sábado, 5 de outubro de 2013

 
 
“Canta para mim, que eu sorrio para ti”, assim pede um cowboy sorridente a uma bela rapariga que parece deslocada e só ali estar devido a tal ternura. Belas trocas e confissões ainda possíveis. Ela cede e canta-lhe um “Saddle the Wind” magnânimo e tão irrealista como só o cinema americano conseguiu. Ele vai-se derretendo e mal acaba o embalo dá-lhe um beijo que já é fora da norma cinematográfica da época e do resto. Ela reage e algo se denúncia. Tony Sinclair, um John Cassavetes superlativo que em oitenta e quatro minutos passa por todos os registos; e Joan Blake, radiante e também magoada Julie London a quem Robert Parrish, o realizador desta obra que tem o título da canção soprada, oferece planos como Nicky Ray ofereceu à Vienna de “Johnny Guitar “. Ou seja, quadros também eles exageradamente pintados em busca da temperatura ideal. Para ela, para ele e para o irmão dele. Como a coisa tende para a violência dos sentimentos, temos azuis fulgorosos e verdes desmaiados. O que aumenta o batimento cardíaco e expõe as penas de cada qual, sem os sacramentais magentas ou amarelas da psicologia da cor.
 
O irmão de Tony é Steve e tudo o que se vai passar pelas áridas e leves montanhas, vales e nuvens do Colorado tem a ver com o desembocar final de uma história de sangue e logo de cabeça muito mal resolvida. Porque Steve foi também dele Pai e Mãe, amigo e cúmplice, desde a aurora. Matou muito e enterrou muito sem pestanejar. Agora, na curva descendente, não tem metade da destreza do miúdo e pede-lhe para não repetir exemplos. E o miúdo já casadoiro só lhe quer agradar e não para de puxar do gatilho, de querer evidência e reconhecimento, de ser o centro de onde quer que esteja com a sua aura. E tudo vai perdendo, da bela que o seu lado bom resgatou a um antro qualquer, à simpatia larga que por vezes não trava, simpatia rasgada, que o torna noutro que alguns privilegiados tiveram direito.
 
Inscrições em árvores como nos rochedos de “Colorado Territory”. Ex-combatentes em busca da terra prometida. Campos de flores lilases com neve em fundo. Insurreições proibidas. Bons corações em géneses corrompidos. Diabólicos alheamentos. Compreensão incompreensível. Reflexos distorcidos ou verídicos em poças de água. Natureza manchada. Perda da liberdade.  Entrega ao vento. Complexo diagrama que envolve e convoca o despojamento do meio, a sua fragância e nitidez, em relação e dilema com a outra natureza, a do homem, e do seu percurso civilizacional. Assim o espanto de como tão absoluto espaço que em cada ângulo parece ressoar a imagem de Deus poder abarcar tamanhos desesperos. Poder conceber lágrimas e suicídios. Daí essas breves composições de que já falei. Fugazes. Estampas sacras. Que não podem durar. E a câmara do paciente e subtil Parrish vai perguntando porquê. Por que não posso fazer o filme todo nesse tom? Se nascesse noutra era podia? Terrível para nós, decisivo para esta arte do tempo.
 
 
 
 
 
Tempo, escuro. Datado do ano seguinte a Saddle, “The Wonderful Country”, então de 1959, ano de “Rio Bravo, é um projecto pessoal do seu protagonista, Robert Mitchum igual a ele mesmo. Nada de egocentrismos ou destaques. Tão silencioso e apagado como sempre. Mas logo vamos sentir outro tipo de vento e de luz diversa do Western irmão bastardo deste. Luz glauca, enquadramentos marados, grandes-planos saturados, esfumados, parecendo arrancados à força. A ironia do título. Num barroquismo ou num doentio gótico que não vai estar só pelas formas mas também pelos protagonistas, as suas relações e o modo de se ligar tudo.
 
Como os irmãos de Saddle, Mitchum não tem casa. E pior do que isso, não parece ter sequer pátria. Apátrida fronteiriço num mundo ali todo desmoronante. Entre o México e os Estados Unidos anda ele a vaguear, a cruzar rio e fronteira constantemente e sem assentar, Americano Mexicano e vice-versa sem ordem, não querendo pactos definitivos e castradores. Desdenha a higiene e o progresso dos “gringos” e não hesita em sacudir as largas abas dos largos chapéus rivais. Não querendo trucidar índios nem querendo, talvez muito menos, amar. Pedro Armendáriz, um dos chefes de um dos lados, vai resumir dolorosamente o dilema: “…pertences a lado nenhum”. E depois disso ele cavalga o que parecem dias e noites ou uma eternidade, para um ermo que o olha e acolhe como seu poiso natural e prometido.
 
Estranho ser sem muito passado apregoado a não ser a história do Pai que pode mesmo assim não ser decisiva; estátua sem procedência nem horizonte a deambular ao sabor da maré, do calor ou do encantamento momentâneo. Assassino, matador, pistoleiro – tudo nomes para quem parece nunca ter parado muito para reflecções profundas. Mitchum, a impassível passividade. E a felicidade de alguma coisa nisso. E vai mesmo acertando pólvora, afastando o lar, afastando o coração. Se quando aquela Helen da Julie London conhecida lhe diz que ele só é Homem de pistola em punho, como o Cassavetes anterior, e ele a renega, a lança para longe com as balas e a beija; se depois de morrer o marido, esse marido estoico que Mitchum ousa aclarar que ela admira mas não ama, ele a vai procurar para dizer que o que conta são os sentimentos e não os actos, trocando-lhe ela o essencial da afirmação, é porque tanta é a misturada que continua sem saber o que fazer, mas, essencial “mas” que não passa por redenção, ganha a veracidade daquele olhar.
 
Actos e sentimentos, humanismo e estética. “The Wonderful Country” é assim, uma bomba relógio sem rei nem roque, pois só o podia ser depois da constatação e da procura encetada em Saddle. Desejada a depuração e estourando na cara a discordância, estamos no meio do turbilhão, um filme e uma visão de múltiplos tons, focos, velocidades. Já nem o CinemaScope se justifica. Western Spaghetti antes de o terem celebrado e banalizado, como por exemplo um Joseph H. Lewis já tinha conseguido, onde tudo cabe materialmente e simbolicamente – mestiçagem, “Texas Rangers” e vândalos, explosão berrante e aleatória das cores, fogo-de-artifício fundido a caveiras da morte mexicana, rabos ao leu que chocam puritanas, objectos a entrar pela lente dentro, volumes ou linhas sem lógica que trilham a legibilidade da composição, toque documental ultra estilizado, luzes e suas ambiências bruxuleantes, músicas destoantes, antagónicas e contraditórias. Dilatações efémeras. Um caminhar à Fonda ou à Eastwood. Etc.
 
O último plano, movimento de câmara sem nome, em que Mitchum se despe da convenção, faz o luto pelo fidelíssimo Lágrimas que é o nome do seu cavalo prodígio que abertamente adorou, e vai em direcção ao Tudo ou a Nada, é uma boa imagem da almejada totalidade. “The Wonderful Country” pode ser sobre Tudo ou um delírio sem causa. Nostalgia sulista à Twain, um belo Mississippi, berro das entranhas ao limbo como Peckinpah mais tarde. Depois do sagrado, da força telúrica e do incêndio das paixões, ficam os estilhaços poéticos. Lirismo cadavérico. Desordenados instintos.


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