Breathless, Jim McBride, 1983
No vídeo de apresentação
ao Breathless
americano
o seu realizador conta-nos demoradamente a sua quota-parte numa das
narrativas mais fascinantes e trágicas da história de Hollywood –
a luta entre os realizadores e os estúdios, os autores e a
indústria, a visão pessoal contra a necessidade de vender bilhetes
e pipocas. Jim McBride esteve na Cinemateca Portuguesa a 2 de Maio do
presente ano para introduzir a sua primeira obra e conversar com o
público. Não no âmbito de qualquer retrospectiva sobre a sua
multifacetada carreira, não como homenageado num festival qualquer –
apesar do director da Cinemateca, José Manuel Costa, ter referido
que a McBride cairia como uma luva o rótulo de herói independente
no Indielisboa que acontecia por aqueles dias – muito menos por
estar a tentar realizar um filme no nosso país, mas sim porque veio
visitar Portugal e tinham-lhe falado muito bem dessa instituição.
Foi ele mesmo a mandar um email, a pedir encarecidamente que lhe
dessem a honra de mostrar um dos seus filmes em tão mágico lugar.
David
Holzman's Diary foi
então a escolha, que José Manuel Costa considerou uma das primeiras
obras que mais marcaram o cinema desde aí, filme independente não
por moda mas por vontade irrefreável. A introdução do realizador
foi breve, simples, right
to the point:
como em 1967 ele não imaginava o mundo da blogosfera, do youtube,
dos facebooks ou do instagram, e inspirado pela revolução da
nouvelle
vague
francesa – a sua obsessão definitiva, como estamos a perceber –
e aproveitando a nova leveza dos meios técnicos, decidiu
ficcionalizar um diário, com uma certa distância mas metendo lá
dentro muito da sua vida e experiência. Convidou amigos, captou o
seu quarto e o seu tempo, fixou as rotinas e os rituais de uma
geração e de uma época, saiu para a rua e foi ao encontro do
outro, deu a entender e lançou para futura análise o ar daquele
presente, do existencialismo ao Vietname.
Isto disse ele e disseram alguns dos poucos espectadores de uma
sessão que não foi badalada, sessão a que ele assistiu sem
“problemas de consciência”, tendo sido consensual que o Big
Brother
não trouxe revolução nenhuma e que um gesto destes já continha em
filigrana e terrível o embrião desse monstro anestesiante da
preciosidade de cada ser, antecipando-o sem a sua abjecção. Visto
hoje, o filme pode até já não ter o impacto da época, a frescura
da descoberta sem aviso, essa intimidade e despudor
chapados
no ecrã que em 67 não estavam profanados, mas além de uma
delicadeza e de uma verdade intrínsecas no instante sagrado, quando
a câmara sai largada porta fora e se torna puramente observacional,
ontológica mesmo, entregando-se às gentes e aos seus espaços num
registo puramente etnográfico de quem quer conservar a memória
envolvente, o esquema e a estrutura despegam para a emoção do
descerramento de um artefacto humanista e por isso mesmo inigualável.
Na dura Needle
Park
à beira dos anos 70 e nos seus passeios próximos redescobrimos
espantados toda uma parcela do mundo que tanta ficção tentou
emular, tal como quatro anos depois em The
Panic in the Needle Park,
um tocante filme de Jerry Schatzberg que como este prova que a
ternura não tem palco, nem raça, nem condição estabelecidas.
Voltando
a Breathless,
que foi aparecendo durante toda a conversa como o ponto de maior
estupefacção na sua caminhada, e regressando às descabeladas e
maquiavélicas aventuras oferecidas pela meca do cinema a quem tem
uma ideia contrária ao sucesso vigente, McBride apareceu diante dos
poucos mas bons que decidiram perder a última novidade ou o primeiro
premiado em grande forma, absolutamente jovial e leve, risonho,
simpático e a falar com qualquer um, inclusive num português bem
aceitável para quem teve um ano de aulas nos anos oitenta.
Ficando-se a saber da trucidante aventura que foi concretizar o
remake
da primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard, esperar-se-ia uma
figura taciturna, talvez mesmo uma personagem na defensiva, o artista
maldito ainda e sempre vergado por uma cruz que carregou e levou a um
porto tramado, mas nada esteve tão longe de qualquer desses clichés.
Forever
young,
acompanhado da esposa, de um filho e de uma filha ainda jovens,
estivemos na presença de um puro saído de um filme de Frank Capra,
um Mr. Smith ou um John Doe no que ao coração diz respeito,
lembrando o James Gray que há uns anos apareceu no festival Lisboa /
Estoril com uma ninhada de filhos a agarrar-lhe a gabardina enquanto
este contava a rir-se as suas lutas com os executivos televisivos que
rapidamente o despediram. O tipo de sensibilidade, de desprendimento
e de humor de quem foi percebendo as regras do jogo, o significado
das pequenas mas únicas vitórias que importam, as mãos limpas e a
grandeza de quem não sugou o sangue oferecido em bandejas douradas
mas antes resgatou o brilho e a redenção essenciais de arenas tão
retorcidas. Homens que saíram da elevação do cinema clássico
americano para as terríveis aventuras do cinema moderno, não
vendendo a alma ao diabo. McBride filmou com dinheiro, sem dinheiro,
com a película de 16mm e a câmara na mão emprestada e a ferver de
ideias mas também com stars
e
muitos camiões de produção, deu o seu toque a um episódio de Six
Feet Under quinze
anos depois de ter caído na The
Twilight Zone.
