terça-feira, 27 de agosto de 2019

Era Uma Vez em... Hollywood




Hollywood, 2019. O que importa da reconstituição de Quentin Tarantino em Once Upon a Time... in Hollywood acontece no rolar langoroso e irresistível do caddy de Brad Pitt pelas vias-rápidas ensolaradas de Los Angeles, nos seus bairros esconsos e achatados e em anacrónicos ranchos magicamente concessionados. Como se os espectros e os assombramentos de idades antigas de uma Mulholland Drive descessem à urbe maquinada e pairassem no betão e nas maquetas desmultiplicadas da meca do cinema. Um sentimento extasiante de ameaça e de pulsões vitais onde o cineasta plana e gere a seu bel prazer, e junto a isso os actores à beira do falhanço, os duplos, as estrelas caducadas e esquecidas, as inclassificáveis novas raças, enfim, aquilo para que nasceu, que tem que ver com os resquícios, a excepção e os detritos e não os grandes temas que tocou nos últimos filmes. A melhor definição do filme de QT lia-a de alguém a afirmar que parece um filme de Andy Wharol, e é perfeita pois nesses momentos onde nada se parece passar perpassa toda uma época, dos néons ao sexo. Se esse rolar e desenrolar perto do crepúsculo durasse para sempre, elidindo desse modo a catástrofe, isso sim era a maravilha última.

Hollywood, 1969. Joan Didion. Frank Perry. Anthony Perkins. E sobretudo, sobretudo, Tuesday Weld. O tempo deferido de Tarantino liberta uma nostalgia que tudo cobre e possivelmente amansa, e que está completamente ausente do tempo bruto e presente de Play It As It Lays. Desde Jackie Brown que não tínhamos no seu planeta personagens tão humanas e complexas, mas é impossível a Leonardo DiCaprio e ao seu anjo Brad Pitt escaparem da autoconsciência de uma época de perfeição, de transição e de tragédia. No filme de Frank Perry tudo está justo, frágil, documental, esquizofrénico, pois cada elemento conflui para esse espelho estilhaçado e para essa paisagem calcinada que é o mundo dos simulacros do berço aterrorizado do cinema em confronto consigo e com as suas crias. A vida chã e corriqueira num quotidiano que é ele mesmo um filme, o paradoxo, a normalização.

Tuesday Weld, no seu rosto belo e desamparado, estão as tentativas de suicídios precoces, as violações escondidas, a bebida e a droga trocadas pelo leite materno, o incesto praticado pela terra mãe. Anthony Perkins, que viu os cadáveres empalhados e os cadáveres ambulantes de carne e osso da Hollywood dourada de que fez parte Psycho, que vislumbrou e seguidamente tocou nas matérias proibidas dos quartos e dos motéis de segredos indecifráveis de visões insuportáveis, Hamlet estupefacto dos desertos americanos, essa casualidade de good looking boy atirado aos túmulos sem mapa da meca, casualidade não premeditada que admirava a monumentalidade e a errância de Orson Welles e que sofreu por não lhe ter dedicado um livro. Joan Didion, e a descrição abstracta e exacta das linhas cruzadas da cidade dos anjos. Frank Perry e a total exposição ao mundo e ao assunto, sem pensar no seu prestigio nem no legado dos tantos film on film.



A atracção entre Tuesday e Perkins datava dos desejos ilegais da infância e de afastamentos conscienciosos, e assim vai alastrar a toda a narrativa, culminando numa pietà ensonada e atordoada pelo desfasamento lento, muito lento, das expectativas e dos sonhos da indústria do cinema; e também poético, ao nível dos home-movies, desta vez fotografados pelo grande Jordan Cronenweth que futuramente aplicaria degradações de calibre idêntico ao tempo avançado mas também corrompido de Blade Runner; aquelas passeatas entre os dois à beira do mar, ao declinar do dia, dispensaram o século da máquina oleada das ilusões, para tudo ser intimamente muito mais ilusório na sua serenidade e plenitude provisórias.

Frank Perry, constantemente ignorado e enxovalhado pelos seus contemporâneos e pela História, usa todas as ferramentas exclusivas dos processos miríficos e hipnóticos do cinema original – a voz-off deste ou do outro lado do espelho, a montagem paralela e inatingível, as perfurações várias, a parábola, a possível confluência de todos os tempos, o estrangulamento cronológico e espacial, o desfasamento entre a imagem, o som, os sentidos e os significados, os ralos narrativos e literais – para aglutinar e confluir a serpente bíblica (e as serpentes bem terrenas que dão festas em mansões) que tenta Eva ou que é o demónio ele mesmo, e os tiros que essa Eva moderna ou essa cowgirl drogada pela espera do sucesso dispara ao calhas no terreno árido das odisseias de outrora; aglutinar e confluir, extravasar ou exorcizar os fetos atirados para o caixote do lixo em nome do ouro dos óscares e as voltas nos labirintos dos jardins dessa Maria in Wonderland ou nas serpenteantes vias citadinas sem rei nem roque… A espera, a espera é o pior de tudo naquela terra, como na de cada qual, como na nossa, a espera que mata, a espera antes do “acção”, a espera em nome de um possível nada. Quentin Tarantino obviamente tem uma cópia em película de Play It As It Lays e assim desacelerou os seus ritmos explosivos para tornar tudo mais rápido do que o mundo em espera pelo desenlace atómico.

O desenlace de Once Upon a Time... in Hollywood pode ser duas coisas: ou maravilhosamente justiceiro, como que a rejustificar a invenção da nova arte que suporta o milagre; ou perverso, grotesco, essa máquina artística monumental que projecta a ser espezinhada pela vida real, que, ao contrário do que Quentin também pode dizer, é bem mais real do que as telas. As últimas palavras, e sentenças, de Play It As It Lays, ditas pela irresponsável e suicida Tuesday Weld: «I know what "nothing" means, and keep on playing. Why, BZ would say. Why not, I say.» A planarem no nada, uns matam-se, como Perkins, outros ou brincam com o fogo ou redimem tudo, caso de Quentin, outros ainda continuam a jogo, jogando até com a morte olhos nos olhos, caso do rosto mais belo e desamparado desse tempo, Tuesday Weld rodeada de veneno e de seus belos semelhantes, fazendo da consumição o baralho fornecido pelo destino, again, and again, and again… lado a lado com a Wanda de Barbara Loden e a Shirley Knight de The Rain People, imensamente mais estoicas do que Fast Eddie Nelson. O sublime, preso por invisíveis liames. Não se pode passar impune por aquilo que não se é, mesmo que o brilho seja soporífero e irresistível.

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