A Máquina Infernal, por
José Oliveira
Quem teve a sorte ou a maldição de
acordar para a cinefilia pelos começos ou meios dos anos dois mil teve a sorte de
encontrar o que hoje já é visto irremediavelmente como um Paraíso Perdido. Os
blogs de cinema. Neles se investia quase todo o tempo que sobrava dos três ou
quatro filmes vistos durante o dia ou noite fora. Neles se conheciam parceiros
com a mesma pancada pelo mundo fora, do Brasil ao Japão. Ao contrário das redes
sociais sofisticadas que depois tudo isto destruíram, tinha-se polémicas,
zangas, discórdias, mas era tudo em nome de um entendimento superior. Mesmo nas
terríveis zangas quase todos (claro que havia idiotas…) se comportavam como
Homens (isto é, Seres Humanos, homens ou mulheres, na potencial plenitude, não
conhecendo a abjeção fascista ou proto). Todos ou quase todos assumiam a irremediável
imperfeição a que estamos sujeitos nas paixões extremas. Além de que os
escribas só interagiam se houvesse uma certa confiança, uma certa admiração, um
certo respeito; nada como o regabofe e o vale tudo facebookeiro. Tudo em
nome de cauterizar um pouco a ferida que tantas imagens e sons imediatos ou longínquos
abriam sem cessar, para lá ou cá da infância. Tudo em nome de nos orientarmos
um pouco da perdição do que era ter caído num deserto de Raoul Walsh ou num bairro
de Yasugiro Ozu. Como entender as durações devastadoras dos monólogos de Jean
Eustache ou a violência da palavra e da concentração em Straub/Huillet?
Falava-se com o amigo americano ou brasileiro.
As caixas de comentários agora
analógicas e obsoletas desses blogs eram uma janela vital e estremecedora
(porque da ordem da revelação, da epifania, do soco no estômago e do
consequente vómito e limpeza) para o mundo inteiro. Da doença dos filmes
passava-se para o campo intimista e novos amigos e visões outras do mundo
ficavam para toda a vida. A indecência das novas redes sociais e a covardia
inerente em nada se comparam às lealdades e combates principescos de outrora. A
par disto, as revistas eletrónicas empenhadas, questão de vida ou de morte, a
ver se arranjávamos um modo de vida, a ver se a casa ficava arrumada. John Ford
igual a Lucio Fulci. Pedro Costa a abrir para Vittorio Cottafavi. Monte Hellman em double bill louco
com John Flynn. Histórias do Cinema producentes, lógicas porque/ou
ilógicas, que nos amparavam, nos davam sentido, nos mostravam o mundo todo.
Elidiam e matavam os falsos medos. Despiam e tornavam ridículos os manuais
escolares cegos, catequistas, bem como a televisão castradora. Davam os horizontes
largos (como o cinemascope) que a infância e a adolescência controlada
pelos regimes não-oficiais e pelos atavios e espartilhos dos bons costumes diminuíram.
O mundo dos sentimentos e o mundo
físico, das paisagens e do peso do ar. Citava-se Godard, Lourcelles ou Heidegger,
mas raramente era por pose. O que interessava era perdermo-nos para,
possivelmente, encontrar um resquício de lógica e de suspiro nas cinzas. Poderia
citar mil blogueiros ou amigos ou desconhecidos ainda que foram
formativos, importantes, inesquecíveis. Que abriram perspetivas e abriram a
sensibilidade e a inteligência. De João Palhares a Bruno Andrade. De Andy Rector
a Álvaro Martins. Mil… Mas o pretexto para regressar um pouco ao Paraíso
Perdido, para o voltar a entrever, foi a primeira obra de Francis Vogner dos
Reis. Francis foi um dos muito grandes da era dos blogs e das revistas como
devem ser. Hoje fez um filme arriscado, sensual, sensível, terrífico, protegido
por amor. Uma «fábula de horror», para o citar melhor do que eu seria capaz de
escrever.
