terça-feira, 27 de janeiro de 2015
segunda-feira, 26 de janeiro de 2015
Inconcebíveis e recônditas cicatrizes elevam o Paul Muni de "Imbarco a mezzanotte" das sombras de um buraco de bicho de mato para a claridade tenebrosa da civilização. Tem umas horas para regressar ao refugio depois de cumprido o objectivo do seu périplo cimeiro. Mas há marcas (ou visões) que são inaceitáveis para a vida terrestre. Olham para ele e não lhe aceitam fome, sede, dignidade, existência. Tudo o acusa, aponta o dedo, o vende como gado para matadouro. Cede, cega-se e mata. Até que um miúdo muito novo e muito sábio, carregado de desejo e de memória, olha para ele limpo, lhe dá a mão e recebe um Pai.
O que é verdadeiramente espantoso e revolucionário neste conto ou nesta parábola é que no inferno desta corrida que nem o dia inteiro dura Muni justificou, redimiu e ganhou a vida. O filho, uma mulher e o beijo mesmo que por instantes, o descanso total da efemeridade mais que perfeita. O maravilhoso regresso do longínquo. E no corrupio: as imemoriais zangas, dúvidas, traições e reconquistas, abraços, fidelidade selada, acordo além tudo. Muni a ganhar a sua vida e a lançar outras. É o balanço e o fascínio que envolve o movimento do plano final. Transfiguração concretizada nesse ciclo.
Joseph Losey, sempre sintético e infinitamente múltiplo, claro e rugoso, agarra e faz acontecer tudo isto em pulsões que excedem a condição neo-realista. Dispensa toda a potência económica e social como paisagem definida, alarga e areja todo o contexto para ficarmos com o percurso condensado de uma vida num pequeno e eterno hiato. Elidindo retóricas políticas e discursos armados, apagando as legendas e os patrocínios, é pela realização (a mise-en-scène) que toda a condição, contradição e harmonia aparece de dentro e pelos fundos. Todo o recuo da História e logo todo o avanço dado pela revelação. Num dia, nem isso, todo o tempo, toda a idade, experiência.
domingo, 25 de janeiro de 2015
Já estando morto o tinhoso Sonny logo no primeiro Padrinho de Coppola, James Caan teve obrigatoriamente de se meter num personagem ainda mais maníaco e indefinido. "The Gambler" pode ter um título que adivinha todo um programa e uma atmosfera, mas, tendo em conta não só o protagonista como também o escriba e o surpreendente Karel Reisz na realização de uma gesta Nova-Iorquina, e agarrando nas infindáveis forças contraditórias do ar do tempo, torna-se, lentamente, perdidamente, um todo ilógico que aniquila qualquer planeamento do cinema para se colocar nos abismos da experiência orgânica e do singular, de onde as fórmulas da repetição analítica não vingam. Axel Freed é um professor que utiliza Dostoiévski e George Washington não tanto para rasgar horizontes aos seus alunos mas fundamentalmente para encher o depósito próprio que o faz incendiar de aposta em aposta, de desejo em desejo, de medo a medo, para que sinta qualquer coisa a qualquer momento. É ultra complexo pois os seus olhos e suspiros dizem que ama a sua Mãe e o seu Avô - mesmo a sua namorada, pois as discórdias são somente a superfície da paixão - mas o fervor do seu sangue e a sede de risco não só o impelem para o perigo como abrem feridas cada vez mais fundas e insanáveis nos seus. Qualquer coisa vale, da fossa luxuriante de Las Vegas até ao pátio da ralé que tenha um cesto furado de jogo para um qualquer desafio. O filme começa forte e acaba tão forte como os derradeiros, apocalípticos e lúcidos avisos de Bresson - mas aqui ou não se conhece a palavra lucidez ou ela já está noutros patamares. E se os meios parecem guiados na tal da velocidade de cruzeiro constante ou segura, o tal arrefecimento do jargão fílmico e crime indesculpável para os doutores e criativos do argumento, é só porque a coisa é interior e há que se deter e tentar partilhar a tensão de uma coragem desconhecida. Desconhecida e na estrada do aleatório, da fuga em frente sem lei nem ordem, muito menos prestando contas