segunda-feira, 11 de junho de 2018




Breathless, Jim McBride, 1983
 
No vídeo de apresentação ao Breathless americano o seu realizador conta-nos demoradamente a sua quota-parte numa das narrativas mais fascinantes e trágicas da história de Hollywood – a luta entre os realizadores e os estúdios, os autores e a indústria, a visão pessoal contra a necessidade de vender bilhetes e pipocas. Jim McBride esteve na Cinemateca Portuguesa a 2 de Maio do presente ano para introduzir a sua primeira obra e conversar com o público. Não no âmbito de qualquer retrospectiva sobre a sua multifacetada carreira, não como homenageado num festival qualquer – apesar do director da Cinemateca, José Manuel Costa, ter referido que a McBride cairia como uma luva o rótulo de herói independente no Indielisboa que acontecia por aqueles dias – muito menos por estar a tentar realizar um filme no nosso país, mas sim porque veio visitar Portugal e tinham-lhe falado muito bem dessa instituição. Foi ele mesmo a mandar um email, a pedir encarecidamente que lhe dessem a honra de mostrar um dos seus filmes em tão mágico lugar.

David Holzman's Diary foi então a escolha, que José Manuel Costa considerou uma das primeiras obras que mais marcaram o cinema desde aí, filme independente não por moda mas por vontade irrefreável. A introdução do realizador foi breve, simples, right to the point: como em 1967 ele não imaginava o mundo da blogosfera, do youtube, dos facebooks ou do instagram, e inspirado pela revolução da nouvelle vague francesa – a sua obsessão definitiva, como estamos a perceber – e aproveitando a nova leveza dos meios técnicos, decidiu ficcionalizar um diário, com uma certa distância mas metendo lá dentro muito da sua vida e experiência. Convidou amigos, captou o seu quarto e o seu tempo, fixou as rotinas e os rituais de uma geração e de uma época, saiu para a rua e foi ao encontro do outro, deu a entender e lançou para futura análise o ar daquele presente, do existencialismo ao Vietname. Isto disse ele e disseram alguns dos poucos espectadores de uma sessão que não foi badalada, sessão a que ele assistiu sem “problemas de consciência”, tendo sido consensual que o Big Brother não trouxe revolução nenhuma e que um gesto destes já continha em filigrana e terrível o embrião desse monstro anestesiante da preciosidade de cada ser, antecipando-o sem a sua abjecção. Visto hoje, o filme pode até já não ter o impacto da época, a frescura da descoberta sem aviso, essa intimidade e despudor chapados no ecrã que em 67 não estavam profanados, mas além de uma delicadeza e de uma verdade intrínsecas no instante sagrado, quando a câmara sai largada porta fora e se torna puramente observacional, ontológica mesmo, entregando-se às gentes e aos seus espaços num registo puramente etnográfico de quem quer conservar a memória envolvente, o esquema e a estrutura despegam para a emoção do descerramento de um artefacto humanista e por isso mesmo inigualável. Na dura Needle Park à beira dos anos 70 e nos seus passeios próximos redescobrimos espantados toda uma parcela do mundo que tanta ficção tentou emular, tal como quatro anos depois em The Panic in the Needle Park, um tocante filme de Jerry Schatzberg que como este prova que a ternura não tem palco, nem raça, nem condição estabelecidas.