O esfomeado
que se perdeu de amores pelos falsos raccords,
pela energia renovadora e pela juventude de Godard ou de Truffaut é
ainda um dos últimos representantes da dura cepa dos valores de John
Ford ou Howard Hawks. Sem resquício de bazófia ou de ressabiamento,
apreciando nos dias de hoje em que não vai filmando tanto Wong
Kar-Wai como Nuri Bilge Ceylan. Nascido em 1941, é um iniciante.
«About
the future, which I don't know, you don't know! Nobody knows it! So
fuck it, roll the dice!»
Quando
se sugeriu a McBride a realização de um double
bill em
Braga com os dois Breathless
a
sua humildade voltou a dar cartas, disparando imediatamente que
talvez fosse uma seca para os espectadores, ver a mesma história
duas vezes... E apesar do fascínio, da admiração de fã número um
ou da aproximação sempre imprevisível ao monstro sagrado – Mc
contou ainda que uma vez falou ao vivo com Godard mas ele, já
taciturno, quase só deu os bons dias – não existe nada de
reverência contraproducente ou de citação fácil – mesmo que se
prove que a iconografia e a carga explosiva está do lado de Pierrot
le Fou,
não vai ser Rimbaud a esbracejar mas algo bem mais instintivo e
primário.
Godard, nos seus filmes e nos seus escritos, ensinou muitas vezes
como amar os «bons
americanos»
- de John Wayne a Manny Farber – e o filme de 1983 tem orgulho
disso. Richard Gere emula Jerry Lee Lewis e baila com Sam Cooke,
imita Jesse James ou os vertiginosos de Gun
Crazy do
filme de Joseph H. Lewis para encontrar a polaroid,
o super-herói ou a verdade crua e espampanante de si mesmo. O
movimento geral e a electricidade não vão sobre os trilhos e
estrilhos do jazz modernista ou da pirotecnia estilística mas antes
desliza na Americana
clássica da velha Hollywood de fundos falsos, céus encarnados a
fogo como os sentimentos em causa ou espalhando magia pela escala de
planos infalível dos tarefeiros
– e
neste ponto a participação, as viagens e a poética fascinante do
texano L.M. Kit Carson no argumento serão decisivos; Americana
que não significa nostalgia vácua, muito menos mediação
simbólica, antes fusão e luta com os quadradinhos da
banda-desenhada cósmica que se debate entre o amor mais puro e a
liberdade do absoluto, embate com o precioso cinema ele mesmo nessa
cena orgástica em que o fugitivo possui a miúda na parte de trás
da tela, numa assunção dessas imagens e sobretudo dos diálogos
míticos mas também numa violação desses códigos e da subtileza
de uma arte que sugeria mais do que mostrava, respiração frenética
do beatnik
de
Kerouak torcendo e digerindo as ondas jazzísticas. De Las vegas,
passando pelo deserto até Los Angeles e suspirando pelo México com
o mesmo fôlego ou falta dele com que Jesse deseja a miúda francesa
– a devolução principal de Mc a Godard – o Breathless
de 83 é uma
obra puramente americana e que mete em causa toda essa mitologia. Um
filme com tomates,
como tudo o que é singular.
Sob
o signo de um nova Americana
que
aglutina
e mete em guerra o classicismo e a Nova Hollywood dos anos setenta,
mas capitalmente
sob
o domínio ou a tragédia da figura primitiva do hustler.
Que pode ser o citado Jesse James, Theodore Roosevelt, o Paul Newman
do filme de Robert Rossen, Michael Jordan, Sean Combs ou qualquer um
dos biliões de anónimos nessas pradarias ou bilhares que perderam
e dobraram a parada. Para
mesmo aqui a questão e a moral ser fugidia, ambigua, sem centro, em
dialécticas essenciais, precisamente actuando à maneira dos
hustlers
originais
– cowboys
ou
matadores,
colonizadores
ou índios – ao exemplo da inacreditavelmente bela e perigosa cena
da piscina, em que ele assume a ela o
“tudo ou nada” do
seu credo, para lá do “tudo”
ou do “alguma
coisa”;
ou, talvez ainda mais sintomático, quando William Faulkner é
contradicto para se preferir o “nada”
à
“dor”,
chegando-se mesmo a utilizar o maior escritor americano como quem
ousa cortar a rede do abismo sexual. Pelos fundos barrocos ou
pós-modernistas de neons
tipicamente anos oitenta, composições fotográficas ludibriantes ou
ruínas plásticas,
estamos mais uma vez no Romeo
and Juliet
de Shakespeare e soterrados na profusão de símbolos, estampas,
iconografias e lixo dos novíssimos tempos. Talvez por aí o mais
bonito, a dádiva deste remake
parido viciado e virgem a um mesmo tempo, seja o movimento da bela,
da Monica Poiccard feita por uma Valérie Kaprisky bazada
da idealização da BD para a carne bruta desta paisagem suja, aura
total utilizada assim por uma única vez: inicia-se cheia de medo, a
tremer e a pedir ao delinquente
que se vá embora, “não fode nem sai de cima”, preservando as
cunhas
e
as saídas profissionais a todo o custo, para... lentamente,
percebendo e vendo o incêndio no corpo e no espírito do Jesse
ressuscitado do mito e da lenda e do pó americano, se entregar toda
e nada como no mundo do cinema, esticando a ilusão até ao tiro
final que como nas fitas
irá ficar suspenso. Suspensão e fôlego, são estas as velocidades
e o tempo que importam. Obrigado pela coragem, Mr. McBride. E volte
sempre que quiser.
(texto escrito para o LUCKY STAR - Cineclube de Braga)
Sem comentários:
Enviar um comentário