O mais do que não quero dizer é
que está lá tudo, intacto, desde o último texto que dele tinha lido: o nosso
presente trágico, politicamente e humanisticamente; o passado com os seus
holocaustos tecnológicos e sociais; a maneira de fazer artesanal e a paixão
pelos géneros cinematográficos; o léxico que sempre partilhamos quando entre
todos falávamos no Messenger, mas ao mesmo tempo uma necessidade e uma invenção
necessária que é tão horrorosa e grave como alegre. A Máquina Infernal não
teve a sorte ou a má-sorte ou as influências necessárias para ser mostrado num
festival de cinema português. Portanto, passará num Cineclube, local último de
liberdade e seriedade. No Cineclube Gardunha, no Fundão, a 21 de dezembro (em doube
bill com Mato Seco em Chamas de Joana Pimenta e Adirley Queirós). Sessão
perfeita para o Natal. Urge tanto pensar no delírio e nas formas apropriadas e intransmissíveis
a cada filme, como no amor que perdemos e que podemos recuperar sempre. Nem que
seja clandestinamente, pelas brechas ou pelos pistões da grande máquina
infernal que dia a dia nos pretende torturar. Na treva e no maquinismo
encapuçados, meter areia e não o enganador óleo, aprendendo e apreendendo Amos
Vogel.
A entrevista a ler também tinha
de ser assim: em bruto, em brasileiro-brasileiro, sem grande edição, para depois
podermos ir a um dicionário em papel ou perguntar a um amigo da terra de
Caetano ou de Chico ou de Glauber o que quer dizer certa palavra. Como no
antigamente. Absolutamente moderno. O exercício foi proveitoso. Francis Vogner
dos Reis fez um grande filme.
+
Entrevista
- Quando te conheci e comecei
a ler os teus escritos, nos inícios deste milénio, fazias parte de um grupo de
críticos de cinema veementes que ainda hoje prevalecem, e que se interessavam
muito por questões de mise en scène e de classicismo versus contemporâneo. Qual
a tua relação atualmente com a crítica de cinema?
A obsessão que eu tinha em
escrever sobre muitos dos filmes que via (era uma obsessão formativa) eu não
tenho mais, mas admiro quem ainda a tenha, como meu amigo Filipe Furtado, por
exemplo. Acho coisa necessária, fundamental. Acredito hoje, mais do que nunca,
na necessidade da crítica, justamente porque ela é cada vez mais rara. O cinema
ainda é uma reserva de complexidade e imaginação em um mundo onde as imagens
são excessivas e desidratadas de imaginação. O organismo complexo e
paradoxal que é um plano de cinema (o que vemos é o que vemos e ao mesmo
tempo aquilo que não se deixa ver ou compreender com facilidade) marca uma
diferença no universo contemporâneo quando as imagens que vemos em robusta profusão
são eficientemente comunicativas, céleres no tempo do consumo, do uso, do descarte
e que vai se tornar superada no instante seguinte. Imediaticidade a todo o vapor.
O plano de cinema exige – ao menos como ele se entende mais como plano do que
imagem - uma distância e sugere uma economia de tempo que lhe é próprio. O
plano de cinema ainda é uma unidade da complexidade do mundo das imagens
atuais. Não é o único, mas em seu melhor continua sendo o que há de mais forte
porque capaz de romper o tempo do automatismo cognitivo e da ansiedade trágica.
Infelizmente parte do que se denomina crítica adere, sem reservas, a esse
regime de imagens que reduz a experiência ao automatismo cognitivo e ao regime
de representação. Se o cinema hoje é necessário como reserva da imaginação (social,
política, simbólica) a crítica deveria criar reverberação dessa imaginação e
ser, ela também, partidária da imaginação, não do pragmatismo teórico ou do
resenhismo ligeiro. Hoje temos novos problemas e quase todos são mediados pela
imagem. A crítica é, nesse aspecto, necessariamente atual como afirmação de
outra relação possível com o cinema. E outra relação possível com o cinema nos
devolve ao mundo acrescido de ideias, e atravessados por sentimentos que podem
nos deixar menos indefesos, mais vigilantes, certamenta mais curiosos e também
desconfiados. O cinema não está em oposição ao mundo, mas tem o mundo como
matéria e, no fim das contas, se dirige a ele.