Voltando a Breathless, que foi aparecendo durante toda a conversa como o ponto de maior estupefacção na sua caminhada, e regressando às descabeladas e maquiavélicas aventuras oferecidas pela meca do cinema a quem tem uma ideia contrária ao sucesso vigente, McBride apareceu diante dos poucos mas bons que decidiram perder a última novidade ou o primeiro premiado em grande forma, absolutamente jovial e leve, risonho, simpático e a falar com qualquer um, inclusive num português bem aceitável para quem teve um ano de aulas nos anos oitenta. Ficando-se a saber da trucidante aventura que foi concretizar o remake da primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard, esperar-se-ia uma figura taciturna, talvez mesmo uma personagem na defensiva, o artista maldito ainda e sempre vergado por uma cruz que carregou e levou a um porto tramado, mas nada esteve tão longe de qualquer desses clichés. Forever young, acompanhado da esposa, de um filho e de uma filha ainda jovens, estivemos na presença de um puro saído de um filme de Frank Capra, um Mr. Smith ou um John Doe no que ao coração diz respeito, lembrando o James Gray que há uns anos apareceu no festival Lisboa / Estoril com uma ninhada de filhos a agarrar-lhe a gabardina enquanto este contava a rir-se as suas lutas com os executivos televisivos que rapidamente o despediram. O tipo de sensibilidade, de desprendimento e de humor de quem foi percebendo as regras do jogo, o significado das pequenas mas únicas vitórias que importam, as mãos limpas e a grandeza de quem não sugou o sangue oferecido em bandejas douradas mas antes resgatou o brilho e a redenção essenciais de arenas tão retorcidas. Homens que saíram da elevação do cinema clássico americano para as terríveis aventuras do cinema moderno, não vendendo a alma ao diabo. McBride filmou com dinheiro, sem dinheiro, com a película de 16mm e a câmara na mão emprestada e a ferver de ideias mas também com stars e muitos camiões de produção, deu o seu toque a um episódio de Six Feet Under quinze anos depois de ter caído na The Twilight Zone. O esfomeado que se perdeu de amores pelos falsos raccords, pela energia renovadora e pela juventude de Godard ou de Truffaut é ainda um dos últimos representantes da dura cepa dos valores de John Ford ou Howard Hawks. Sem resquício de bazófia ou de ressabiamento, apreciando nos dias de hoje em que não vai filmando tanto Wong Kar-Wai como Nuri Bilge Ceylan. Nascido em 1941, é um iniciante.

«About the future, which I don't know, you don't know! Nobody knows it! So fuck it, roll the dice!»

Quando se sugeriu a McBride a realização de um double bill em Braga com os dois Breathless a sua humildade voltou a dar cartas, disparando imediatamente que talvez fosse uma seca para os espectadores, ver a mesma história duas vezes... E apesar do fascínio, da admiração de fã número um ou da aproximação sempre imprevisível ao monstro sagrado – Mc contou ainda que uma vez falou ao vivo com Godard mas ele, já taciturno, quase só deu os bons dias – não existe nada de reverência contraproducente ou de citação fácil – mesmo que se prove que a iconografia e a carga explosiva está do lado de Pierrot le Fou, não vai ser Rimbaud a esbracejar mas algo bem mais instintivo e primário. Godard, nos seus filmes e nos seus escritos, ensinou muitas vezes como amar os «bons americanos» - de John Wayne a Manny Farber – e o filme de 1983 tem orgulho disso. Richard Gere emula Jerry Lee Lewis e baila com Sam Cooke, imita Jesse James ou os vertiginosos de Gun Crazy do filme de Joseph H. Lewis para encontrar a polaroid, o super-herói ou a verdade crua e espampanante de si mesmo. O movimento geral e a electricidade não vão sobre os trilhos e estrilhos do jazz modernista ou da pirotecnia estilística mas antes desliza na Americana clássica da velha Hollywood de fundos falsos, céus encarnados a fogo como os sentimentos em causa ou espalhando magia pela escala de planos infalível dos tarefeiros – e neste ponto a participação, as viagens e a poética fascinante do texano L.M. Kit Carson no argumento serão decisivos; Americana que não significa nostalgia vácua, muito menos mediação simbólica, antes fusão e luta com os quadradinhos da banda-desenhada cósmica que se debate entre o amor mais puro e a liberdade do absoluto, embate com o precioso cinema ele mesmo nessa cena orgástica em que o fugitivo possui a miúda na parte de trás da tela, numa assunção dessas imagens e sobretudo dos diálogos míticos mas também numa violação desses códigos e da subtileza de uma arte que sugeria mais do que mostrava, respiração frenética do beatnik de Kerouak torcendo e digerindo as ondas jazzísticas. De Las vegas, passando pelo deserto até Los Angeles e suspirando pelo México com o mesmo fôlego ou falta dele com que Jesse deseja a miúda francesa – a devolução principal de Mc a Godard – o Breathless de 83 é uma obra puramente americana e que mete em causa toda essa mitologia. Um filme com tomates, como tudo o que é singular.

