sexta-feira, 8 de junho de 2018



That Cold Day in the Park, Robert Altman, 1969

Logo um ano depois de Robert Altman ter sido despedido do seu primeiro filme feito para cinema – no meio de dois machões, James Caan e Robert Duvall e o sonho da conquista lunar e da competição my penis is bigger than yours – por causa de sobrepor diálogos e tentar fazer coisas nunca antes tentadas em cinema num “Countdown” que podia ter sido muito melhor, o cineasta por tantos considerado outro machão sem par fechou-se com uma mulher no seu mundinho, e quando a largava numa narrativa gelada mas carregada das mantas da música das revelações primeiras da infância, era só para obter ainda mais reflexos dela. Só uma dica aparte para quem quiser tirar um curso de direcção de fotografia de borla: László Kovács, o mestre dos road-movies, ilumina e desperta cada partícula (interior que resplandece para nós) desse mundinho pequenino que é a casa das bonecas assombrada de Frances em constante epifania (existe outra filmada retoricamente dessa forma para vermos o contraste entre o real e o simulacro); tal como no “Brewster McCloud” posterior o igualmente genial Jordan Cronenweth e Lamar Boren reteram do chão e de toda a atmosfera viscosa cada ruga e cada fedor de metano dos sonhos do petróleo americano e das ilusões supremas em plano-sequência.

Há muitos muitos anos um jovem inconsciente fez a sua primeira grande viagem sem família, acompanhado pelos colegas de turma do nono ano português, todos eles finalistas e meios à deriva numa insularidade atordoante. A ilha em causa e a sua humidade ainda puxavam mais à transgressão ansiada, mesmo que não se saiba bem porquê e sem obrigações quase todos tivessem ido ver “La vita è bella” de Roberto Begnini”, fonte de purificação. Houve naturalmente perseguições inacabáveis nas ruas entre locais e continentais, espreitadelas nos duches femininos e jogo da bola, mas sobretudo uma primeira noite acordada com muito barulho, algumas garrafas e saltos na cama. Como fazíamos parte de um colégio de uma certa ordem religiosa, um colégio de freiras, veio a primeira das nossas acompanhantes meter ordem no galinheiro, uma freira alta, espadaúda, feia e arrepiantemente masculina, aquela que ensaiava connosco as músicas para a missa - “poe tua mão na mão do meu senhor da galileia” - e era a existência exemplar; espetou sem dó nem piedade uma estalada ao melhor amigo do jovem inconsciente e tudo acabou num milésimo. Sem saber o que fazer, já cada um no seu poleiro, cama desfeita, entra mansamente a nossa segunda acompanhante, completamente oposta à primeira, a quarentona loira, ousada no cigarro e no andar e no decote, olhar selvagem de doce, aquela senhora a quem dizíamos meia dúzia de palavras entre o corar e que só estaria no colégio por causa de boas famílias ou da inteligência irrefutável. Fez a cama ao rapaz, possantemente e delicadamente que até dói, disse “para esquecer”, deu ou pareceu que deu uma carícia, e deu boa noite. Tinha de ser tão longe de casa e de modo tão estranho que a religião livre da bondade me fazia a apresentação, me entregava a ficha de inscrição e a recolhia assinada.

“That Cold Day in the Park” é esse tal filme que poderia ser muito simples se as regras do nosso jogo não tivessem sido tão viciadas, no qual uma mulher sozinha numa grande casa sem propósito percebe que pode convidar para ela um jovem que foi vendo à chuva todo o dia não santo das suas janelas. Começa muito simples, muito franco, a câmara singela a seguir os bons sentimentos e o filtro do silêncio a envolver tudo. Ela quer fazer bem ainda sem saber porquê, ele faz-se de mudo e lembra um animalzinho. E de repente parece que estamos numa versão muda e com a psicologia desse período do cinema do “L'Enfant sauvage” de Truffaut. Mas como a mulher continua a falar, e a falar..., e o jovem tem uma segunda vida que ela desconhece, essa atmosfera abstracta, vacilante, carregada de desfoques e de falta de nitidez, de atalhos errados e de traçados desnecessários, dessincronias não planeadas, começa a desprender-se dos medos que vamos conhecendo à mulher, dos seus traumas, da sua teia confusa, do seu nojo, e da sua ausência de idade. O que estava a ser tão puro, lentamente, fica viciado sem domínio. Existe um instante fulcral, ela a despir-se toda – sem tirar uma única peça de roupa – para ele, mas no lugar dele só aparece a sua imemorial boneca já desmembrada. Se ele lá estivesse e escutasse talvez tudo pudesse encaminhar-se diferentemente e ao ministério do silêncio se juntasse umas harpas da harmonia. Mas as sombras, os cristais cegantes, a ínvia naturalidade das coisas e dos percursos conduziram a esse instante e tudo convergiu para a torção final nos infernos dos inocentes. Como quando se pensa que um segundo a mais ou a menos teria evitado a hecatombe. Altman é um dos grandes cineastas do não-linear, da recusa da atracção molecular e da sintonia, da refutação das regras quânticas que nos unem e nos separam aplicadas à alma - toca a perfeição e a condenação, não acaba a experiência com um relatório definitivo a passar álcool nas mãos: é o plano final de horror e compaixão.

Se a professora à primeira vista não-exemplar, mas só à primeira, não calhasse passar pelo quarto do jovem inconsciente... Se a freira tivesse vencido e convencido para regressar em breves e infinitos futuros... Se... Se tudo se tivesse passado ao contrário e o dístico das aparências obliterasse a catedral da verdade, talvez, porventura, uma faca final como aquela de “That Cold Day in the Park” tivesse adensado mais um pouco o silêncio da perdição inconsciente.

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