quarta-feira, 11 de abril de 2012


Quão estranho à prática do cinema é vagabundear, se dar a ares prazenteiros e idiossincráticos. É uma coisa cara, diz-se, por isso há que respeitar os públicos e confirmar as grandes teorias da época. Tão mal visto esse maravilhoso propósito que desde o Marco Ferreri de "Dillinger è morto" até tantas coisas de João César Monteiro me proporcionou dos mais inolvidáveis momentos da grande arte das luzes e das sombras projectadas. Venho agora falar de outro grande vadio, orgulhoso cultor do hedonismo – Otar Iosseliani. Muitas vezes tais abandonos a estas práticas estão almofadadas por um mal-estar qualquer, que pode ser existencial ou assente em algo bem mais concreto, que pode tocar o niilismo ou simplesmente a anarquia destruidora ou libertária. "Iko shashvi mgalobeli" que por aqui se apelidou de "Era uma vez um melro cantor", belíssimo título. Também assim o filme pode ser definido, e no entanto pouco se diz do que por lá se passa. Vamos acompanhar um tipo chamado Gia Agladze durante todo o tempo – num filme do lado do tempo – que é alguém que não é lá muito amigo de trabalhos, rotinas, obrigações ou compromissos. Cultiva então orgulhosamente o ócio, como cultiva o olhar sobre toda e qualquer mulher que lhe agrade à vista, a todas algo lhes promete, a quase todas se desculpa de alguma falta. Vê cair-lhes a luz sobre o rosto e sobre o corpo, fica literalmente estonteado com isso; essa luz e essas belezas que nos são devolvidas em acréscimo pelos milagres do cinematógrafo e da exposição e artesanato da película a preto e branco. Por elas, pelas mulheres, se vai extinguir no misterioso plano final. Está sempre de chegada ou sempre de partida – quando chega está de partida, quando parte está de chegada – sempre no risco de um incessável turbilhão. Muito perdido, sem saber o que fazer como tantos de nós, possivelmente sem grandes ambições, nem o seu vertiginoso rodopio consegue terminar ou mesmo dominar. Todos os que gravitam à sua volta são quase inevitabilidades ou consequências. Entre a possibilidade de um mal-estar próximo do da Delphin do Raio Verde de Eric Rohmer e a simples preguiça – que é o que um médico lhe vai atirar à cara – poderemos ir pela segunda opção. Os copos de vinho, o pão molhado e os cantares alegres, os cigarros que começa compulsivamente a fumar depois de alguém lhe ter gabado a qualidade de não apreciar o tabaco, confirmam essa via. E por aqui sim, o filme é tematicamente tão belíssimo como formalmente. Um pouco de seriedade na análise, "Era uma vez um melro cantor" é um filme sem grande história ou sem história nenhuma em relação ao que habitualmente se espera de um filme articulado, de possibilidades de sinopse bem reduzida para catálogos festivaleiros. Temos então a correr pelo tempo deambulações, olhares, desejos, dissimulações, enganos, momentos de pura verdade, fidelidades...incongruências ou absurdos repetidos ao infinito e não desprovidos de efeito boomerang.

Se tudo pode ter uma narrativa, um sentido, aqui é então o da música. Essa é a matéria que vai entrar em diálogo com o mundo e ordená-lo ou desordená-lo conforme os moods e os pontos de vista. Gia vai acabar por dizer a certo momento: “Eu tenho sempre alguma coisa para fazer...corro o dia todo...e no fim...nada...nada corre bem", é o seu fado. Mas como ele parece ser sobretudo músico, músico inquieto e fervilhante, também vai soltar: "o silêncio irrita-me, o barulho chateia-me". É por aí que Iosseliani vai orquestrando esse amontoado ou essa polifonia de movimentos, em suaves andamentos que se tão entrecortados se unem em fluida e una espiral. Tudo próximo do etéreo, tudo constantemente ameaçado. A música que irrompe pelos centros ou interstícios jamais "enche", nem "preenche" nada, conduz os fluxos materiais brutos e esvanecentes do campo e do fora de campo (o enquadramento que não se contenta com as margens e assim absorve tudo à sua volta) e faz deslizar o fugidio Gia pelo seu escorregadio habitat e seus anseios. O portentoso som ambiente em relação com a peça clássica logo no inicio – da intimidade caseira para o fora até às águas das cascatas, um passeio e relaxamento no campo e...a ponta final que ele vai em grandes corridas fazer ao concerto de uma orquestra, quando como sempre já todos perguntam por ele. Ali todos os sons concorrem em densas relações, aglutinam-se, amam-se e odeiam-se. Nada bate os sons originais da natureza, mas na intromissão dos resíduos fabricados pelo moderno ou pela ambição que polui, só aquele classicismo, que pode ser ou é espelho ou filho de uma natureza em estado primeiro e ardente, pode recompor. Voltar a sublimar. A música vai ter poderes mágicos e esotéricos, vai inclusivamente aclarar a noite e transformá-la em dia, num dos planos mais bonitos que qualquer obra poderia conter. Depois, a música não diegética que se volve diegética pela contemplação do homem ou pelo efeito do álcool, nesses fogachos de perfeição. A música diegética que se estende até à banda sonora do mundo e assim no cinema como na vida tudo se mistura. Ou como resume o professor Zeitblom no "Doktor Faustus" de Thomas Mann: "A meu ver, caberia justamente à música, pela sua índole mais intrínseca, servir de guia para nos fazer sair da esfera de absurda artificialidade e nos conduzir ao ar livre, ao mundo da natureza e da humanidade. " Precisamente, a música com o dom de quebrar o teatro de máscaras da sociedade e os bem-estar aparentes. Relação transcendente. Rumo a uma perfeição: vinho, mulheres, cigarros...música. Uma paixão indefinível que não pára de pulsar. Não é preciso mais nada.

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