ao tempo e aceitando a agradável consideração. Como "Mean Streets" ou "Bad Lieutenant", ou "Fingers" do James Toback que urdiu ou desurdiu este Gambler, não se trata de cumprir uma missão a contra-relógio e em circuito fechado, antes uma aventura espiritual que já abandonou qualquer plano estudado para vogar na abstracção, essa metafísica compreendida pela ausência de chão ou razão. Se a realização tem obviamente de comungar da bruteza e do degredo dos filmes mencionados, a sua polifonia pontilhada (ou estrangulada) a variações de Gustav Mahler é decisiva pois despega a demanda da vertigem da linha recta e do percurso no presente sufocante em direcção às teias do indestrinçável, isto é, vertigens inauditas, danação, liberdade como absurdo. Não há redenção, só corrida, assim mesmo, com um pé em Scorsese e outro em Monte Hellman - a víscera, a tosse, e a detonação - para se situar na aritmética cosmológica do indecifrável. Várias perguntas possíveis: um romântico looser? Inocente perverso? Monstro insensível? Um rebelde sem causa perfeitamente certo? E nem uma resposta que não seja ainda mais grave do que a pergunta precisamente pela sua partilhada impossibilidade. Apenas, e finalmente, a constatação que contraria a ideia errada (e essa sim totalmente inconsciente) de que o cinema Americano desta era era adulto, responsável, enfim, consciencioso. Esse teria sido, e só em certa medida, o meio clássico, na sua limpidez e harmonia com um mundo que o possibilitou. Entre Travis Bickle e Robert Eroica Dupea, do elo possível que vai do piloto Kowalski ao leal John Wintergreen, a evidência: suicidas, desistentes, Cristos, irresponsáveis, crianças criminosas, velhos putos, silhuetas ao sabor do vento e fiéis escandalosos, quimeras partidas, sonhos vencidos. Ou seja, jamais se tratou do passo seguinte evolutivo, mas realmente John Ford volveu-se Sam Peckimpah, a natureza e a justiça férrea esquecidas no buraco negro e nas cicatrizes da constatação, preço das conquistas e odisseias cansadas. Cicatrizes incomensuráveis, como aquela que Cann ganha no final de "The Gambler" para seu ridículo contentamento.
quinta-feira, 15 de janeiro de 2015
"I
just disappointed a would-be FB friend who wanted life advice. I don't
give advice, I NEED advice. The only advice I can give is one small
admonition: Don't go to film school, make a movie instead.
This is not dissimilar to the advice I got when I went to NBC for a job in the mail room: You don't want this job, you should just go out and direct. So I spent three years directing in summer stock. At the end of which, I went to ABC for a job in the mail room."
Monte Hellman, FB
This is not dissimilar to the advice I got when I went to NBC for a job in the mail room: You don't want this job, you should just go out and direct. So I spent three years directing in summer stock. At the end of which, I went to ABC for a job in the mail room."
Monte Hellman, FB
segunda-feira, 12 de janeiro de 2015
~
"The value of Sam Peckinpah's work is still very much in question; its intensity is not. And art that expresses such energy and passion, such a commitment to personal impulse, commands, at least, respectful attention. The Wild Bunch and Straw Dogs, whatever one's estimate of them, have that combination of candour and force which announces an artist who is not afraid of appearing ridiculous; those who profess to find them no more than ridiculous are perhaps nervously insulating themselves from the films' ferocious and contagious energy. At the same time, one may comment at the outset that it is a great pity that, in the eyes of the public and most critics, Peckinpah's gentler and arguably finest films (I think especially of The Ballad of Cable Hogue and Junior Bonner) have been so overshadowed by the spectacular and explosive violence in the more notorious works- a violence that is certainly a major component of his artistic personality, but by no means the whole story.
