Em 1997 Wu-Tang Forever sagrava-se
(e sangrava-se) o cúmulo político e poético do Hip-hop. The Notorious B.I.G. e 2Pac
tinham acabado de implodir nas suas próprias regras. Os pioneiros das rimas e
dos beats continuavam profetas nunca cansados. Nasir 'Nas' Jones no Ilmatic de
1997 ou hoje em dia torna mente o que antes foi só corpo e fúria. Khalick Allah
fecha todos os círculos com Field Niggas, o cúmulo do rap, com o corpo
das imagens a fazerem corpo espiritual com o som; em Black Mother Allah
diz-nos, e o filme aceita-o, que podemos fechar os olhos às imagens sempre que
nos apetecer (talvez mais imagens do que planos, outra revolução); das imagens
mais sinceras e potentes que o cinema já nos deu (a câmara de Griffith
definitiva nas ruas e nos corpos comuns) e escutar o enlevo de histórias, de
almas, uma oração silenciosa. Belly é o verso ou o anverso deste filme
de 2018.
Por isso falta um elo nesta
história do Hip-hop em cinema, que é Belly, realizado em 1998 por Hype
Williams e com a dupla de protagonistas vivida por Nas e Earl
"DMX"Simmons; e Nas chama-se mesmo Sincere, significativamente.
Um filme tão importante e tão belo para esta cultura da street life como
o foram Boyz n the Hood, Above the Rim ou, no mesmíssimo ano, He
Got Game, isto é, razão, contradição e soma = novo ponto de chegada. Belly
é o Hip-hop visto, revisto e modulado pelo cinematógrafo primevo. Apologético,
impune, sacro, incontrito, ambíguo, culposo, trágico, novo. Os polos opostos
das personagens de Nas e de DMX, Nas a consciência, DMX o mito, e o movimento revelador
são a história do Hip-hop, da américa dos anos 80 e 90 e desse modo de vida por
todo o mundo até hoje. Nas vai do fiel leite do berço até à constatação da
necessidade de um desmame cósmico – e pretende voltar com a mulher e o filho
para o berço outro e original: África; DMX é corpo e alma estanque, mito e
infante, assumindo a responsabilidade da irresponsabilidade que os autóctones rappers
ousaram, até às últimas consequências: mas a caminho do calvário e da sua
assunção a The Notorious B.I.G. ou a 2Pac 2.0, a arte já não música mas só rua
e crime, escuta o som dos velhos profetas e torna-se espírito e consciência
outra: pelos milhões de desprotegidos, como a oração de Black Mother. Fecha os olhos e escuta a auguro último do Hip-hop,
a equidade. Jamais apostasia, jamais traição, mas equidade.
E tudo está certo e fica certo,
passados os crimes, as violências, deturpações e as privações, os machismos indesculpáveis,
porque as formas estão obviamente certas. Hype Williams usa as sintaxes, as
gramáticas e as poéticas rappers e o que vemos, vislumbramos, escutamos e
sentimos na pela é um turbilhão de libertação, de fidelidade e de justiça. As
dermes, epidermes, abismos e ruturas numa constância e numa harmonia finalmente
descaroçada que torna tudo novidade, tudo surpresa, pulsão, tudo alegria a cada
frame e beat, as imagens a rebentarem de som como de cor e o som cheio,
carregado de imagens literais e mentais, a escansão inédita, sempre sedenta. Ao
movimento sanador que os protagonistas e logo a História executam, o movimento
imagético e sónico responde com a mesma força, com a mesma alma. Um encontro inaugural,
o humano e o cinema, o humano no cinema, música da alma, encontro de almas. A
mãe e a água, como em Allah. Um dos filmes essenciais dos anos 90. Tão universo
do seu universo como Vale Abraão, Um Mundo Perfeito ou Heat.
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