Para responder essa pergunta,
volto um pouquinho a algo que você escreveu na pergunta acima sobre a geração
crítica e sua relação com classicismo, mise en scène e etc. Essa geração
de críticos que fundaram as revistas importantes no Brasil na primeira década
dos anos 2000 (Contracampo, Revista Cinética, Foco revista de cinema, Paisá) era
composta de perfis muito variados e eu estive em diálogo com todos esses grupos
que tinham como berço a revista Contracampo, mas que se dividiram em
publicações de diferentes orientações teóricas e políticas. O interesse pelo
classicismo foi a obsessão de uma parte desse grupo, não do todo. Outros se
interessavam mais por esforços em entender o cinema feito hoje e outros muitos
voltados às investigações acerca do cinema brasileiro, sua atualidade e suas
tradições. Alguns desses críticos tinham sim esse interesse por questionarem o
cinema contemporâneo desde o legado de uma modernidade que elegeu a mise en
scène como cavalo de batalha e a tradição cinéfila de amor ao que foi
chamado de cinema clássico (o estilo clássico, os seus mitos) foi vista como um
campo de conhecimento e prazer necessários ao contemporâneo. O cinema contemporâneo
foi visto como objeto de desconfiança, como se as formas que se apartassem de
alguns pressupostos formais e teóricos da cinefilia moderna tivessem vocação à
fraude. Eu, ainda que eu fosse (e ainda sou) admirador contumaz de Ford, Lang,
Walsh, Hawks e, mais recentemente, de cineastas com estilo herdados de uma
tradição que foi chamada de clássica (Gray, Eastwood), nunca aderi a essa tese
da decadência e da escassez do contemporâneo desde a perspectiva
da defesa do classicismo, um classicismo, diga-se, que não era tomado só no
culto aos filmes clássicos, mas também se orientava por uma certa abordagem e
repertório crítico defensor dos autores clássicos que numa certa altura me
pareceu demasiadamente idealista, e desde o Brasil, de um cosmopolitismo abstrato.
Meninos de apartamento no Brasil de 2010 se portando como dândis parisienses
dos anos 1950, só que sem lastro algum e não aguentavam um soco na cara. Mesmo
lógica dos adolescentes que fazem cosplay de animes japoneses. Por outro lado
eu estava atento ao modo como o cinema contemporâneo – incluindo parte da
crítica – aderia com facilidade aos novos produtos na prateleira do mercado de
ideias e autores contemporâneos. Quem lembra hoje da tola hipótese do “cinéma
subtil” de Emmanuel Burdeau e do cinema de Eric Khoo? Ninguém. Nem Burdeau deve
se lembrar. Mas acho que à época eu mesmo dei uma dimensão maior a essas
fraudes do que elas realmente tinham. Acontece que parte da crítica brasileira
precisava de algo a se opor, de um inimigo visível que fosse inimigo da imaginação,
logo do grande cinema. Aí, como Dom Quixote, elegeu-se moinhos de vento,
gigantes perversos com monstruosidades que não duraram um verão, aí acusou-se
também a outra fração da crítica menos cinéfila de fazer publicidade do “mau
cinema” e etc. Essas divisas eram improdutivas e psiquicamente opressoras.
Erigiu-se um super-ego tão castrador que muitos dos jovens críticos cinéfilos que
queriam ser cineastas não o foram por trabalharem com critérios tão
inatingíveis em uma realidade material e cultural diferente daquelas que tornou
possível o cinema moderno. Esses jovens críticos que repreendiam o cinema
contemporâneo por não ser o ideal que cultivavam em sua fantasia. Entre a
fantasia e a realidade criou-se o ressentimento, e no ressentimento a inércia e
a imobilidade...