Sob o signo de um nova Americana que aglutina e mete em guerra o classicismo e a Nova Hollywood dos anos setenta, mas capitalmente sob o domínio ou a tragédia da figura primitiva do hustler. Que pode ser o citado Jesse James, Theodore Roosevelt, o Paul Newman do filme de Robert Rossen, Michael Jordan, Sean Combs ou qualquer um dos biliões de anónimos nessas pradarias ou bilhares que perderam e dobraram a parada. Para mesmo aqui a questão e a moral ser fugidia, ambigua, sem centro, em dialécticas essenciais, precisamente actuando à maneira dos hustlers originais – cowboys ou matadores, colonizadores ou índios – ao exemplo da inacreditavelmente bela e perigosa cena da piscina, em que ele assume a ela o “tudo ou nada” do seu credo, para lá do “tudo” ou do “alguma coisa”; ou, talvez ainda mais sintomático, quando William Faulkner é contradicto para se preferir o “nada” à “dor”, chegando-se mesmo a utilizar o maior escritor americano como quem ousa cortar a rede do abismo sexual. Pelos fundos barrocos ou pós-modernistas de neons tipicamente anos oitenta, composições fotográficas ludibriantes ou ruínas plásticas, estamos mais uma vez no Romeo and Juliet de Shakespeare e soterrados na profusão de símbolos, estampas, iconografias e lixo dos novíssimos tempos. Talvez por aí o mais bonito, a dádiva deste remake parido viciado e virgem a um mesmo tempo, seja o movimento da bela, da Monica Poiccard feita por uma Valérie Kaprisky bazada da idealização da BD para a carne bruta desta paisagem suja, aura total utilizada assim por uma única vez: inicia-se cheia de medo, a tremer e a pedir ao delinquente que se vá embora, “não fode nem sai de cima”, preservando as cunhas e as saídas profissionais a todo o custo, para... lentamente, percebendo e vendo o incêndio no corpo e no espírito do Jesse ressuscitado do mito e da lenda e do pó americano, se entregar toda e nada como no mundo do cinema, esticando a ilusão até ao tiro final que como nas fitas irá ficar suspenso. Suspensão e fôlego, são estas as velocidades e o tempo que importam. Obrigado pela coragem, Mr. McBride. E volte sempre que quiser.
 
(texto escrito para o LUCKY STAR - Cineclube de Braga)

sexta-feira, 8 de junho de 2018



That Cold Day in the Park, Robert Altman, 1969

Logo um ano depois de Robert Altman ter sido despedido do seu primeiro filme feito para cinema – no meio de dois machões, James Caan e Robert Duvall e o sonho da conquista lunar e da competição my penis is bigger than yours – por causa de sobrepor diálogos e tentar fazer coisas nunca antes tentadas em cinema num “Countdown” que podia ter sido muito melhor, o cineasta por tantos considerado outro machão sem par fechou-se com uma mulher no seu mundinho, e quando a largava numa narrativa gelada mas carregada das mantas da música das revelações primeiras da infância, era só para obter ainda mais reflexos dela. Só uma dica aparte para quem quiser tirar um curso de direcção de fotografia de borla: László Kovács, o mestre dos road-movies, ilumina e desperta cada partícula (interior que resplandece para nós) desse mundinho pequenino que é a casa das bonecas assombrada de Frances em constante epifania (existe outra filmada retoricamente dessa forma para vermos o contraste entre o real e o simulacro); tal como no “Brewster McCloud” posterior o igualmente genial Jordan Cronenweth e Lamar Boren reteram do chão e de toda a atmosfera viscosa cada ruga e cada fedor de metano dos sonhos do petróleo americano e das ilusões supremas em plano-sequência.

