sábado, 31 de maio de 2014

 
 
“Young America” surge rodeado de miudagem em plano sequência superlativo, estaciona perante um jovem juiz que é uma das personagens mais bonitas que o cinema americano criou e na frente dele aparece-lhe uma mulher loira que vou continuar a tratar assim, igualmente novíssima, que para além da imensa luz da sua beleza lhe sai da alma uma radiação de bondade quase cegante. É Frank Borzage e por isso no mais lindo como no mais terrível a sua mão que é o seu olhar que por sua vez é o coração pairará sobre todos e sobre tudo como batuta em punho do mais generoso maestro. O mesmo que cuidava do anjo de rua aparecido em Janet Gaynor pelas tragédias de 1928, os rivais Joan Crawford, Margaret Sullavan, Robert Young e Melvyn Douglas compreensivos e sensíveis nesse "The Shinning Hour" que poderia ser como que uma epígrafe da obra toda, ou o lindíssimo Victor Mature com a sua boneca chinesa já em 1958 – quando ele a cobre na cama pela noite como quem diz com a maior força que a ama…quando a pega ao colo depois do mal-entendido sacramental e a leva para casa a correr para um sempre…quando dispara louco por amor no auge bélico… e como esquecer a ressurreição da boneca quando a tínhamos visto escangalhada de morte - ou seja, assim no principio como no fim.
 
Depois da abertura nua e terna falar de formas em Borzage é como sempre falar na infinita ternura angelical da sua luz, do que emana tenuemente de dentro dos corpos e da palpabilidade extrema da sua matéria mesma em consonância com o mecanismo de registo que só pode testemunhar e jamais interferir no que se passa ao redor. Nunca postura hierática ou pincelada sacra em pedestais superiores e inalcançáveis mas precisamente ao nível terreno, quotidiano, singelo. Mas inomináveis são os primeiros dez minutos, que se desenrolam em campo/contracampo uno, indissolúvel e assim implacável como muitos muitos anos depois veríamos no documentarista Frederick Wiseman. O juiz de menores e a nova américa que não para de o surpreender como todas as alvoradas de cada dia repetido, a sua paciência infinita, a sua ponderação, o seu sorriso de filigrana e a sua dureza justa, assim, toda a completude que o permite existir inteiro. Até que lhe surge, a ele e ao dito anjo loiro que o quis acompanhar para saber como se faz e do que trata a verdadeira legislação, o pior rapaz da cidade, o diabo em petiz, para entre sorrisos cúmplices e severidade amiga e antiga o devolverem à rua sabendo que o mal dele é outro que não o do letreiro.
 
Pois nada dessa poluição o ensurdece ou despista, Judge Blake saiu de um utópico cruzamento do Caprianismo de James Stewart, do meritíssimo Francis Ford escolhido pelo Young Lincoln na balada humanista do seu mano mais novo, ou desse embriagado enamorado para lá do razoável que espanta tudo e se transforma estrela protectora no primeiro filme de Elia Kazan, gente igual aos mais genuínos tasqueiros do nosso contentamento, aos indómitos simples que a arte digna desse nome sempre almejou e só vislumbrou. Se a perfeição de cada imagem de Borzage sempre esteve envolta em algo verdadeiramente celeste, que não vem nos livros e não se deve procurar muito nos lugares de sempre para as resenhas, se nas suas grandes e pessoais orações se pode parafrasear Cézanne com o “à chaque touche, je risque ma vie” sem depressões antes demanda do sangue, todo o ritmo dessa cena inaudita, toda a respiração, apenas visam captar o fundo e a sua expressão nesses seres, como nunca nenhum verismo.
 