Mas falo também do que se ganhou
naquele período: essa geração crítica se insurgiu contra a monotonia acomodada
e desinformada da crítica corporativista dos grandes jornais e a autoridade da
universidade e de alguns de seus especialistas. A voracidade desses jovens em
querer falar dos filmes, em vê-los, fazer genealogias, resgatar o cinema
moderno brasileiro reconfigurou a cultura de cinema no país junto com os
arquivos compartilhados da internet (de filmes, revistas e livros), despertando
ciúmes, pois esses jovens não tinham atrás de si instituições ou veículos de
imprensa que os legitimasse de saída. O que os legitimava era o próprio texto.
Isso ajudou a estabelecer um novo cenário cultural, cinefilias, influenciou jovens
realizadores...
Naquela época eu me dividia entre
a turma dos cinéfilos obsessivos e dos críticos mais empenhados em interrogar o
cinema do tempo presente, mesmo com o risco da frustração. Sempre acreditei (a
exemplo dos críticos do cinema moderno) que crítica precisava intervir no
imaginário do seu tempo e acreditei (e ainda acredito) que isso se fazia entre
a necessidade de uma genealogia e atenção ao modo como os problemas novos e
velhos emergiam no cinema da atualidade, as dívidas históricas e etc. É esse
para mim o campo de conflitos do trabalho da crítica ontem e hoje. Hoje, por
exemplo, me considero ainda e sempre um cinéfilo e algumas divisas epistemológicas
atuais (como velha cinefilia versus nova cinefilia) me dizem pouco respeito. Acho
uma bobagem, uma fogueira das vaidades. Escrevo pouco hoje por questão de tempo
(dou aulas em universidade, trabalho em um festival e estou empenhado em fazer
filmes), mas também se hoje eu tivesse mais tempo disponível para a produção
crítica que tive outrora escreveria menos textos, mas maiores em extensão e
mais detidos em um assunto ou em um autor. A necessidade de outro usufuto do
tempo e outra concentração nas coisas se impôs na minha vida atual.
Fica na minha mente o que se
perdeu, como você me pergunta... não sei, acho que o entusiasmo de alguns
contemporâneos meus se perdeu, a necessidade da cinefilia mais robusta também
não me parece estar na ordem do dia, mas isso tem a ver também com o contexto
tecnológico e político em que vivemos no Brasil. Hoje
na internet e na vida social para além dela há, por um lado, grupos de pessoas
que veem alguns filmes e escrevem, mas que carecem de curiosidade e interesse
pela cultura cinéfila, não fazendo questão de entender a história do cinema. Por
outro lado há outros que acham que o cinema só faz sentido respondendo às
demandas justas de representação (representações corretas e positivas de
pessoas historicamente estigmatizadas) e representatividade (diversidade na
frente e atrás das câmeras) e aí se lançam a um anacronismo com a história do
cinema. Enfim, há mil tendências e a
Internet revela e organiza muitas delas. No Brasil também esse lado cinéfilo-formativo
(retrospectiva de cinematografias e obras de cineastas) foi radicalmente
atingido nos últimos anos. Muitos desses eventos (com filmes, debates e
catálogos) eram feitos com editais e políticas públicas que os últimos governos
destruíram. Enfim, a complexidade do processo brasileiro não é possível se
fazer em uma síntese muito breve.
Boa pergunta porque ela é difícil
de responder. Mas a hipótese da distância apropriada, da consciência e da síntese
me parecem boas, ainda que o processo de direção seja completamente diferente
da experiência de escrita de um texto, pois lidamos com um outro caminho
criativo e outros estímulos. Quando escrevemos um texto temos a referência de
uma obra pronta, mas aberta à interpretação, quando fazemos um filme relacionamos
a ideia abstrata à materialidade das coisas longe do ideal – uma locação, uma
atriz, uma luz e até mesmo a limitação técnica estão longes do “ideal”
abstrato, mas nos oferecem possibilidades novas, inauditas, muitas vezes mais
interessantes porque nos pede uma abertura – de olhar, de escuta, de elaboração
– que é uma aventura em grupo (com a equipe), é um trabalho de modulação no
qual corremos o risco de realizar uma grande merda ou fazer algo interessante.
