deslocado e excêntrico que poderia ser o novo John Wayne da East 5th Street se este lhe tivesse dado a sua bênção que nunca lhe daria (demencial Bo Hopkins, inclassificável e arrepiante deformação da década em questão); estendida a mão ao mito, o novíssimo logo dispara com a precisão duvidosa e o sentido de humor sem humor dessa raça de moral inclassificável e peçonhenta como banha de cobra: «Babe Ruth, Marciano, John L. Sullivan and The Key-Man, whos the greatest?», e fala em aprender, relação aluno - mestre, com a mesma veemência e o mesmo espanto derretido que nos anos noventa alguém prestaria a Michael Jordan; para Cooper, o Homem-Chave em vários sentidos, lhe dizer que não sabe responder pois os outros estão todos mortos e ele é o único ainda vivo. Ainda, que tal como foi, é condição fulcral do sentido e da respiração dramática do percurso que contém a amplitude de um último suspiro, um last hurrah. E se logo na interacção inicial entre o velho e o novo esse novo lhe puxa os pés para a cova, o velho não deixará os seus créditos por mãos alheias; será na sua moral de ferro, no seu classicismo, na velha guarda ou na ratice, enfim, no que os antigos costumavam apelidar de respeitinho - que seria por coisas como valores sagrados e invioláveis - que irá buscar forças para sair por cima, a força que a juventude e as agruras da consciência lhe retiraram mais do que o tabaco em volumes (mais uma vez o Lucky Strike em predestinação), salvando ainda qualquer coisa de um código que sendo violentíssimo conservava lá dentro uma dignidade ou uma fidelidade superior que o niilismo por nada – nem por Nietzsche – jamais foi capaz de entender. The Key-Man, o tipo que fez sempre tudo bem já é lenda, e está fora de moda, pois continua a tomar o seu tempo e a fazer como deve ser feito na sua área de excelência; é preciso dar lugar ao Novo que resolve tudo com a caçadeira em punho (ou apertando o botão nuclear sem consciência) e o abjecto natural.
 
Um suspiro grandiloquente e abafado, que se expira na passagem forçada do comum à lenda, do homem simples na sua condição e circunstância ao altar ou ao museu do esquecimento que dá jeito para o espectáculo continuar; Cooper é assim irmão do Cosmo Vittelli que Ben Gazzara generosamente ofereceu ao humanista John Cassavetes no “The Killing of a Chinese Bookie”, um corpo celeste, porém jamais sacralizado, aceitando o degredo como o brilho precioso, que força a barra prometida do extermínio sem dó oferecido aos tais valores irrevogáveis porque cimentados em séculos de resistência, para atingir uma pequena eternidade que mais do que grandes discursos ou retórica exemplar tem a ver com a música do último plano, no qual um corpo já começa a arrefecer dos múltiplos fogos que ainda presenciamos nesta recta final quando entramos espectadores: a luz estonteante do milagre de mais um novo dia, uma cantilena da infância, esse irresponsável prestigiador ou palhaço que por uns segundos o faz esquecer dos negócios e das jogadas, mundos de sonhadores e de caciques embrenhados, que pergunta ao homem de fato como vai o mundo e o faz escolher entre relógios, colares, roupa interior, amuletos, patas de coelho ou medalhões... a dama da sorte que só ele entenderá dessa maneira. A sorte da fidelidade que abre os portões do paraíso, como no plano finalíssimo; que joga com a festa de anos oferecida pelos amigos ou a da mulher e do melhor amigo, na qual outras cores emergem magicamente da pungente realidade que parece querer esganar cada um deles, onde os carrosséis ousam animados pela varinha mágica de um Vincente Minnelli, sem se pensar na coerência fílmica, ou antes elevando-a rasgadas as ataduras teóricas; nesse instante a gravata cai, aparecem meninas possíveis a dançar e gorilas a quebrarem barras de aço, féeries escondidas na consumação fugaz e total do ser original escondido em cada um que não quer ser definitivamente engolido no polimento social. De seguida, batem à porta os factos e o maluco sem freios volta a colocar os travões e a fronha da sobrevivência; combate e dialéctica de sonhos e pesadelos, o sonho e o falhanço do sonho, responsabilidade e assunção, os tais que perdem e apostam o dobro e os que pensam mais além; Robert Mulligan não faz de ninguém ideal, e tanto é tocante e certo Cooper como aquele boxeur orgulhoso, tentando sempre entender a contradição com essa câmara que de tão larga e aberta às rugas parece estar sempre prestes a cair no espaço sideral (Fgrav = (Gm1m2)/d2 com o mistério da película e a emoção, sem resultado matemático). “The Nickel Ride” é um grande e minúsculo fresco Americano.
 

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