Há muitos muitos anos um jovem inconsciente fez a sua primeira grande viagem sem família, acompanhado pelos colegas de turma do nono ano português, todos eles finalistas e meios à deriva numa insularidade atordoante. A ilha em causa e a sua humidade ainda puxavam mais à transgressão ansiada, mesmo que não se saiba bem porquê e sem obrigações quase todos tivessem ido ver “La vita è bella” de Roberto Begnini”, fonte de purificação. Houve naturalmente perseguições inacabáveis nas ruas entre locais e continentais, espreitadelas nos duches femininos e jogo da bola, mas sobretudo uma primeira noite acordada com muito barulho, algumas garrafas e saltos na cama. Como fazíamos parte de um colégio de uma certa ordem religiosa, um colégio de freiras, veio a primeira das nossas acompanhantes meter ordem no galinheiro, uma freira alta, espadaúda, feia e arrepiantemente masculina, aquela que ensaiava connosco as músicas para a missa - “poe tua mão na mão do meu senhor da galileia” - e era a existência exemplar; espetou sem dó nem piedade uma estalada ao melhor amigo do jovem inconsciente e tudo acabou num milésimo. Sem saber o que fazer, já cada um no seu poleiro, cama desfeita, entra mansamente a nossa segunda acompanhante, completamente oposta à primeira, a quarentona loira, ousada no cigarro e no andar e no decote, olhar selvagem de doce, aquela senhora a quem dizíamos meia dúzia de palavras entre o corar e que só estaria no colégio por causa de boas famílias ou da inteligência irrefutável. Fez a cama ao rapaz, possantemente e delicadamente que até dói, disse “para esquecer”, deu ou pareceu que deu uma carícia, e deu boa noite. Tinha de ser tão longe de casa e de modo tão estranho que a religião livre da bondade me fazia a apresentação, me entregava a ficha de inscrição e a recolhia assinada.

“That Cold Day in the Park” é esse tal filme que poderia ser muito simples se as regras do nosso jogo não tivessem sido tão viciadas, no qual uma mulher sozinha numa grande casa sem propósito percebe que pode convidar para ela um jovem que foi vendo à chuva todo o dia não santo das suas janelas. Começa muito simples, muito franco, a câmara singela a seguir os bons sentimentos e o filtro do silêncio a envolver tudo. Ela quer fazer bem ainda sem saber porquê, ele faz-se de mudo e lembra um animalzinho. E de repente parece que estamos numa versão muda e com a psicologia desse período do cinema do “L'Enfant sauvage” de Truffaut. Mas como a mulher continua a falar, e a falar..., e o jovem tem uma segunda vida que ela desconhece, essa atmosfera abstracta, vacilante, carregada de desfoques e de falta de nitidez, de atalhos errados e de traçados desnecessários, dessincronias não planeadas, começa a desprender-se dos medos que vamos conhecendo à mulher, dos seus traumas, da sua teia confusa, do seu nojo, e da sua ausência de idade. O que estava a ser tão puro, lentamente, fica viciado sem domínio. Existe um instante fulcral, ela a despir-se toda – sem tirar uma única peça de roupa – para ele, mas no lugar dele só aparece a sua imemorial boneca já desmembrada. Se ele lá estivesse e escutasse talvez tudo pudesse encaminhar-se diferentemente e ao ministério do silêncio se juntasse umas harpas da harmonia. Mas as sombras, os cristais cegantes, a ínvia naturalidade das coisas e dos percursos conduziram a esse instante e tudo convergiu para a torção final nos infernos dos inocentes. Como quando se pensa que um segundo a mais ou a menos teria evitado a hecatombe. Altman é um dos grandes cineastas do não-linear, da recusa da atracção molecular e da sintonia, da refutação das regras quânticas que nos unem e nos separam aplicadas à alma - toca a perfeição e a condenação, não acaba a experiência com um relatório definitivo a passar álcool nas mãos: é o plano final de horror e compaixão.