O risco é o mesmo. Dirigir é se acostumar a esse risco e se lançar a ele. O
segredo é esse e só se descobre ele no processo de realização. Acho bom ir para
o set sem grandes certezas. A crítica, como princípio, tinha algo disso para
mim, em especial quando amava um filme. Eu nunca soube totalmente os motivos do
amor. Escrever sobre um filme era uma maneira de se lançar também em uma
aventura e esclarecer algo desse amor, e ali eu descobria um mundo maior do que
meus afetos pessoais pelo filme. Ali eu organizava as reverberações dessa
experiência de amor em ideais que eu elaborava como texto crítico. Fazer um
filme é o contrário: você parte das ideias para um mundo que é maior e mais
intricado do que elas. Esse atrito é criativo. Cabe ao cineasta dar uma forma a
esse atrito.
A Máquina Infernal nasce desses
desejos na tentativa de transfigurar uma imagem de minha terra natal – a região
industrial chamada Grande ABC – em imagens que remetem ao sentimento de medo,
de horror e de cansaço, algo que lá se capturava no ar além da convencional
fuligem industrial. Essa transfiguração
propõe não só a imagem da violência da precariedade e do desamparo em forma de
pesadelo, mas também de uma beleza que resiste à fadiga de um cotidiano
fatalista. Numa realidade que estimula o horror o amor vem pelas frestas e ele
também é tão incontrolável (talvez mais incontrolável) quanto a monstruosa
máquina de produção. É uma questão de sobrevivência e de beleza. Um amor eros
(do casal), mas também um amor ágape daquela comunidade de trabalhadores.
A ideia original surge de um caso
na região industrial do Grande ABC que rendeu um estudo sociológico presente no
livro “A aparição do demônio na fábrica no meio da produção”, quando na década
de 1950 quatro operárias de uma linha de produção desmaiaram em uma mesma
semana e ao acordarem relataram terem visto o demônio as espreitando em um
canto do galpão. Obviamente o estudo não investiga o fato de caráter místico, é
um estudo materialista que buscou entender as condições de trabalho daquele
momento, a mudança no regime de produção, as características da modernidade
industrial brasileira e o imaginário do operariado. As operárias tinham vindo
do universo rural e simbólico calcado em um catolicismo de cariz quase
medieval. O autor chama essa modernidade de modernidade anômala, pois o arcaico
não neutralizaria a modernidade racional da fábrica, e nem a modernidade da
fábrica era a superação do arcaico. No Brasil essas dimensões coexistiriam ainda
hoje. Essa antiga fábrica existia nas cercanias do bairro em que cresci e essa
história sempre me fascinou. Acontece que durante a escrita do guião (roteiro,
como dizemos aqui) não quis fazer um filme localizado lá nos anos 1950, quis
explorar algumas das novas contradições do trabalho em uma fábula de horror não
em uma investigação realista. Desde sempre quis fazer um filme de horror. O
cinema de horror fez a minha formação e a da minha geração. Gosto particularmente
dessa poética e sempre me pareceu campo fértil para alegorias de um país que se
fez entre o moderno, a violência desse processo social e o espectral de uma
cultura calcada no invisível, no metafísico, no religioso. Aí na pesquisa
entendi que as fantasmagorias atuais tinham características próprias, a fábrica
era assombrada por medos reais (a falência, o desemprego, a morte, o desamparo,
a fragilidade do movimento trabalhista atual) e a presença assustadora de sons
e maquinárias novos e antigos que possuiam algo de assombroso e mesmo monstruoso.
A produção industrial tem um aspecto racional, mas também irracional. A minha
família é de operários (presentes como extras no filme) e possuem memórias do
“chão de fábrica” muito próximas do filme de horror no seu espanto, no absurdo,
na lembrança de mutilação e morte de colegas em expediente, e na dificuldade de
interpretação de alguns fenômenos. O capitalismo contemporâneo na
desindustrialização e na invisibilidade relativa de alguns processos de violência
e a opressão também nos deram elementos e quando visitei uma fábrica encontrei
operários em situação próxima daquelas que vemos no filme: fábrica em falência,
desaparecimento do grupo de executivos que não queriam responder pela falência
e etc, o que dava características surrealistas, buñuelianas, à situação.