Ao tal catraio, acontecem-lhe muitos azares e mal entendidos, solta o anjo subtil e o demónio escancarado e muitas vezes vice-versa longe das autoridades, perde-se e encontra-se já marcado com o fatalismo dos acontecimentos. Anda à batatada com um mais forte do que ele por uma miúda, é expulso da escola, posto na rua em casa, semblante enlameada pelo melhor amigo e nada se compara com isso, regressa ao banco dos réus. Mas ainda pede a uma velhinha que adora o favor de lhe poder chamar avó, velhinha linda e resplandecente e integra, rouba medicamentos para ela, tomba na sorte do destino. Mas essa novíssima e revolucionária loira que nunca, nunca, o abandona leva-o para o seu lar doce lar mesmo contra vontade do seu marido – um Spencer Tracy um pouco casmurro e desconfiado a que Borzage e ela confiarão absolutamente – só que ele continua a ter cada vez menos fortuna e o sarilho como sombra perene. Momento supremo: a morte em frente a ele do tal melhor amigo, o gêmeo da infância de cada qual, a respiração a ir-se de fininho entre recordações de travessuras e segredos que são o tesouro da infância e o ecoar e resguardo da aprendizagem para a morte. Uma das mortes mais doridas e apaziguadoras alguma vez filmadas que nos faz ver como o mais grave e incomplacente adquire a sua dimensão sagrada e enlaçada na plenitude pelo vislumbre da eternidade – o céu que ambos combinaram nunca os deixará e estará sempre disponível para eles.
 
No rodopio e no arrepio dessa existência e desse teatro nosso, ao miúdo que mais nada lhe pode acontecer após ter odiado o casal para o manter, e pior do que isso magoado no pior dos sítios a mulher que sempre esteve do lado dele, vão-se-lhe esbarrar gangsters, acidentes e tiros que não parecem mais graves do que as palavras daqueles que a cada brado o desprezaram ou dos olhares sempre deslizantes para longe dele, e o quadro final familiar de uma paz perfeita não é corolário nem redenção mas sim Borzage a revelar a sua posição, a de cineasta e a de Homem, nunca de maneira autoritária mas somente o advento da sua natureza. A recusa da treva depois de tanto penar, o brilho mesmo que só já em celestial ao invés do buraco negro na terra, o júbilo ao choro que a ele já o experimentou todo. Ou seja, nada de pieguices ou contos de fadas para virgens inocentes, mas a inseparabilidade do brilho do bem e do mal onde nessa luta gigantesca dos seus filmes a luz essencial continua, mesmo que tão baça, mesmo em visões insuportáveis como a do enforcado na cabeceira do berço no realista “Moonrise” ou o ontem o hoje e o amanhã do vício da guerra que chega da fonte em inapelável maravilhamento pelo ” No Greater Glory”, para a natureza continua a reciclar tudo, a prevalecer. Algo de muito puro que só pode letalizar o seu oponente. Ainda estamos aqui por causa destas. E como Borzage nunca mais.
 
Pois é, meu companheiro Mário, será que alguém ainda sente alguma coisa pelo beijo que o Joaquim Phoenix dá nos pés da Marion Cotillard tão ao devagar no desmedidamente eterno “The Immigrant”?


sexta-feira, 23 de maio de 2014

quarta-feira, 21 de maio de 2014

 
 
 
“Die große Liebe” é o sonho ou o pesadelo com que Otto Preminger irrompeu no movimento do cinema ainda na sua terra natal e algo indefinível que ficou muito tempo num nevoeiro que só pode estar de consonância com o que lá se adensa, quebra, fragmenta, num inacabamento formal que faz corpo com o desfasamento consciencioso. À primeira vista é um conto como muitos de um soldado desaparecido e da espera cega da sua mãe. Mas logo na sequência auroral – verdadeiramente e sem poesia minha- da chegada do comboio que traz alguém de longe e que é paralelamente montada com a fé materna, entre cânticos ressoantes, ruídos vivos sabe-se lá de onde e uma atmosfera carregada de aleatório, fica-se a sentir que tudo pode acontecer para lá da razão. A mãe não tem a cria há 10 anos, o homem que chega também parece procurar uma substituição para a sua que já não respira. Nesse vertigo, a típica prometida que não pode esperar e arranja uma boa peça que agrada a toda a gente e sobretudo às finanças parentais. O que sucederá é uma comédia de enganos que se emaranha pelo drama para nunca sabermos se se trata de riso ou de choro o que sobeja, num dos desenrolares pictóricos e melódicos mais estranhos e de beleza inefável que tal período – entrada no desconhecido sonoro e poderio total da imagem – criou.
 
