segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Mnemosyne de Mário Fernandes



Tivesse estreado no festival de Cannes, no Lucky Star – Cineclube de Braga, em Curitiba no Coletivo Atalante, ou numa sala clandestina no Fundão, onde primeiramente eu o vi, Mnemosyne de Mário Fernandes continuaria a ser aquilo que efectivamente é, o filme mais importante do cinema português actual. Porque a mão do destino dos deuses e dos monstros do cinema já deu a volta e os filmes que estreiam nos grandíssimos e prestigiantes festivais são na sua maioria blockbusters de autor, marca registada que pretende o alcance de alguns lucros: o egotismo, o autorismo, o arrivismo, o espezinhamento da concorrência “pobre”. Interessa-me as demandas artesanais e amadoras de Rob Tregenzage ou de Mário Fernandes, ou os filmes honestos da grande indústria, e o Werner Herzog que já há muito dispensa festivais-mamutes preferindo pesquisar novos cosmos como se possuísse o telescópio Webb - p. ex.: Creed de Ryan Coogler é tão belo porque profundo nas suas galáxias terrenas como Cave of Forgotten Dreams nas profundezas primordiais.

Lost West (estreado em 2010) foi um estertor lírico e uma carta de amor ao cinema clássico e seus ecos, de Ford a Leone, e um documento importantíssimo da ampla região da Cova da beira e do holocausto capitalista e ecológico subterrâneo que até hoje, por exemplo na questão da extração do lítio na serra da Argemela, continua podremente a corroer sem vacina. Tudo, bom e mau, natural e tóxico, a desfilar inapelavelmente em espelhos imperdoáveis, vingativos, sem comentários demagogos ou panfletos. Das Beiras à luz mítica, cristalina e coada pelos mitos Helénicos, antiga como perdida nas crises dos espartilhos afectivos, o passo foi mais do que lógico - The Last Day of Leonard Cohen in Hydra (2018) é uma busca detectivesca pela luz de Homero (Mnemosyne perscruta, segundo o seu autor, o romano Propércio) e pelo analógico - no amor ou cinema – que as leis festivaleiras e os bons costumes culturais já não permitem nem ao humano nem ao artista. Mnemosyne não tem “tema”, nem agenda, nem “actualidade” pertinente; sem tempo ou assunto precisos, tem por dentro todos os tempos e matérias.

Um etnólogo da sua própria realidade, como escreveu Daney sobre Eustache; da sua vida. Um artífice da mesma sensibilidade e poética do grande cinema mudo, em síntese omnívora e selvagem que tudo conjuga, livre - e somente anárquico para os que não conseguem ver além do sucesso e dos chavões - à maneira do Robert Kramer de Milestones, de Ozualdo Candeias, de Joaquim Pinto / Nuno Leonel, de Jean-Daniel Pollet. Uma equipa técnica de uma pessoa e os amigos de fronte da câmara. Em cada uma destas três obras a linguagem (a carpintaria) é levada ao limite autodestrutivo e o afloramento sentimental vai no mesmo arrasto (em Lost West o gesto total, em The Last Day… a mudez, em Mnemosyne o vento inaudito?). Seguidamente, se tiver de acontecer outro parto fílmico, é começar tudo de novo… Mnemosyne consegue ser o mais pedregoso, fulguroso, rarefeito, concentrado, onde tudo o que há para ser dito está nas imagens e nos sons, convivendo a contradição e a harmonia, o futuro com os destroços, forma e fundo unos, numa respiração e num ritmo inexoráveis, sem vestígio de fazer “artístico”. Cada plano, cada posição e altura de câmara, cada ruído, o infinitesimal no quadro, o incomensurável horizonte, é questão de apropriação ao momento e não doença do estilo. A passagem e os olhos de um corpo humano pelo corpo terrestre, os fogos interiores e as manifestações exteriores, comportam sempre um rasto de plenitude devassa. Muito antes de estarmos aqui já existia este grito do silêncio. 

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