Aí avancei em outros tratamentos do guião junto com Cassio Oliveira, um
realizador que foi eventual parceiro de Adirley Queirós. O tratamento do guião
definitivo veio quando conseguimos a locação em uma fábrica na cidade de Diadema,
no Grande ABC. Aí reescrevemos tudo pensando especificamente nas fantasmagorias
que o espaço concreto que filmaríamos evocava. Nisso a conversa com os
diretores de fotografia Bruno Risas e Alice Drummond foi definitiva. Reescrevi
o roteiro pensando na mise en scène e no desenho de som, pois o monstro
seria sonoro. Durante o processo assistimos muito filmes, sejam eles de horror (Christine,
The Fog e Prince of darkness, de John Carpenter, assim como nos
inspirou o maneirismo de Lucio Fulci e o corpo como máquina e a máquina como
corpo de Cronemberg) ou não (vimos também Robert Bresson, Leon Hirszman, Carlos
Reichenbach e até Dusan Makavejev). Cristina Amaral veio na última etapa. Era
um sonho trabalhar com ela. Eu sou fascinado pelo tempo-ritmo que ela encontra
nas imagens e consolida em forma na montagem. Foi a modulação do tempo que acreditei
que daria ao filme um aspecto onírico, que desde o início era o que eu queria.
A fábrica sempre vista como lugar da materialidade radical me interessava mais no
seu aspecto de delírio, sua dimensão hipnótica, diabólica e até mesmo certa volúpia,
o que diz muito sobre esse “organismo” artificial. Me lembrava muito das fusões
dos filmes de Andrea Tonacci e de Carlos Reichenbach que ela montou. Era isso
que desejávamos. Confiei e deu certo. Cristina fez um trabalho que, creio, só
ela poderia fazer, assim como os fotógrafos que me ajudaram a entender o espaço
e a luz necessária. Queria o barroco, mas como fazer? Isso veio desse diálogo com
Bruno e Alice.
O guião foi executado mais ou menos
como pensamos originalmente, mas muitos dos achados cênicos foram contribuição
de atores, atrizes e de decisões no set, sobretudo em diálogo com os
fotógrafos. Planejamos muito, mas durante o processo testamos coisas novas,
surgidas no momento, que permeneceram no filme enquanto muitas coisas que foram
muito planejadas de antemão não tiveram lugar. O espaço e a disposição dos atores
reorientou os planos originais. O importante tanto para a mise en scène
quanto para sua modulção na montagem era o sentimento forte de tempo, a
presença assustadora do extracampo e alguns desvios antinaturalistas na
performance dos atores.
A Máquina Infernal é fruto
de um processo calcado em um imaginário maior e mais longevo do que os anos
Bolsonaro. É claro que toda a angústia e destruição desses anos criou o
temperamento do filme que vemos e, gosto de pensar, tem algo anacrônico, o que
o torna menos up to date do que pode
parecer. Essa mistura de melancolia política e desamparo cósmico talvez seja
típica de nossa época, no Brasil em especial. Mas se olharmos com atenção esse
filme, tão obscuro, é menos fatalista do que pode parecer. Uma leve comicidade
e o erotismo desarranjam um pouco a máquina trágica. Não sei se são capazes de
colocar um termo à destruição, mas é dessas brechas quem vem uma lufada de ar
vital.