Peckinpah's work situates him firmly within the great tradition of the American cinema. I mean by this rather more than that he has repeatedly returned to the Western genre.... For all their radical differences of temperament and emphasis, Peckinpah (born in 1926) is the heir of Ford- an heir Ford would perhaps not have wished to acknowledge, but an heir none the less. Ford's work shows a consistent involvement with America both as a country and as an idea: his later films are evidence of a growing disillusionment with that idea. But Ford, rooted in those ideals of the American future looked forward to in his earlier work, could never quite make the transition from disillusionment to active rage and antagonism; even Liberty Valance is ultimately dominated by nostalgia."
Robin Wood - 'Sam Peckinpah,' Cinema: A Critical Dictionary.
Robert Mulligan entregou-se a todos nós. Realizador
de cinema ou de televisão, argumentista ou produtor, mas, antes do título, um
amante da raça humana, das suas complexidades e riquezas, contradições,
segredos; e tudo o mais, o irresolvível, por exemplo. Nunca um mero curioso ou
bisbilhoteiro, mas um profissional e um ser que pôs em causa qualquer tipo de
virtuosismo ou a chamada evolução de carreira, as mais-valias idiotas como os
prémios, para se dedicar a seguir, a amparar ou a mostrar, simplesmente
mostrar, homens e mulheres em relação mútua e com o mundo que os envolve.
Homens e mulheres no mundo. Depois, obviamente que dos corpos, das situações,
dos dilemas ou das temperaturas e cores sobeja a emoção. Emoção então o mais
crua possível, o mais pura pois sem golpes baixos ou sem as tais soluções
artísticas que caucionam seja o que for. Olhares e logo as devidas formas tão rectas
e comprometidas que possuem o grau de certeza e de falhanço com que qualquer um
de nós está irremediavelmente provido. Poder-se-ia dizer: uma escritura tão
limpa para uma leitura tão clara que todas essas premeditações do modernismo cego
passam por plano e execução verdadeiramente totalitária, algo que não nos dá
espaço nem tempo nem distância para pensarmos e logo sentirmos por nós. Mas
algo assim tão fragilmente sensível e à beira da inocência iniciática não permite
equações teóricas. Apenas o conto, o raconto, o passar testemunho e experiência.
“The Pursuit of Happiness” nasceu nos limiares
dos anos setenta do século passado, como quem não quer a coisa, de fininho por
entre revoluções, explosões e implosões, e se na altura pareceu inofensivo e
pueril, hoje poderá parecer aos mesmos, esses alguns que não conseguem limpar os
olhos e a mente da cultura mais nefasta e essa sim primária - ou aos que
assistem a meia dúzia de filmes por dia e já só admitem o esquema perfeito e a
técnica profissional - demagógico ou maniqueísta, um pouco tonto e
melodramaticamente descabelado. Mas é apenas – e num apenas que o torna
violento e lírico como toda a alma ou luz desnudada – o percurso e a história
jovem de alguém que só quis dizer a verdade e ser ele próprio sem máscaras, mas
que, no centro do prometido acaso e das prometidas misérias, esteve quase a ser
engolido por essa boca diabólica que já comeu pessoas tão lindas e que há-de
continuar a comer impunemente. Essa boca abstracta que tanto custa fechar e
matar de vez. Percurso e história como que vivida e contada por uma criança, de
onde filme e esses (alguns sempre em algum canto) tão duros e tão ternos se
recusam a ir pela via suja e ao fugirem endireitam alguma coisa do que está
torto e retiram a mais subtil e bela das vitórias. Quase filme pelos olhos de
um infante perdido e maravilhado à maneira de “Moonfleet”.
