segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Khalik Allah, no turbilhão das imagens; notas insuficientes para um universo de pureza complexa.

 


 

Khalik Allah consegue arrancar ao real (pessoas e mundo, pessoas no seu mundo) o cinema e as memórias mais eletrificantes do presente. Tudo irrompe fantasmagoria, desconexão, mas tudo é presença absoluta.  Eletrificante mas igualmente o cinema mais terno, o retrato mais belo possível, numa troca justa, de mãos vazias, por necessidade, questão existencial. Black Mother será exibido pelo Cineclube Gardunha no dia 14 deste mês de outubro, no ciclo Janela Para o Mundo e apropriadamente no Centro para as Migrações do Fundão.

Nascido em plenos anos oitenta do século passado, nova-iorquino, assume o hip-hop como fonte primordial de inspiração e de modo de fazer, essa forma violenta e pulsante de representação propensa ao improviso e à irmandade, aproximando-se também do jazz, seu irmão. Usar a câmara de filmar, de registar, como um instrumento, muitas vezes de improviso, musical, como John Coltrane, disse KA um dia; ir além da forma, mergulhar diretamente no conteúdo, disse também, e aí estamos na brutalidade e na novidade que trouxe o hip-hop. De mãe jamaicana e pai iraniano, autodidata e diletante, criado na dissociação The Five-Percent Nation, que é central no seu percurso e que o mesmo KA definiu assim, belamente, deste modo: «The Five-Percent Nation nasceu de pessoas que foram delinquentes de rua, crianças com idades entre oito e 16 anos. Agora, muitos desses irmãos são mais velhos, nós chamamo-los de “deuses mais velhos”. Para os Five-Percenters, Harlem é Meca e Brooklyn é Medina. Basicamente, a The Five-Percent Nation começou quando Clarence Smith, ou Clarence 13X, estava na Nação do Islão sob a liderança de Malcolm X. Decidiu deixar o templo e começou a ensinar que o homem negro é deus. E levou isso para as ruas. Chamou-lhe “sabedoria suprema”, com essas 120 lições, que tu memorizas e aprendes a citar. Deu essa sabedoria às crianças que eram membros de gangues, e isso realmente ajudou a dar orientação a esses jovens. A escola destrói o apetite das pessoas pelo conhecimento. Tu não queres ler nada depois de leres esses livros que eles te deram. Tu ficas tipo, "Foda-se o livro", mas depois de seres estimulado, tu pensas, “Uau, a educação é realmente altamente, é altamente ler”. Foi isso que a The Five-Percent Nation fez por mim.»

Muito naturalmente foi POPA WU A 5% STORY a sua primeira experiência de fôlego em cinema, um documentário e uma aventura na mente de Popa Wu, um membro predominante da Five-Percent Nation e patriarca dos Wu-Tang Clan, o grupo de rap mais imbuído desse espírito. Documentário constituído por cabeças e corpos falantes e por imagens de arquivo foi, segundo Allah, gratificante de fazer pelo significado, pois conseguiu trabalhar com os seus Deuses, mas também desgastante, pelo tempo e pelas complicações de quem ainda é aprendiz de um ofício que não domina, mas que tem necessidade de se lançar a uma empresa épica. E de dentro dessas imagens e desse espírito recebeu como que um chamamento da realidade. Da sua realidade. Da sua pertença. Dos anos oitenta e do poder sedutor e genuíno das ruas. Da realidade vociferada pelos Wu-Tang ou pelo seu outro Deus, Nas - «One love, like Nas», afirmou rotundamente certo dia. One love define todo o seu trabalho até hoje, a procura do conhecimento, da sabedoria suprema, a fotografia e o cinema como um meio (medium, uma máquina incomensurável) irmão na captura da realidade e logo da sua elevação espiritual. A consciência de que tudo está ligado com tudo e todas as coisas são comunicantes. KA, que descobriu a fotografia pois um dia teve necessidade de oferecer um retrato a um membro dos Wu-Tang, GZA, vai unir essa técnica primordial com a sua posterior evolução pelo movimento (cinético, apenas se quisermos), ou seja, o cinema, e conceber, de um modo único e primeiro,  que tudo é uma e a mesma coisa. Todas as suas fotografias serão como filmes, com carradas de luz, movimento abissal e narrativas camaleónicas, e todos os seus filmes serão fotografias, carregados de retratos, memórias e atmosferas espectrais. Pode ser que à imagem dos fractais tudo seja uno e infinito por dentro e por fora do seu próprio mistério. Cada filme é a continuação do anterior, continua a dizer KA; se na sua disciplina de fotógrafo a exposição à luz se faz contínua, incessante, relacionada, a uma exposição sucede-se a seguinte até ao fim do rolo, igualmente no cinema um plano sucede ao outro e tem que falar com ele, etc… One love. Fotografia filmada? Fotografia filmada com som direto indireto? Importa captar esses príncipes e princesas, reis e rainhas, sem julgamentos, seja com que meio for, à luz justa e protetora. Acima de tudo importa captar. É o princípio básico e limite de Picasso, quando afirmou que mesmo preso continuaria a pintar, nem que fosse com merda a servir de tinta.