Uma perscrutação de 360º de uma câmara que vai da estátua estoica da crente ou de quem se acerta com a farsa até ao espaço dos espectros para a instalação de um presente insuportável; o momento Chaplinesco da salvação da menina das águas que de uma só vez volve o “vagabundo” em herói e entrega um milagre à medida de quem espera assim por ele; a Kafkiana burocracia no local do jornal que tudo revirou até à simplicidade da solução que a faz ir ao encontro procurado. Só falo da Mãe porque é ela quem faz todo o seu filme que é o que vemos explanar-se em impossibilidade consumada e sem perguntas, sem regra, nem alta moral. Quando se coloca em causa todo o mecanismo consciente e inconsciente dela, momento perto da humilhação, o não filho começa a tratá-la por Mãe. Até ao fim da comédia, até ao fim do drama. Filigrana lancinante.
 
Num cerramento feito em planos próximos, entre velas consumidas na dilatada noite, tiquetaques persistentes, e deambulações dos personagens e da encenação quase sempre de foras que não vemos para os dentros sempre pesados, espécie de desfiles que provocam os factos, a obsessão pelo tempo vai urgindo. E uma encenação outra que parte ou desequilibra ainda mais o todo, esse gélido teatro à la vaudeville que precipita a referida aceitação materna e ainda faz cair de um firmamento falsamente estrelado outro anjo para a beira do errante rebatizado Franz que nada pede e tudo lhe aparece de mãos vazias. Momento que se vai estendendo e distendendo na acção, que alarga o nonsense, e aponta à tragédia que tanto absurdo teria de provocar. O futuro planeia-se rápido demais, a coisa começa a dar para o torto e as cartas a distribuírem mal-entendidos até aí ausentes, mas o vento vira de novo e acaba-se a sublinhar a irrisão e o domínio da sorte e dos altos.
 
Se tudo parece acabar mesmo bem, sem mortos nem feridos, em riso finalmente pacificado sem escarninhos, tudo o que para lá do términus se pode imaginar pelas tamanhas ousadias, bem como o que ficou em elipse da utópica e escandalosa manietação do curso dos acontecimentos e das relações que não soubemos, aplica à beleza e harmonia um reflexo de gravidade que só pode lembrar o Lubitsch de “Broken Lullaby” ou o Max Ophüls das operetas em palco também Vienense. Se o show de salão é a seriedade e o aparelho de rua de truta e meia que canta ou vocifera quando se vai pela última vez a negro é o baixo, não pode haver melhor imagem para toda a reversibilidade que Preminger mete em cena do que essa oposição - tornar o inverosímil verosímil pela necessidade e acreditar supremo, flirtando com a metafisica e consumando mesmo o arrojo num desprendimento pelo absoluto, pôr à prova a lógica. Lógica, que é todo o desafio e corda bamba desta obra admiravelmente suspensa na crença da beleza para lá de todas as considerações e impunidades. Ou um longo sono que reverte toda a coerência do chamado real ou do guião aprovado, possibilitando a magia da varinha da fada mesmo que só no efémero hiato do hoje. Fascinante gesto que suprime a perdição.

terça-feira, 20 de maio de 2014

 
 
“And she was reputed to have been on the set the day Griffith invented the close-up!”
Francis Scott Fitzgerald, "The Love of the Last Tycoon"
 
 
Sempre tivemos o grande D.W. Griffith histórico, cheio de ressonâncias míticas e bíblicas, fundador de formas e narrativas mas constantemente revolucionário, onde na grande aventura de uma arte nova chamada cinema convocou a grande literatura como a grande pintura para, nunca esquecendo o passado e as correspondências universais, erguer frescos que só pela nova imagem em escuro largada podiam fazer sentido pleno; mas também o pequeno e intimista lírico de “Broken Blossoms” ou “True Heart Susie”, esse do coração gigantesco e mão terna que no mais singelo dos quartos retribuía aos seus sofredores e lutadores toda a luz e modelação apreendida num Rembrandt ou num Edward Hopper, elevando a construção fílmica o mais possível à morfologia dos seres, criando assim épicos outros do mais cândido humanismo. Mas o que me vazou desta vez foi a sua derradeira longa-metragem, essa imediatamente a seguir ao minúsculo e desmesuradamente apaixonado retrato de um homem solitário chamado Abraham Lincoln, onde prometia tudo alcançar com o recente som e possibilidades musicais; no entanto, tem que se dizer, a música foi fundamental na plasticidade e movimento de toda, toda a sua obra. Todas as suas composições como que bailavam harmonicamente ou em resolutas oposições. Música, pintura, romance e realidade bruta de uma natureza que entrava incandescente pelas lentes em fulgurante primeira vez. Galáxia complexíssima onde um filme tão curto como o “The Country Doctor” de 1909 parece englobar todas as vertentes enunciadas e as restantes, num cinzelamento e beleza já atordoantes, tornando-se tudo grande demais para análises deste género. Como escreveu João Bénard da Costa sobre THS: “uma trama tão ténue que não consente qualquer conversão a qualquer outra arte ”. Inarrumável.
 