Vamo-nos encontrar com o par perfeito, tão
jovial, tão protegido e descoberto: o Michael Sarrazin que por essa altura
tinha sido trabalhado (e acariciado, e calejado) também por Paul Newman em
igualmente genial filme, e a Barbara Hershey delicada que com ele fica até
final, mesmo tremendo nos instantes agudos e dilatados, nos horizontes turvos e
quando o estômago incendeia. Todos parecem maravilhosos, fiéis, leves, por
dentro e por fora, do amigo trapalhão ao Pai ausente sempre presente; e mesmo
tias e avós resmunguentas e até homofóbicas e de outros defeitos piores se
salvam e fazem o que têm a fazer na hora negra. Mulligan arrisca sempre tudo,
pescoço e bilheteira, e mesmo nos advogados formatados ou nos acusadores
mercenários se percebe que algo muito maior do que eles mesmos os faz ser assim;
todos e qualquer um com hipóteses de remissão para lá das fronhas da defesa e
gravatas da respeitabilidade. Sarrazin, ou William Popper, é como o realizador
em cargo, e mantem-se firme até sempre, pois mesmo a fuga não é fraqueza mas
sim a violência mais violenta do que a intolerável que tudo despoletou. O puto
que ainda brinca com barcos segue também os instintos primários, irracionais e luminosos,
criancices, deformações, únicas coisas em que a partir de certa altura ele só
pode confiar para além dos que dariam a vida por ele. “Because I like to make
sense. I like for things to make sense, and right now, here, for me, they
don't.” - declaração que tem a mesma força e elevação moral da Mãe que no
“Young Mr. Lincoln” de John Ford se dizia analfabeta mas sabia reconhecer o Bem
e o Mal.
William Popper está certo como certos estão os
rebeldes sem causa de Nicholas Ray ou certos anacronismos aberrantes de Sam
Peckinpah, os que “poderiam ter sido qualquer coisa” dos romances de John Fante
ou da nossa rua, biliões de declamadores anónimos mas não anódinos do
quotidiano mais terreno. E mais funda é a certeza e a razão quando se sabe que
ele matou uma pessoa, entregando-se inteiro ao que faz sentido, acreditando na
força de um amor maior. É esse tipo de incondicionalismo indestrutível e precioso
como um tesouro soterrado que só os dois sabem o paradeiro e a maneira de o
trazer a cima que lhes tece a comunicação, linguagem cifrada dos amantes –
quando ele lhe diz que não vai com ela a um encontro essencial às suas ambições,
mesmo que ela se ponha de joelhos, percebe-se que é para bem dela e das experiências.
Por muito passou Popper, da prisão à chantagem, da manipulação ao degredo dos
valores, mas como lhe disseram também: "Treat every experience like a
sweetheart. Who knows? You might wind up having to get married." – todas
as coisas fazem crescer e solidificar, como todas as estradas podem apanhar um crepúsculo
ou um reflexo singular que as eleve a epicentro do mundo; nunca desistir, como anunciou
à avó antes de lhe dizer que a amava com herança ou sem herança, se a visse
mais cem vezes ou se essa tivesse sido a derradeira.
A música a irromper depois da fuga e do
reencontro do trio que lembra o de “Rebel Without a Cause”, os momentos
perfeitos no lago com piquenique e banhos nus, o tudo para a frente sem
ponderação e idade adulta, o tremeluzir particular e cósmico, o grão na película
fracamente exposta, a filmagem e a montagem tão “apagada”, o despegamento final
e a liberdade figurada e não figurada, são a ode ao temperamento e à generosidade
que salva do aplainamento. Só um Manuel Mozos desta vida (lamento, mas não é na
América de Alexander Payne ou de Wes Anderson que calores destes e resoluções
lancinantes rasgam) hoje em dia segue ou deixa fluir essa veia de amizade, devolução,
sinais vitais que prometem e dão mesmo luta à mentira e ao calcamento mais
dissimulado e cobarde. Young, tanto se escuta young na banda-sonora e pelas
constelações dos rostos miúdos, esse Let my heart go on beating, a little bit
longer, I'm so young, I'm so young..., nessa inocência e lucidez que também faz
lembrar a fuga de João César Monteiro para o Polo Norte num certo filme, para
longe da piolheira.