Se a professora à primeira vista não-exemplar, mas só à primeira, não calhasse passar pelo quarto do jovem inconsciente... Se a freira tivesse vencido e convencido para regressar em breves e infinitos futuros... Se... Se tudo se tivesse passado ao contrário e o dístico das aparências obliterasse a catedral da verdade, talvez, porventura, uma faca final como aquela de “That Cold Day in the Park” tivesse adensado mais um pouco o silêncio da perdição inconsciente.

terça-feira, 5 de junho de 2018



À bout de souffle, Jean-Luc Godard, 1960

Jean-Luc Godard, o mais romântico e lírico dos críticos franceses da Cahiers du cinéma que no final dos anos cinquenta passaram à realização, segundo a opinião de João Bénard da Costa no primeiro dos catálogos da Cinemateca Portuguesa a ele dedicados. Godard que com À bout de souffle inventou e arrancou no contrabando o mais avant-garde dos petardos da Nouvelle vague que influenciaria inúmeros realizadores e artistas futuros, de Jim McBride a António-Pedro Vasconcelos, passando por Quentin Tarantino ou Wong Kar-wai. Que posteriormente teria períodos inclassificáveis numa obra inclassificável e estratosférica, desde a fase maoísta até se unir a Jean-Pierre Gorin e outros camaradas no Grupo Dziga Vertov, viajando até aos quatro cantos do mundo, de África ao Brasil, procurando a massa e os ecos de uma revolução política e artística. O JLG que flertou com Hollywood e sonhou com a sua reversão, que daí e de muitos outros lugares fugiu a sete pés para se enfiar em laboratórios revolucionários onde faria as mais impossíveis experiências com imagens e sons, sacando e testando raccords utópicos, revelando-nos ilusões e traçados possíveis, escancarando ou entrevendo as portas de novos mundos e linguagens... o intelectual furioso que à maneira de um James Joyce se apropriou da palavra gasta, da tecnologia, da filosofia, da história, da ciência, para ir muito além do conhecido, forjando limites e fronteiras... Puissance de la parole. O cinema e todas as histórias, inclusive a nossa, no monumental Histoire(s) du cinéma, uma das grandes obras do século XX, só comparável a Picasso ou à conquista da lua. Os emocionantes ensaios de poucos minutos, encomendas, cartas a amigos ou a falecidos, Dans le noir du temps... Tribute to Éric Rohmer. Jean-Luc Godard, que recentemente, depois de há muito usar o vídeo sem legislação alheia, enveredou pelos sinais, ondas, cores e combinações mais esconsas e oblíquas das 3 dimensões. O “eremita” que no passado festival de cinema de Cannes cumpriu a sua conferência de imprensa oficial via video-chamada, para deleite e espanto dos presentes e ausentes. Seriam precisas centenas de folhas biogáficas e hagiografícas para se começar a entender ou a perceber um pouco de toda esta complexidade, mas acreditando que cada um tem o seu Godard e o entende à sua maneira, fica-se por aqui. De resto, a irresistível juventude das suas primeiras obras, das cores às mulheres, são uma das primeiras e mais carinhosas lembranças de qualquer cinéfilo, estudante de cinema ou curioso. 

O filme de hoje será o último do nosso ciclo de cinema Francês, ponto de chegada de tanta experimentação e poesia até à sua data e constante inspiração até aos dias de hoje. Muito se escreveu, se estudou e comparou a propósito de À bout de souffle, desse filme breve como uma bala perdida e jovial como os primeiros amores, dedicado à Monogram Pictures que produziu filmes por tuta-e-meia de um Budd Boetticher, e de resto o nosso vídeo de apresentação no qual temos a honra de escutar Joel Yamaji já tudo isso nos resume, fornecendo-nos novas, pessoais e humanistas luzes nesta actualidade dominada pela vontade de poder e de falso brilho a custo de guerra mundial. Peça com diferentes velocidades, à imagem das reduções gripadas numa caixa de mudanças faiscante ou aos fôlegos arrítmicos de uma caixa torácica de limites excedidos em vícios ou em demasiada saúde, a oposição natural e trilhante entre um solo distendido por muitos minutos num quarto de casal improvisado e provisório em relação com os sopros e nervos dos fogos-fátuos das fugas, não fazendo sentido tal andamento sem o seu oposto. Gesto artístico e selvático que preferiu o fluxo sanguíneo à encenação e à idealização, a febre ao controle, a intempérie e infiltração da alma e o perigo da perdição ao racional e à lucidez dramatúrgica, pessoal, industrial ou outra para qualquer caso, soltando a máquina de filmar, a montagem e vergando toda a atmosfera para os estremecimentos em causa, sob o ritmo do Jazz em equilíbrios precários numa corda bamba absoluta, arestas cortantes, desarmonias vitais, síncope acossada, como o título português e a perseguição deste mítico filme. 