“The Struggle” foi feito em 1931, tinha Griffith 56 anos e milhões de metragem para iluminar, milhões de palmos de terra e de gente para imprimir nela, encontrar-se e falar com Murnau e Jean Vigo, fazer o bem usando da implacabilidade, mas não aconteceu. Podemo-nos lamentar, mas mais vale ver sempre com atenção o legado. Esta luta começa em legenda ambígua e desafiante, lança-nos para o meio do que poderia ser um painel fracturado ou um mosaico de múltiplos espelhos, cheio de som e de fúria, cacofonia moderna, ruminante e denunciador dos males de uma nova sociedade interesseira e capitalista, onde o caminho da sobrevivência é o encontro com as misérias do álcool que aqui é um dos dínamos. Mas num corte furioso de secura e bom partidarismo, somos levados ao consumar do amor de um homem por uma mulher e de uma mulher por um homem, com uma acalmia na paz dos anjos e mais beleza letal, depois, em supressões do trabalho do casal, vemos o nascimento da sua cria, o aumento da paixão, os beijos de boa noite e os presentes prósperos. Mas também a contradição capital que consiste na quebra da jura que o esposo fez à esposa na promessa de casamento e vida, quando lhe disse que por tal nunca mais sequer cheiraria o vil líquido. Por ventura são coisas que não se prometem e muito menos em tais causas, se calhar nem vale a pena confundir as coisas e a tentação e queda naquele contexto aconteceria sempre. Sem querer entrar em futurologia, o que lá está é o possível agigantamento do demónio que todos temos dentro, inclusive a melhor das pessoas e a alma mais alva. O marido vai de facto perder as estribeiras e passar os limites dos limites, que não são só as bebedeiras constantes nem o abandono da mulher e da casa, nem mesmo a vadiagem com mulheres da má vida e sacanas ainda piores, mas vai arriscar acabar com a filha linda, num momento do mais puro terror onde a encenação do mal aleatório e incontrolável se expande circulatoriamente e só a mais pura sorte impede a consumação da tragédia. Uma exaltante fresta de luz ainda o resgatou da escuridão do purgatório em que penava. Se no plano que fecha esse bocado amargo da vida deles e do nosso mundo tudo parece estar bem, com os olhos do protagonista a brilharem de novo apesar de tanto sangue neles ter raiado, a tragédia foi mesmo vista de frente e logo experimentada na pele, cravada; marcas inapagáveis vão sempre ressoar, apontar e diagnosticar as estruturas e prioridades da nossa terra.
 