Mas, outra vez, vê-se e conta-se este filme,
filmes destes, podem-se referir legados comunistas ou vociferações racistas,
corrupção ou apregoamentos Bíblicos, e o que fica é dois seres ou três, e o
Pai, e o amigo morto na cadeia, e mais, que estão para sempre certos, doa a
quem doer. E para sempre Jovens. Forever. Robert Mulligan entregou-se a todos
nós. Quem o seguirá?
sábado, 10 de janeiro de 2015
segunda-feira, 5 de janeiro de 2015
Poderiam ser milhares de outros, mas neste momento e por visões próximas, ligo
Samuel Fuller a Clint Eastwood no que a redenções profundas convém ligar.
Redenção sim, mas nem sei muito bem se o que está em causa é essa profundidade
a que nos habituamos quando as contas nos fogem. Não se tratando da redenção
fácil da desculpa, nem do evitar ou da oferenda, antes qualquer coisa que só
pode ser vista e tacteada nas experiências derradeiras e urgentíssimas, quando
se passa para lá ou para cá do bom senso e do sabido, onde o inferno (o icónico
e o seu oposto) começa a ganhar imagem e corpo. Em “The Baron of Arizona”
Vincent Price é um pioneiro maldito que tudo falsifica, inventa e reinventa a
seu bel-prazer, dos sangues alheios às honras, da paixão à ambição sua, para
algures entre a sua forca prometida e a solidão merecida, ter realmente medo do
que é o amor e assim só de cabeça a ele se poder entregar. Bill Munny é o nome
da excrescência em andamento representada pelo cadavérico Clint em
“Unforgiven”, ou melhor dito, esse “ladrão e assassino bem conhecido, de um
temperamento notoriamente dissoluto e violento.” Que Bill retorne para uma
última matança eternos anos depois de ter posto de lado esse ofício, eternos
anos depois de ter deixado de beber e de cometer os pecados análogos, e que
mesmo assim, que mesmo na sua inclassificável animalidade final, se sinta o permanecer
límpido da entrega a uma mulher e a uma transcendência (quem estava a ver o
filme comigo sentiu isso pelo coração muito melhor do que este escriba tão poluído…)
– o que noutras paragens se define pela salvação e a remissão – só se poderá
compreender, se tal for possível para além da emoção imediata, pela entrada nos
reinos do indizível, esse tempo antes da nascença e depois da morte que alguns
dizem mais do que entrever na vida terrena. O Barão de Price é de uma
ambiguidade que faz par com o editor-chefe do primeiro filme de Fuller, onde as
aparências são já chave mestra para algo mais elevado e escorregadio e a moral
segue caminho ainda mais curvado. Quer dizer que com tanta tropelia e repetição
dos seus efeitos pessoais de desenrasque, a velha historieta do Pedro e do
Lobo…, quando sobeja o bem sem medidas e sem negócios e o touro se volve
carneiro, não temos mais nada a que nos amarrar e acreditar do que os olhos
desse trota-mundos indiferente, ou seja, a luz do cinema e o interior humano,
as suas infinitas correspondências. Como sempre, só come quem quer e,
obviamente, quem já provou de algumas coisas sui generis e caminhou por alguns
lados nada aconselháveis. “Se vir um homem aí fora, mato-o! Se algum sacana
disparar...mato-o a ele, à mulher e a todos os amigos e queimo-lhe a casa! (…) Enterrem
o Ned como deve ser! Não anavalhem nem façam mal às putas! Senão volto cá e
mato-os a todos, filhos da puta!”; como se adivinha, já estou na sentença final
desse danado sem norma que agia perante o mais cravado dos segredos. Aí, nessa
penumbra e dissolução com que o vento o leva, ou mesmo no contra-luz final em
que só resta o espírito permitido à silhueta, nem o cinema salva. Pois essa luz