Hoje eu trabalho somente na
curadoria-programação da Mostra de Cinema de Tiradentes, um festival
importante, mas de província. Conheço alguns festivais e os acho importantes no
sentido de que, creio, é necessário ocuparmos espaço com nossas proposições
nesses eventos. Ainda acredito que não só fazemos filmes para expressar o que
queremos, mas também para se contrapor a algumas imagens que acreditamos que
precisam de oposição. Isso tem uma importância política, ainda que efetivamente
tenha pouco alcance e repercussão. Por outro lado eu lamento que muitas vezes
os festivais se pareçam mais com vitrines de lojas nas quais os filmes são expostos
sem implicações maiores para além de sua exposição como produto de mercado. O
debate, a conversa e mesmo a divisa entorno de alguns filmes são neutralizados
pelo evento “festival”. Seria a oportunidade para falarmos e escutarmos sobre o
que fizemos e como fizemos. Mas isso pouco acontece. Na Mostra de Cinema de
Tiradentes investimos nisso que acreditamos. Os festivais são circuitos de
legitimação, muitas vezes legitimação automática e sem reflexão, e os filmes ficam
quase sempre restritos a um público pequeno e às expectativas de agentes do
mercado. Acho que, missão para o presente e o futuro, precisamos encontrar uma
maneira de fazer circular os filmes para além do circuito convencional de salas
e para além dos festivais. Como fazer? Não sei. Mas os filmes terão uma vida
mais fértil quando superarmos e conseguirmos ter uma vida para além dos
circuitos de legitimação tradicionais. Esse é o desafio. Os filmes do Pierre
Léon, o último filme do Rob Tregenza ou os curtas de Carlos Adriano são
desconhecidos de muita gente, inclusive dos grandes festivais. Isso é grave e
representa um problema sério. É a grande questão.
A Máquina Infernal foi exibido em vários cantos da Europa,
mas eu só fui a Locarno, seja por causa da pandemia que impediu minha
circulação, seja também porque eu não dispunha de recursos para fazer as
viagens. O que mais me chamou a atenção positivamente em Locarno foram alguns
filmes como First Time (the Time for All but Sunset - Violet), de
Nicolaas Schmidt, uma média-metragem de 50 minutos com pouqíssimos planos
(creio que 3 ou quatro) e o maior deles tomado dentro de um trem em câmera
fixa, Zeros and Ones, de
Abel Ferrara, Petite Solange,
de Axelle Ropert, After Blue,
de Bertand Mandico e Public Toilet Africa,
de Kofi Ofosu-Yeboah.
O que me chamou a atenção
negativamente... enfim, Locarno foi uma experiência estranha semelhante a um
corredor de shopping center com vitrines exibindo novos produtos à venda. Nenhuma
conversa robusta sobre os filmes, nada que evocasse alguma gravidade presente
neles, tudo na mais perfeita pasmaceira e tédio, com exceção dos filmes que
citei (que não tiveram recepção à altura) e das retrospectivas de John Landis e
Alberto Lattuada. Sinto que o filme de Ferrara, por exemplo, foi mesmo recusado
por parte do público que saiu da sessão. A dimensão de mercado de um festival é
exaustiva, a inquietação pouca. E isso me parece o normal hoje. Mas o legal é
que nos festivais (estando eu presencialmente ou à distância) foi ver e mostrar
o filme que fizemos aqui. Li textos estrangeiros muito bons sobre A Máquina
Infernal. Ganhamos um prêmio do júri no Brive num júri presidido por uma
cineasta que admiro como Axelle Ropert. Esse reconhecimento é muito satisfatório.
Percebi também que o filme teve mais adesão na Itália do que em outros países,
o que é uma surpresa significativa. Passou na Amética Latina e muito no Brasil.
Conversar com o público aqui no Brasil foi muito bom e o filme teve uma fortuna
crítica surpreendente para uma curta-metragem. Nesse aspecto essa circulação
valeu a pena, ainda que eu saiba que o filme foi mais visto em festivais em
versão online durante a pandemia do que presencialmente. Isso é incontornável e
deu acesso a muita gente que não o teria visto de outro modo. De qualquer modo
eu sinto, e insisto, que termos como canal de visibilidade quase que somente os
festivais não é boa coisa, pois há um filtro, os festivais tem um limite como
janela e alcance de público. Como faremos? Seremos uma arte restrita aos entendidos
ou conseguiremos circular em outros espaços? Repetir a popularidade do cinema
do século XX é impossível, mas é preciso que o cinema possa ter uma vida no
mundo para além desses nichos de mercado: circuito tradicional de exibição e festivais.
Respostas não temos, mas é preciso buscá-las.
in: https://tribunadocinema.com/a-maquina-infernal-de-francis-vogner-dos-reis-critica-entrevista/
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