Se tudo isto é um tratado orgânico e feroz sobre a fealdade concertada e a persistência original onde não se sai de certezas óbvias num tal pântano, cinematograficamente estamos perante uma peça de concentração e descarnamento que se é o ponto de chegada e apuro do maior dos cineastas, do maior dos empreiteiros e logo supremo manipulador, tal só parece possível e reforçado pela circunstância e pelos limites. Concentração que tem a ver com a essencialidade de tudo o que acontece, romanescamente e documentalmente, onde na progressão dos acontecimentos referidos nada de acessório entra, nada de pontuação supérflua ou passível de distração. Não temos uns segundos de sol a seguir a um choro para aliviar momentaneamente uma dor ou criar uma metáfora fina, nem nuvens ou carros que aceleram para a noite, muito menos uma sinfonia dramatúrgica que carregue nas tintas da perdição. Somente os palcos significativos para o que interessa contar e mostrar, e o máximo peso na maneira de o captar. Que tem a ver com o tal descarnamento, a carne viva e cheia de veias e chagas em que as imagens nascem, vivem e se agravam, ferem e vilipendiam. A câmara de Griffith sempre foi a que mais pôde, a que mais ampliou e perfurou, no ângulo necessário com a distância e a temperatura adequada, mas, há que reconhecer, outro factor talvez ingovernável se meteu ao barulho, tratava-se de uma técnica e de uma ciência com as suas vicissitudes e propriedades recentes, não perfeitamente desenvolvida e acabada, ainda não limada e pronta para não exceder cânones plásticos e conformidades do aceitável. Ao olhar do mestre imponha-se a par a violência animalística do que não está totalmente domado nem civilizado, e daí que pelas composições rigorosas e nas entradas e saídas em que as portas rangem mesmo e cedem novos mundos, todas as auroras eram possíveis, essas surpresas que aparecem quanto mais se arrisca e se é rigoroso sem outros filtros que não a verdade do movimento e da emoção em jogo. Essa câmara já era então um potentíssimo objecto de precisão comparável às lupas da nasa ou aos amplificantes estetoscópios, objecto que no longe e no perto nos radiografava e escutava, acreditava nas profundezas e nos invisíveis; que esperava, se ajustava e reajustava, ia à procura e se espantava pelo milagre do tempo e da manifestação; sabia do comum e preservava o privado sobre o qual não se deve banalizar; estruturava o espaço, definia as escalas e os eixos, metia de fronte ou estudava a prespectiva adequada, flanqueava nem mais nem menos do que uma experiência nova do que é viver. Para dar razão ao que o outro grande humanista diria anos depois, esse Jean Renoir que afirmou perentoriamente que liberdade total não é muito aconselhável em cinema, que se devia ter certos princípios e até regras; e há que ouvir sempre a conversa dele com Henri Langlois no filme de Eric Rohmer titulado “Louis Lumière”, em que se percebe que o progresso e o desenvolvimento em arte não fazem grande sentido. Disse certa vez Manoel de Oliveira na apresentação de um seu filme cheio de efeitos especiais e digitais: “Só existiram três inventores: os irmãos Lumière, Georges Méliès e Max Linder”. Não falou em Griffith e tenho a certeza que foi por aos irmãos o associar. Qualquer destes ditos e se calhar lamentos apenas apontam para aquilo a que se chegou hoje: a bandalheira total, o plano a colar à sorte com qualquer outro e o efeito mais rasca a matar a coerência ou justiça ou a legítima poesia, o espaço a ser dizimado e o tempo a não existir; para não ir à parte mais sensível da raça e falar das torturas e humilhações supremas que um orgulhoso Lars Von Trier ou Michele Haneke aplicam aos seus opostos. A inteireza de D.W.G e logo toda a modernidade inultrapassável de que Oliveira deu conta muito a sério e nada a brincar tinha a ver com isto, a revolução acontece quando se é fiel ao que se encontra e tem em frente, quando se está à altura de, de onde a consciência genial, o desfasamento interesseiro ou o resultado pré-definido são a abjeção imperdoável.
 
