quarta-feira, 11 de outubro de 2023

If I Ruled the World

 


Em 1997 Wu-Tang Forever sagrava-se (e sangrava-se) o cúmulo político e poético do Hip-hop. The Notorious B.I.G. e 2Pac tinham acabado de implodir nas suas próprias regras. Os pioneiros das rimas e dos beats continuavam profetas nunca cansados. Nasir 'Nas' Jones no Ilmatic de 1997 ou hoje em dia torna mente o que antes foi só corpo e fúria. Khalick Allah fecha todos os círculos com Field Niggas, o cúmulo do rap, com o corpo das imagens a fazerem corpo espiritual com o som; em Black Mother Allah diz-nos, e o filme aceita-o, que podemos fechar os olhos às imagens sempre que nos apetecer (talvez mais imagens do que planos, outra revolução); das imagens mais sinceras e potentes que o cinema já nos deu (a câmara de Griffith definitiva nas ruas e nos corpos comuns) e escutar o enlevo de histórias, de almas, uma oração silenciosa. Belly é o verso ou o anverso deste filme de 2018.

Por isso falta um elo nesta história do Hip-hop em cinema, que é Belly, realizado em 1998 por Hype Williams e com a dupla de protagonistas vivida por Nas e Earl "DMX"Simmons; e Nas chama-se mesmo Sincere, significativamente. Um filme tão importante e tão belo para esta cultura da street life como o foram Boyz n the Hood, Above the Rim ou, no mesmíssimo ano, He Got Game, isto é, razão, contradição e soma = novo ponto de chegada. Belly é o Hip-hop visto, revisto e modulado pelo cinematógrafo primevo. Apologético, impune, sacro, incontrito, ambíguo, culposo, trágico, novo. Os polos opostos das personagens de Nas e de DMX, Nas a consciência, DMX o mito, e o movimento revelador são a história do Hip-hop, da américa dos anos 80 e 90 e desse modo de vida por todo o mundo até hoje. Nas vai do fiel leite do berço até à constatação da necessidade de um desmame cósmico – e pretende voltar com a mulher e o filho para o berço outro e original: África; DMX é corpo e alma estanque, mito e infante, assumindo a responsabilidade da irresponsabilidade que os autóctones rappers ousaram, até às últimas consequências: mas a caminho do calvário e da sua assunção a The Notorious B.I.G. ou a 2Pac 2.0, a arte já não música mas só rua e crime, escuta o som dos velhos profetas e torna-se espírito e consciência outra: pelos milhões de desprotegidos, como a oração de Black Mother.  Fecha os olhos e escuta a auguro último do Hip-hop, a equidade. Jamais apostasia, jamais traição, mas equidade.

E tudo está certo e fica certo, passados os crimes, as violências, deturpações e as privações, os machismos indesculpáveis, porque as formas estão obviamente certas. Hype Williams usa as sintaxes, as gramáticas e as poéticas rappers e o que vemos, vislumbramos, escutamos e sentimos na pela é um turbilhão de libertação, de fidelidade e de justiça. As dermes, epidermes, abismos e ruturas numa constância e numa harmonia finalmente descaroçada que torna tudo novidade, tudo surpresa, pulsão, tudo alegria a cada frame e beat, as imagens a rebentarem de som como de cor e o som cheio, carregado de imagens literais e mentais, a escansão inédita, sempre sedenta. Ao movimento sanador que os protagonistas e logo a História executam, o movimento imagético e sónico responde com a mesma força, com a mesma alma. Um encontro inaugural, o humano e o cinema, o humano no cinema, música da alma, encontro de almas. A mãe e a água, como em Allah. Um dos filmes essenciais dos anos 90. Tão universo do seu universo como Vale Abraão, Um Mundo Perfeito ou Heat.

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