Field Niggas, um filme-memorial de 2015, estabelece, juntamente com Souls Against the Concrete, o livro de fotografias lançado em 2017, o apanhado das milhões de constelações com que ele interagiu entre a 125th Street e a Lexington Avenue, em Harlem, o seu espaço sacro. Documentário, ficção, fotografia, tanto Field como Souls o são, assim como as plangentes curtas-metragens anteriores – como Antonyms of Beauty ou Urban Rashomon – ou os retratos avulsos de um auto-considerado street photographer. Field será sempre relembrado, e revivido na memória, em grandes-planos, grandíssimos planos de rostos e de corpos inolvidáveis. É sintomático que muitas fotografias, que serão base para Souls, passem de mãos em mãos em Field, sendo Field e Souls uma e a mesma coisa. Todos estes filmes citados e outros, como aquela que considero a sua obra-total, Black Mother, de 2018, estão carregados de efeitos técnicos e de efeitos de retórica, como câmaras lentas, as pontas dos planos com fogo, as cores carregadas, etc. E o som, jamais sendo direto e batendo (sincronizando) com a imagem e com o ser-humano falante, é o mais direto dos sons que hoje em dia existe e também o mais íntimo, pois sendo abstrato e único, é o som de quem fala e ao mesmo tempo o som dos milhares de seres análogos aos que vemos, o som finalmente coletivo. É o sonho de Serguei Eisenstein e depois de Godard levado a um extremo prático redentor, da arte do cinema como arte privada e universal no mesmo fôlego, da arte de enfrentar o real e de o transcender. É KA que opera a sua pequena câmara, focando-se nas prostitutas, nos desistentes ou na família longínqua com todo o coração – e aqui a maneira terna e subtil como conversa aproxima-se do brasileiro Eduardo Coutinho, que tal como Liev Tolstói arranja sempre perdão para toda a gente, amando os policias como os ladrões – importando primeiro o seu corpo, as suas expressões marcadas e o infinitesimal, os seus movimentos, o seu real concreto; e depois vai gravar as palavras noutro lado, sem ser importante o sincronismo; e o verbo, liberto da redundância e das amarras da indústria do cinema, torna-se espírito, alma, fantasma.

Uma nova resolução das imagens, que incluem o som – resolução inaudita que nada tem que ver com a tecnologia utilizada, pois nem falamos de ultra HD (4k…6k…), mas sim de 1080 básicos; uma revolução, um vislumbre e uma epifania em desenvolvimento, a acontecer diante dos olhos num milagre bem concreto. Tal experiência só me tinha sido dada a ver, no mundo digital, no Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa; as peles escuras, branquíssimas ou de tons indefiníveis dos protagonistas, os olhos gigantescos como crateras ou cegantes como estrelas, misturam-se com os néones e as diversas luzes da cidade, e tanta coisa de tanta composição apartada e de matérias opostas fundem-se ou comunicam-se profundamente, concorrendo para um mistério que só pode ser a base daquilo a que se chama experiência estética; e tal só é possível pois o cineasta acredita, faz de coração, de alma, algo que o exercício da análise não pode concluir. Poesia, agora sim, justificada; é a essa liberdade e ao mesmo tempo a essa complexidade que KA e Pedro Costa chegam; toda a primeira imagem, como toda a primeira aparência, é inundada por contrários, complementos, dialéticas, contradições; entenda-se poesia tanto como filiação a uma escritura como à pura pincelada plástica, logo metamorfoseando-se e atingindo as especificidades e as potências únicas do cinema, isto é, a sua poética mesma. Os filmes de KA são um embate violentíssimo com o concreto – tal como um Biggie Smalls enfrentou o seu puro presente e a sua tensão – e um enlevo de almas – o fluxo interior a brotar carradas de tons melódicos e de vísceras que só assim são descarregadas porque outra alma permitiu a revelação, longe da pressão cinematográfica regrada. Fotografias, de cada um em frente à câmara, e filme, movimento e som; ou som e movimento da memória, da alma, pura arte do retrato, e o cinematógrafo como incomensurável meio de fixar.

Black Mother é, segundo KA, partido em três trimestres, mais o nascimento, o que dá quatro partes – nove meses mais o nascimento. O primeiro trimestre funciona como uma introdução, pura etnografia afetuosa, retratos de fruta, de cocos, pessoas na rua, rituais… o segundo trimestre começa a descer sem apelo nem agravo, a cavar fundo, e surge o colonialismo, ódio encravado, clareamento da pele… no terceiro tudo se volve mais espiritual, com o funeral e os seus ritos cifrados… e depois, o nascimento. KA encontra na Jamaica um círculo de movimentação mais amplo, que serve eternos-retornos e concisões estratosféricas, explosivas, secretas, nunca dispersando ou, quando isso acontece, tudo logo conflui para a água, o Deus presente nesta obra ou nesta oração silenciosa que se volve absoluta. Uma oração por todos. E todos os formatos e diversos maquinismos são válidos, HD, super HD, película 16mm, HI-8 ultra caseiro, drones, estabilizadores… fotografia, cinematógrafo, e o que fica, a cada frame e no final, é um êxtase e um enlevo espiritual, One Love, como nos famosos versos de Nas, a aproximação justa, o reconhecimento mútuo, perfeito, aos seres e às coisas, visível e opaco. No final de Black Mother, entre o terceiro trimestre e o Nascimento, KA desliza do funeral para a barriga da grávida e depois do bebé nascido para uma capela, um movimento e um congelamento, um retrato, que abrange, silenciosa, indizível e delicadamente, o cósmico movimento da condição humana. Todos os trimestres e períodos mesclados. O pequeno e o grande, o estanque e o sónico, em convulsão e em silêncio.

 

José Oliveira, outubro de 2023

in: https://tribunadocinema.com/khalik-allah-no-turbilhao-das-imagens-notas-insuficientes-para-um-universo-de-pureza-complexa/

 

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