Posição retrograda? História da carochinha? Saudosismo? O que ontem foi possível mesmo já depois dos pioneiros já não é agora, as imagens e sons e parafernália acessória escorrem como tinta lançada à sorte pelas telas dos nossos portáteis que tendem a substituir as salas incomportavelmente grandes, e assim a palavra resistência é a mais válida. É difícil encontrar o olhar de criança, antes da grande violação, da usura e de alguns incestos, mas nunca se deve desistir e essa será a moral para viver e morrer de pé, mesmo que se leve com um rótulo que hoje deve ser tomado em conta, o de reacionário que até mesmo colam a um James Gray, esse tão empenhado, actual e apaixonado artesão. Penso nos grandes pioneiros do digital, e já agora que não se leia isto romanticamente ou ironicamente, como Pedro Costa ou o caso do “Wolframe” arrancado a ferro e fogo por Rodolfo Pimenta e Joana Torgal das funduras da terra e mais ainda do cinema, esses que com o chamado vídeo caseiro procuraram, fungaram pelos escombros, ousaram, arriscaram, acreditaram nessa impossibilidade pelo trabalho e pelo reaprender a olhar, para descobrirem como se deve ver agora o Homem, de onde, sobre que fundo, horizontes perdidos; quanto tempo deve demorar a irromper e a passar no plano alguma coisa, quem deve encontrar, quando deve falar e o que dizer, novos ritmos, novos cortes, novos raccords, até silêncios nunca escutados. O mundo, a sociedade, a arquitectura, os valores, mitos, desilusões, é tudo de outra ordem. Não se trata então de fazer à Griffith ou à Chaplin, de plasmar, guinada utópica, nem de um alquimismo cego, mas de lavar o olhar, de se reposicionar, fechar os olhos às modas que são a reverberação da publicidade e do engano que nos quer fazer crer que tudo está bem e se deve continuar na onda, mas antes ser-se fiel e lutar, pregar no deserto, como o filme que me trouxe a estas linhas não cessa de nos dizer, para que as coisas fundadoras, plenas, invioláveis se metam no trilho e no sentido certo. A natureza a seguir o seu devido curso. O grito da flor no deserto ou o trajecto da estrela cadente. E a infância, os órfãos que mesmo eternamente enlutados não têm e têm temor de se atirarem a esse buraco onde se encontra o maior dos segredos. E as sombras adensam-se. “Eu fi-los ver, não fiz? Eu mudei tudo”, a ler com toda a literalidade, branco é galinha o poe.

segunda-feira, 19 de maio de 2014




Incompreensível tentar perceber os que ainda hoje comentam o academismo e a demissão de Otto Preminger em “In Harm's Way”. Sobretudo porque desde o espantoso e expressivo plano sequência inicial que nunca é virtuosismo, até às explosões finais que preparam o embalo de John Wayne numa das suas maiores criações, tudo é lógico pois assente numa moral que não permite que o espéctaculo do cinema leve a melhor sobre a vertigem bélica. Não só se chega aos estilhaços mas também, diria sobretudo, se passa nunca incólume pela tensão da espera, pelo medo do desconhecido do inimigo e do destino, da reação e controlo de cada um envolvido, onde não se está longe dos seus filmes e mentes dos anos quarenta e cinquenta. Toda a observação e contemplação pura da câmara, a sua movimentação e medida, certezas e travões, assim trabalham por causa da longa sabedoria de um grande cineasta que está por detrás dela e sabe que o que só ali lhe interessa é da ordem das movimentações dos corpos num espaço exíguo e sufocante, a precipitação dos acontecimentos, a abstração de todo um jogo incompreensível e fugidio; e não só isso mas inevitavelmente as consequências inafastáveis pelo tempo e pela duração da missão, que agudizam as relações com o próximo, trazem as paixões que assaltam irresponsavelmente, o auto-confronto muitas das vezes tão terrível e tortuoso como com o inimigo. Espera onde os fundos falam, a natureza, os céus, o ar se volve e envolve massa visível e palpitante como o vento, tudo se parecendo manifestar perante tamanhas ousadias e perpetrações humanas, consonando-se assim o desmedido scope com o que envolve.

