terça-feira, 24 de setembro de 2019

Ad Astra, de James Gray, 2019



O instante de Ad Astra em que o Filho corta o cordão umbilical que o prende ao Pai, tendo por testemunhas o silêncio do cosmos e o anel de poeiras de Saturno, é a capela perfeita da religiosidade e da mitologia do cinema de James Gray.

Mesmo que a filosofia e o fundo de base confluam na complexa matriz Conradiana, tudo nesse momento difere dos sentimentos e dos destinos de Heart of Darkness, numa aceitação das trevas e do nada que transporta o filho ao amor puro com que fica no final.

Mas as crenças incondicionais já estão espalhadas ao longo de todo o conto, conto muito antigo nas suas parábolas e razões, agora num futuro estelar e sem fronteiras, sendo os problemas da inadaptação do humano ao seu meio de rotação e ao convívio múto matematicamente os mesmos do tiro de partida dado pela entidade de comando do Big Bang.

A habitante da lua que só em pequena conheceu brevemente a terra embrenha-se em claros confrontos palacianos; os problemas da família McBride, passados muitos anos do estilhaçar dos laços e do abandono, têm que ver com solidão, individualismos e o incontrolável animalesco que nos aproxima da selvajaria, de igual para igual com os símios por nós embrutecidos. Esse homem que viu para lá do que qualquer semelhante imaginou, para lá das estrelas e do opaco comprovado, continua a recalcitrar ódios puramente humanos e terráqueos, de onde a transcendência de Deus ou não procede ou procede em vias lácteas indecifráveis.

Ainda a hipocrisia dos maiorais, a frieza dos que podiam ser companheiros de viagem mas dependem do mecanismo contribuinte, o mundo clínico aninhado ao mundo político como nas grandes eras fascistas - tudo enlaça na dramaturgia clássica e nas angústias existenciais. Nada a ver com os profetas tecnocratas de uma nova raça que anunciam o chip cerebral inserido ao feto para se cumprir um destino robótico, anódino e higiénico.

A crença, o medo, o infinito. Deus a pairar sobre tudo o que pode ser beleza, uma beleza infinita que só rima com a tristeza infinita do pleno mistério, ambas puras e caladas, olhadas sem demais por uma câmara encantada por isso, com naturalidade; tal como as superfícies divinas que o Pai experimentou distanciado até à loucura do encantamento sem nunca lhe ser permitido tocar na matéria do invisível que lhe revelaria as outras formas de vida.

O sublime em Ad Astra é geometricamente proporcional à dúvida mítica de Tomé em relação à Ressurreição. Não foi por essa dúvida que o filho avançou pelo coração das trevas agora em sentido absoluto, mas antes para confirmar a sua semelhança no Pai, aceitar e libertar-se, uno. James Gray abre assim todo o terreno para todos os westerns possíveis e inscreve a Bíblia sagrada nas esfinges cósmicas. A fidelidade e a inadaptação, a crença e a camisa de forças cósmica, a beleza total e o Zero, sombras e luzes indissociáveis na entesourada e côncava antimatéria com que são tecidos os sonhos que nos teletransportam. Visto o nada e Deus, a cura.

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