condena, é o mais óbvio e a regra dramática. A complexidade de tão grandes
artesões, tão resolutos e tão sem-certezas, é a de convocarem o pior dos males
possíveis para num raio tão breve que só alguns poderão ver e sentir – os
disponíveis para a compressão sem lei – o sensível se expor todo e a
justificação muda gritar. A grande e enaltecedora História e os reflexos preciosos
que cegam. Nunca, é preciso nunca confundir, se está a falar de filhos da puta –
anjos ou de mercenários – samaritanos, jamais, pois estamos nas sendas do indestrinçável
e do indecifrável. Assim Fuller e Clint tanta coisa fizeram, alguns trabalhos
ditos falhados ou menores, em que a garra e a intuição comeram qualquer tipo de
razão e conveniência rumo a algo superior experimentado onde as coisas
realmente estão na perspectiva devida – a perspectiva do Homem, bicho acossado
e pleno, tantas vezes a ver da lama e outras tantas das estrelas.
Campos-contracampos estilhaçados, raccords despedaçados, gatafunhos errantes,
sucessão de planos mais próxima da convulsão quotidiana e um bocado longe do
polimento da máquina industrial, etc., e mesmo assim tudo se percebe pela força
da insistência que só pode ter o subnome de verdade. A terrível, tão obscena e
tão básica…
Bruno Andrade, sobre Pedro Costa e o "contemporâneo" (arrancado a um não-lugar do facebook):
"o lance com o diaz é o seguinte:
onde o costa é um dos cineastas mais concisos, mais precisos, um relojoeiro (tourneur, ozu e warhol não são as referências capitais dele à toa); onde cada plano é um bloco compacto de coordenadas que funcionam de forma inequívoca e sempre de acordo com as circunstâncias determinadas pela geometria local daquele plano, daquele recorte específico do espaço; onde o acidental e tudo o que irradia, se espalha e se assenta como sinais de vida no espaço da tela (ênfase no "da tela": nessas duas palavrinhas consta TUDO o que separa costa do diaz) são frutos da maior contenção (se o costa fosse um romancista ele seria com certeza proust); onde essa contenção forma cristais que dão uma impressão muito autêntica de autonomia (devido à força de sua composição, à compressão material que a técnica do costa tem como finalidade, o filme vai se suprimindo na medida em que vai se inventando) mas que funcionam numa fluência, numa continuidade emocional (que, provindo de cristais, não tem como não ser cristalina) que não se vê desde, sei lá, os noirs do losey, os faroestes do boetticher, os policiais do fleischer; onde no costa há TUDO ISSO no diaz há apenas: vácuo, uma distância complacente, safa (não existe cinema menos distanciado que o do costa, e quem fala em distanciamento a respeito da técnica dele não entendeu uma vírgula), uma série de procedimentos que o filme não faz mais que redundar e tarimbar para cinéfilos, cineastas e críticos advertidos pelas revistas especializadas
é um cinema feito para dar o que falar, mas que existe concretamente muito pouco ou quase nada na tela
ou seja, um exemplo crasso do que conveniente e complacentemente é catalogado por aí como cinema contemporâneo"
"o lance com o diaz é o seguinte:
onde o costa é um dos cineastas mais concisos, mais precisos, um relojoeiro (tourneur, ozu e warhol não são as referências capitais dele à toa); onde cada plano é um bloco compacto de coordenadas que funcionam de forma inequívoca e sempre de acordo com as circunstâncias determinadas pela geometria local daquele plano, daquele recorte específico do espaço; onde o acidental e tudo o que irradia, se espalha e se assenta como sinais de vida no espaço da tela (ênfase no "da tela": nessas duas palavrinhas consta TUDO o que separa costa do diaz) são frutos da maior contenção (se o costa fosse um romancista ele seria com certeza proust); onde essa contenção forma cristais que dão uma impressão muito autêntica de autonomia (devido à força de sua composição, à compressão material que a técnica do costa tem como finalidade, o filme vai se suprimindo na medida em que vai se inventando) mas que funcionam numa fluência, numa continuidade emocional (que, provindo de cristais, não tem como não ser cristalina) que não se vê desde, sei lá, os noirs do losey, os faroestes do boetticher, os policiais do fleischer; onde no costa há TUDO ISSO no diaz há apenas: vácuo, uma distância complacente, safa (não existe cinema menos distanciado que o do costa, e quem fala em distanciamento a respeito da técnica dele não entendeu uma vírgula), uma série de procedimentos que o filme não faz mais que redundar e tarimbar para cinéfilos, cineastas e críticos advertidos pelas revistas especializadas
é um cinema feito para dar o que falar, mas que existe concretamente muito pouco ou quase nada na tela
ou seja, um exemplo crasso do que conveniente e complacentemente é catalogado por aí como cinema contemporâneo"
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
De “O Velho do Restelo” se poderia dizer - um
jovem inconsciente ou alguém muito adulto preocupado com a carreira - que se
trata de um vídeo experimental. Em qualquer dos casos, será preciso prestar
muito namoro ao lado inútil e mundano com que se tem tratado a questão de ligar
imagens e sons, a tal da luz embrenhada com a sombra, etc. Se um aluno de uma
escola de Cinema, ou um realizador na crista da onda, propusesse ao professor
ou ao produtor o que Manoel de Oliveira ousa aqui, tal patrão olharia para o
subordinado com fúria tal que esse ("A água bate na rocha, mas quem paga é
o mexilhão") procuraria nova profissão. Imagine-se a equação: “quero
juntar num banco de um jardim indiferente Luís de Camões, D. Quixote, Teixeira
de Pascoaes e Camilo Castelo Branco, pedaços de filmes meus, pedaços de filmes
alheios e de literatura clássica, mar e natureza bruxuleante, para criar uma
sinfonia total em que o passado comenta o presente, as misérias as festas, o
antigo faça corpo com o novo”. A tamanho delírio, juro que eu ou quem quer que
fosse só poderia considerar louca tal persona, e reprovava, e era despedida. Mas
Oliveira é Oliveira, o que não quer dizer privilegiado, mas sim um animal (na acepção
mais selvagem e instintiva do termo) que a tudo e a todos resistiu pelo século da
modernidade e do vale-tudo rumo a uma beleza convulsiva (tão nova, tão
esquecida) que só admite jorrar pela quebra de todo e qualquer prossuposto normativo.
Os novos mundos e o rasgar de Camões, a alma e cavalgares de Quixote, o fogo e
a desconhecida animação víscera de Camilo, com a lucidez assombrosa de Pascoaes, sempre mediador.
Tal desassombro, tamanha calma, inextinguível chama, desejos vividos – não
inventar nada de novo e entrar pelos caminhos mais desconhecidos sem
pestanejar. “O Velho do Restelo” é ver Luís Miguel Cintra a ser Viriato ou o Poeta
mirolho da humanidade; Alcácer-Quibir em redução com todos os ecos fora de
campo de um extermínio lento e de permitida consumação que nos cerca. Parece
pouca coisa, mas estamos a um tempo na vida jovem e nas guerras imemoriais. Fim
e princípio, sempre as voltas dos grandes. Como se fosse um “vídeo
experimental”.