Tudo tem de arrebentar perante convocações e convulsões destas e rebenta mesmo – não só as bombas e os corpos esquartejados, mas suicídios, humilhações como a do errante Douglas a um parceiro manhoso, redenções fora de hora e outras ainda em boa hora, atitudes a queimar o risco e o ponteiro, demências sem definição, entregas totais, e tudo o mais que as palavras não contam. De resto, nesta obra fundamental em OP e no cinema americano do final do sistema de estúdios, absolutamente acabada e aprimorada, o estratega e prático feito Henry Fonda tem tanto peso e importância como teve na aparição em “Fedora” de Billy Wilder. Pois Preminger não só assume a posição Fordiana/Hawksiana dos homens que partem para a luta e que tomam as decisões firmes e no tempo adequado a favor dos grandes estrategas que não saem do papel, como, nessa lacónica e comovente primeira aparição de Fonda, lhe permite ajustar as contas em vida que tinha para ajustar nas batalhas de pó e outro tipo de armas no Oeste de “Forte Apache”. Não é delírio dizer que reaparece dos mortos e se agiganta agora calmamente e de certezas ainda mais acabadas o Lt. Col. Owen Thursday, como o escuta sem pestanejar e apoiando incondicionalmente o poderoso Capt. Kirby York que dispensa as secretárias e preferirá sempre os estilhaços. Para ser ainda mais comovente a presença final que tem o tom da despedida, quando diz a Rock, só assim podia ser chamado Wayne nesse presente, agora fecha os olhos e dorme, ordens minhas. De resto, é ver as paralelas e as cortantes entre Rock e a enfermeira Maggie com o filho descoberto e a pequena trágica sem lugar na terra; todas as outras relações que alternam o romantismo do instante com a perdição no geral para um compósito denso e grave não só do ar do tempo mas do sempre; e Wayne/Douglas que sempre se entendem e amam e tudo perdoam, tão belo como o sorriso e o silêncio de Jere na aceitação profissional e paterna. Alguns ousam e tudo vencem, outros caem, nada de super-heróis ou Deuses, mas o que se encontra aqui é uma frontalidade que nunca se esconde ao que tem de ser tem muita força. E o classicismo absoluto que se desprende constantemente dos livros e inventa as suas formas novas para fundos que sabendo-se eternos ali são únicos pela comoção da proximidade, ao lado do que se filma e nunca demitido. Escrita harmónica de imagens e sons que formam e enformam os sentimentos. Elipse que nunca fecha e tudo expande para todas as zonas claras e negras e as suas fusões. Grandioso, em todos os sentidos e com os mais alguns das obras intermináveis.

domingo, 18 de maio de 2014



Há um romantismo não dito mas nem por isso menos sôfrego e fundo que atravessa parte da odisseia de Alan Dwan. Esses momentos ou validações perpétuas que alguns podem experimentar, outros não, e o porquê não dá de si. Agora sim, encontrei a liberdade. Agora, estou livre. Concretiza um desertor dos mares a uma ninfa de tribo canibal quando finalmente lhe aplica a diferença entre o amor e o peixe, o beijo e a rede ou o mergulho. Nem se trata de metáforas subtis ou filigrana erótica mas sim uma possibilidade de comunhão virgem. O desertor é o Dana Andrews dos noirs e policiais de Preminger ou Lang, ultra calejado pelas vivências em cada porto e com cada mulher do interminável atlas. No epicentro do perigo, ele, confio eu e vê-se no seu olhar que transcende à alma, prefere largar a civilização e entregar-se à selvageria. Só que como nas ambiências de Murnau ou Herman Melville, nas sombras e luzes e obscuridades com que Dwan também se decide envolver, há Tabus e demónios a que o homem mesmo despido de crenças e disposto a reentrar na origem, se vê obrigado a disputar. Embates inacessíveis ao comum pois resguardados para poderes outros do lado da metafisica, mostruário das nossas distâncias, portas inacessíveis.

“Enchanted Island” comporta em si, no seu âmago, a tragédia de uma união impossível que está inexoravelmente minada. Uma tragédia, cavalgante na imperturbabilidade e no pacifismo do olhar perene e incorruptível do grande cineasta desassombrado que tudo tem a latejar por dentro ou em espírito. Tragédia despoletada gravemente pela ausência do amigo; o marujo que fugiu com o amigo, se perdeu nos abismos da paixão, no turbilhão dos novos mundos, mas não consegue esquecer certos segredos, certas promessas invioláveis, laços ecoantes do berço. Concentrado como o chamado melodrama, sem sublinhados de género ou desgarramentos imagéticos à Douglas Sirk, mas num ritmo drenado e numa respiração indizível e incontrariável sem código. O final, a fuga dos amantes para lado nenhum, nesse instante em que ainda se tentam enganar, onde as famílias comparticipam da fealdade vertiginosa e tão amarga, corpos tão belos perfurados pelo inabalável mal tão abstrato como preciso, o seu destino último é como esse da morte. Entregam-se à liberdade total que nenhuma facção ou autoridade poderá jamais meter em causa. Exercem o direito derradeiro e revolucionário e num plano igualmente para lado nenhum e chorosamente seco pode entrever-se um céu, paraíso deles. Pacificamente, sem esgares, inteiro, num dos cânticos limite ao amor mesmo na morte; feliz pela aceitação em assunção e pelas possibilidades infinitas do desconhecido. Tudo se sabia desde a chama iniciática, sem possibilidades de ilusão ou enfeite; palco de explanação milimétrica da fusão de uma carne com outra carne depois dela. AD teceu o cúmulo do romantismo, chegando ao sagrado como que em divina figuração terrena junta a Michelangelo, sem chamar por isso. Mas, diga-se, com muito mais sopro de vida e experiência concreta do que fascinação ou fantasmagoria cinematográfica.

