quinta-feira, 3 de outubro de 2013

 
 
Palavra de honra. Palavra de honra. Honra. Impossível a frase e o seu peso não ficar a martelar muito depois de “The Burglar” ter acabado. Que é não só um filme traçado e esculpido em moldes únicos por Paul Wendkos, mas também por outro dos muitos discretos e comovidos que respiraram e calcaram Filadélfia, os seus passeios imundos, as suas docas pesadas e o seu ar e certa luz estranhamente agregadora, David Goodis. Assim sendo, microcosmo de falhados, desistentes, fatuamente feridos, calados, avisados, e sempre a descer. Mas também, como podemos constatar com o Dan Duryea daqui ou o Balboa de “Rocky”, alguns excessivos fiéis que por isso mesmo e não pelo oposto se vão queimar.
 
Num filme de assalto que só o é pela sinopse ou pelo olhar simplista, vamo-nos deparar com um grupo e o seu grande estratagema. Milimetricamente planeado e executado mais ou menos sofregamente, mas executado. A partir daí, dilemas morais e dilemas psicológicos vão rebentar as costuras e conduzir cada um deles ao abismo. E, por causa do sofregamente, dilemas práticos e caçadas bárbaras. Se o patrão feito por Duryea se vai auto trucidando e asfixiando, mais por causa do elemento feminino que faz parte do grupo do que pela pressão pós golpe, menina que ele um dia tomou em mãos por palavra de honra e depois por amor, é porque descobre de uma vez por todas que tal conceito não joga com o seu modo de vida. Esse que também ele diz que é a única coisa que sabe fazer, que o domina e ajoelha completamente.
 
Roça-se com mulheres corrompidas que convencem como freiras; atira essa Jayne Mansfield criança para a boca do lobo; vira-se contra cada um dos companheiros. Primeira parte do filme na Philly também conhecida por The City of Brotherly Love: sinfonia suicidária com instrumentos e harmonias do inferno – a casa perto da linha de comboio que pontua, ordena e comenta a desgraça. Como ponto máximo surge a cena de estrupamento derivada da urgência sexual que tais formas provocam naquele irrespirável seio. Balanço da carne e do gemido montado em confronto com as paralelas violadas pela pujança da locomotiva e subsequentes orgasmos – culminância lógica. Segunda parte: saída do terreno matricial em direcção a outro tipo de resvalamento. Queda em lugares geométricos da prova da sorte, desbaratamentos e punhaladas capitulares. E outro tipo de assombração: feiras de maquinismos demoníacos e assoladores, paradas de monstros de cera e mortos pálidos amarrados há muito. E a não distinção dessas prespectivas calcinadas, tortas e corrompidas em relação aos humanos em recreio. A joia da revelação, essa, não tem qualquer valor, é oferecida de mão beijada a quem por ela tudo trai, como prova irrefutável de um grito de humanidade e ternura ainda possível.
 
Vão-se descobrir as coisas importantes nos sítios e nas horas más e nada a fazer. Um lamento que como todas a escrita de Goodis é na mesma medida severo, sem contemplações e comovido até ao osso. Amor e ódio com a mesma hipótese ciclópica de irrupção. Sem falsos reconfortos. Notável a maneira como Wendkos apanha e encena de forma limpa a mais crispada das danças. Como me disse um amigo meu fã do filme: tudo o que está dentro, se movimenta e vibra é intrincadíssimo; as soluções cinematográficas são simples, claras, elementares. Toda a modernidade que importa. Num filme também “on location”, pelas asperezas originais e vivas que tanto magoam a luz. Num palco ou numa estufa onde laivos de claridade mínima arrancadas a trevas proporcionam o testemunho, a possibilidade de impressão num mundo onde a chama está prestes a ser desligada. Sujidade e limpidez. Uma comunhão perfeita de dois grandes viciados na existência e na sobrevivência, discorrendo e escondendo segredos e dádivas, no mais imperfeito e no mais improvável. E também com a raça e o lado por eles escolhido que tanto medo mete a quem se tenta aproximar.
 
A diferença e a perseverança, é este o credo. Quando os praticantes originais disto pensam diversamente, mesmo que só por um momento de dúvida, até as paredes e chão tremem e contra eles se revoltam. Recuo: a cortina sobe e temos vindo de um ecrã de cinema, só momentos depois o vamos saber, actualidades orientais, reportagem social, matulonas saltitantes e mais fancaria, tudo no embrulho universal. Pouco depois passaremos para o interior televisivo e para toda a falsificação e espectros vindouros. No meio de tanto barulho e eco, tanta fome argentária, vamos ficando com o centro e interesse da demanda: o fascinante, perigoso e lacrimoso Dan Duryea + a ex-coelhinha da Playboy que é Jayne Mansfield, tão pura e despida no essencial como esse santo ladrão que jurou ao mestre que era o pai dela o acolhimento eterno. E o produto da união e da sua circunstância: a solidão. Num filme de tantos quadros picados tristíssimos, esmagantes e protectores, vazios, mas, em derradeira instância, belíssimos. Porque amparados por uma força verídica extra-ordinária. O último de todos, oposto às rancorosas visões subjectivas, é isso: guia para a morada final e o olhar de cima. Algo superior que responde à miséria.
 
 
“The trouble with people is they don't understand people.”
David Goodis 


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