"Cavalo Dinheiro" (final round)
1. “Cavalo Dinheiro” é um trabalho realista. Toda a fantasmagoria, assombração, obscuridade ou os trabalhos delicados da memória são filmados de forma directa, frontal, sem qualquer tipo de filtro ou exotismo que não aquele que o corpo, o lugar, a causa e logo a narrativa inerente permite emanar. Muitos filmes recentes, das mais diversas proveniências, têm usado o neo-realismo, o preto e branco ou toda uma movimentação de câmara aleatória para caucionarem a sua ligação à realidade das coisas, caindo assim nas aparências, no decorativismo e na falsidade; a CD, da circulação subterrânea da morte e do caos através da legislação e da burocracia terrena, ao romantismo pleno e terminal de dois rostos contra a criação, até à saída persistente para a luz com todas as promessas de dignidade, bastou colher e ligar toda uma experiência vivida e acreditar na força das palavras e dos olhares que vêm de dentro, da verdade primitiva que não se define.
2. Todos estão vivos, e se realmente há um morto-vivo, poderá ser o soldado no elevador, espectro que Ventura aceita, desfaz e adormece de acordo com as suas capacidades, da fúria à paixão; figura recordatória velha como a existência e a memória, é assim forjada pela simples e revolucionária capacidade do cinema em convocar e aglutinar o corrente com o extraordinário no mesmo plano. Ventura a arrastar o telefone na fábrica abandonada ou os seus telefonemas possuem a mesma pulsão visceral do elevador ou das visões surrealistas porque deslocadas (os abismos desta terra) da sua perdição pelas florestas.
1. “Cavalo Dinheiro” é um trabalho realista. Toda a fantasmagoria, assombração, obscuridade ou os trabalhos delicados da memória são filmados de forma directa, frontal, sem qualquer tipo de filtro ou exotismo que não aquele que o corpo, o lugar, a causa e logo a narrativa inerente permite emanar. Muitos filmes recentes, das mais diversas proveniências, têm usado o neo-realismo, o preto e branco ou toda uma movimentação de câmara aleatória para caucionarem a sua ligação à realidade das coisas, caindo assim nas aparências, no decorativismo e na falsidade; a CD, da circulação subterrânea da morte e do caos através da legislação e da burocracia terrena, ao romantismo pleno e terminal de dois rostos contra a criação, até à saída persistente para a luz com todas as promessas de dignidade, bastou colher e ligar toda uma experiência vivida e acreditar na força das palavras e dos olhares que vêm de dentro, da verdade primitiva que não se define.
2. Todos estão vivos, e se realmente há um morto-vivo, poderá ser o soldado no elevador, espectro que Ventura aceita, desfaz e adormece de acordo com as suas capacidades, da fúria à paixão; figura recordatória velha como a existência e a memória, é assim forjada pela simples e revolucionária capacidade do cinema em convocar e aglutinar o corrente com o extraordinário no mesmo plano. Ventura a arrastar o telefone na fábrica abandonada ou os seus telefonemas possuem a mesma pulsão visceral do elevador ou das visões surrealistas porque deslocadas (os abismos desta terra) da sua perdição pelas florestas.
3. Das fotografias de Jacob Riis ao Alto Cutelo dos Tubarões,
dos retractos comuns às melodias e aos ritmos da progressão e do relicário,
nada de teórico ou ensaístico para aluno se aplicar, propaganda ou reclame para
vender, tudo de presença e amor, essência de qualquer compromisso que importa. Junto
a Griffith e a António Reis, como de Robert Frank a Charles Burnett, de Rubens
ao último poeta sangrado que há-de resistir na derradeira sargeta (poesia, a
outra grande indefinição), incontáveis empenhados, incontáveis anónimos e o
fundamental: tudo importa, cada coisa ou cada ser ou cada obra de arte, assim
se revele o tesouro de cada qual, único e insubstituível. (*)
*Para efeitos comprovativos, Pedro Costa acaba de incluir na
programação de Janeiro de 2015 da Cinemateca - Portuguesa o último filme de Matt
Reeves: “Dawn of the Planet of the Apes”, 2014, USA