Obviamente que a partitura de Martial Solal é decisiva e descarna ainda mais as ruas, as personagens bamboleantes, os ínvios caminhos, a colagem modernista; é ela o motor do descentramento, o pistão que se solta da engrenagem e que reduz a cinzas a gravidade conhecida no terreno. Tudo isto, esta pressão entre as massas concretas dos meios e a metafísica desprendida dos corpos e dos cérebros, funde directamente com Miles Davis, desta época o artesão e artista que tanto se poderá ligar a Godard. Na monumental História do Jazz erguida por Ken Burns em 2001, define-se assim Miles: «Davis tinha apenas vinte e três anos em 1949 quando começou a frequentar o apartamento de Gill Evans. Ele queria encontrar uma nova moldura para o estilo distinto e introspectivo que estava a desenvolver. Bem, Miles tinha de encontrar um som, um estilo que contivessem a delicadeza da sua natureza. Ele mantinha a aspereza cortante lá dentro. A sua música não era chorosa nem fraca. Porém, tinha uma nova delicadeza. Um sentimento que faz o romance aflorar e o transmite às pessoas. É um som bastante delicado para ser de um homem. Lester Young, antes dele, era assim. Miles tem uma vulnerabilidade e não teme partilhá-la com quem o ouve. Quando ele permitiu que essa vulnerabilidade permeasse o seu som, a sua música tornou-se irresistível.» 

Para além da possível boutade, consegue-se arranjar paralelos para cada uma das comparações: também Godard frequentou apartamentos decisivos, mesmo que só com a sua caneta, o de Renoir e o de Rossellini, depois Fritz Lang como seu actor ou estátua, obtendo neles toda a frescura e liberdade; uma delicadeza, uma sensibilidade e uma aspereza cortante que segue da lembrança de Jean Vigo como do trompete para a câmara e para as convulsões de Belmondo, mais à frente para os grandes-planos de Anna Karina, chegando à ficção-científica toda nesta terra e não na lua de Alphaville; sem choro, nem fraqueza, mas sempre introspectivo, desbravando sendas dadas como seguras e combinando o que tem propensão para se afastar, nos anos 80 planaria pelos altos voos filosóficos mas mesmo assim cacofónicos de Passion até Prénom Carmen, atingindo eternos retornos e avessos na Nouvelle vague, já nos anos 90; Miles, que na sua missão desconhecida tocou no rock'n'roll, na electrónica, no noise, tirando o trompete de base ao jazz, também foi desconcertando todos os seus admiradores, seguidores ou puristas, em fusões e choques perfeitamente produtivos, isto é, esfomeados de humanismo, com todas as sensações; mas de tudo lhe chamaram, mal tratado como um suposto maluco ou chico-esperto, mano de Godard, não lhes perdoando supostos visionarismos ou atitudes herméticas. 

Uma certa delicadeza e uma certa aspereza. Um certo lirismo e nervo. Contemplação desassossegada. Nem mais. Cada um que aproveite e use o que quiser. Que deite fora. Recuse. Se aproprie. Que se salve. Contradiga. Redima. Se perca. Todos os caminhos em aberto.
 
(texto escrito para o LUCKY STAR - Cineclube de Braga)