sábado, 17 de maio de 2014

 
 
Livre? Quem quer ser livre? Responde Robert Ryan, salvo de um cadafalso literal à última da hora e de outro muito mais potente ferrado no interior da sua cabeça, a uma Barbara Stanwyck que na hora menos esperada viu a vida torcer. Tanto um como outro pertencem à raça dos que agiram tempo demais em espaço demais por sua conta e risco. Sem medida, nem sentido, Deus nem Sombra. Ele por esse mundo fora tendo como tecto o céu. Ela junto a elefantes, dentro de palácios e selvas de igual perdição. Então…a velha incompreensão. Por meio de injustiças imperdoáveis, irmandades além morte, insubordinação, fugas, a doença, a peste, vão-se encontrar no milagre final ou na justiça final e fazer parte dele. Perceber, como todo o grande cinema americano percebeu e já não percebe mais, o valor da fidelidade. Fidelidade que jamais se amarra ou aninha, mas que é pelo contrário o móbil de todas as liberdades. Por isso mesmo a deixa final não é sentença, é júbilo. Fidelidade antes da constelação do amor ter deixado de fazer parte da comédia rasca.
 
Ou seja, sentimentos que são os do trabalho do cineasta. Alan Dwan. Toda a ficção deixa de ter a sua aura de espetáculo ou de efémero para se projectar em eternidade. O romanesco é o romanesco de milhões para lá ou cá do cinema. O ofício das formas como ofício da memória. Da reposição. Uma missão. Tudo entra em acordo e por isso mesmo é difícil não considerar toda a obra que conheço de AD um só filme. Caminho de múltiplos pavimentos e direções. Seja no fogo de Iwo Jima, pelas águas do sonhado Suez, na viçosa Montana, no apocalipse da obra crepuscular. Tudo é documento, ainda mais do que documentário, e tudo redime da vilipendiação e da usura que tantos autores gastaram pelo mundo. Mundo vetorial ou mundo abstrato dos abalos dos sentidos. Em “Escape to Burma”, no auge da fábrica dos sonhos, uma dança e carinhos de um elefante, a sede de carne de um tigre ou de uma pantera negra, o privado dos desejos do par, um pedaço de terra que aluí subjacente ao medo, uma pintura de papel paisagem telúrica ou feérica luz falsa para tempestade dos Génesis, folhas e seiva lânguida a imiscuir-se na definição arquitetónica rigorosíssima da abertura, são postos no mesmo plano e na mesma profundidade que sabe que tudo é inerente no movimento verdadeiro. No movimento original que todo o integro deve almejar. Que a enfatização estará no invisível, esse secreto imanente, ou quando o cinematógrafo deve elidir - tanto no imemorial Éden ou pela caneta de um argumentista pago à página.
 
Esgotamentos, isolamentos, falta de ideias, edificação do ego, alimentação do ego, choradinho, miserabilismo, cego individualismo, Rimbauds fantoches, hereges, sofistas, jogos de percepção, tudo desta raça é a moral proibida. Quando a comunidade importava o cinema era comunidade. As coisas brilhavam e o mal, que se enegrecia e mostrava e fatalizava como nunca mais, morria pelo poder comum. O mundo como deveria ser, disse certa vez o mais justo dos homens e dos artesões, Victor Erice, por estas tão raro, por estas tão lancinante. E quando o próximo, a sombra protetora, o olhar iluminado, fidelidade, essa distância límpida, fome elementar, era a busca certa na maior da miséria. Livre? Quem quer ser livre? E assim “Escape to Burma” é a arte e a energia mais livre possível. Seguimento que continuará em tantos episódios e actos de sopros distantes de lugares habitados.