"testemunho do que vai durar contra o que parece que está para durar".
J.B.C
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
Dans votre mise en scène, vous cultivez aussi l'aléatoire et l'accidentel ?
La dimension documentaire des films m'intéresse beaucoup. J'aime bien saisir des choses qui viennent de la réalité à l'intérieur d'un plan. Mais il n'y a aucune prétention à vouloir montrer de "l'arraché" à la réalité. Dans le recueil de mes chroniques des Cahiers, Poétique des auteurs (Cahiers du cinéma, 1988), il y a un article que j'ai intitulé Le Papillon de Griffith, à propos du Rayon vert de Rohmer. C'est un cinéma dans lequel le passage d'un papillon dans un plan appartient à la nature du plan et renforce l'impression de réalité. Beaucoup de cinéastes attendraient que le papillon passe pour faire jouer les acteurs, parce qu'ils considèrent que le papillon distrairait le spectateur de l'action dramatique. Alors que chez Rohmer, tout demande que le plan soit habité par les choses de la réalité. Chez Resnais, Sternberg ou Visconti, un papillon ne peut pas passer. Chez Kubrick non plus, interdit de papillon ! Chez les Straub, Ford, Walsh, Naruse ou Rivette, le papillon peut passer. Le papillon ne peut passer que chez les cinéastes où il y a de la contemplation du monde.
JEAN-CLAUDE BIETTE
La dimension documentaire des films m'intéresse beaucoup. J'aime bien saisir des choses qui viennent de la réalité à l'intérieur d'un plan. Mais il n'y a aucune prétention à vouloir montrer de "l'arraché" à la réalité. Dans le recueil de mes chroniques des Cahiers, Poétique des auteurs (Cahiers du cinéma, 1988), il y a un article que j'ai intitulé Le Papillon de Griffith, à propos du Rayon vert de Rohmer. C'est un cinéma dans lequel le passage d'un papillon dans un plan appartient à la nature du plan et renforce l'impression de réalité. Beaucoup de cinéastes attendraient que le papillon passe pour faire jouer les acteurs, parce qu'ils considèrent que le papillon distrairait le spectateur de l'action dramatique. Alors que chez Rohmer, tout demande que le plan soit habité par les choses de la réalité. Chez Resnais, Sternberg ou Visconti, un papillon ne peut pas passer. Chez Kubrick non plus, interdit de papillon ! Chez les Straub, Ford, Walsh, Naruse ou Rivette, le papillon peut passer. Le papillon ne peut passer que chez les cinéastes où il y a de la contemplation du monde.
JEAN-CLAUDE BIETTE
Castelos em penumbra tortos às vezes oblíquos e tão assustadores como os trovões que vezes sem conta o violam à descarada. Chuva ou as luas que lhe espreitam nas negríssimas noites. Animais que pelas pedras ou vegetações circundantes de soslaio espiam. Também por lá crianças de modos assaz assustadores. Serventes deformadas. Espelhos que afeiam corpos e linhas e vidas e pianos que sozinhos tocam. Maldições seculares segredos sagrados. Poderia estar a referir-me a filmes de Ulmer ou de Wise ou até mesmo daqueles italianos sanguinários que não só Argento. Poderia estar a pensar em contos de Lovecraft. Ou nas retorcidas pinceladas góticas. Portanto muito pouco surpreendido quando no genérico aparece o nome de Joseph L. Mankiewicz, que de “The Ghost and Mrs. Muir” passando pela “Cleópatra” ou esse estranhíssimo western “There Was a Crooked Man...” sempre espicaçou qualquer expectativa. Nesta que é a sua segunda obra o tom e o foco vai do encantatório ao demencial, do conto de fadas até ao pesadelo. A Gene Tierney que aqui vive Miranda Wells é uma jovem sonhadora e imaculada, severamente educada pelo amor a Deus e ao bem. É filha de camponeses e pelo campo viveu até se fazer mulher de corpo inteiro. Simples mas ansiosa por um inesperado ou um cavaleiro que dali a resgate. E uma carta chega que é a carta da perdição. Um dito parente distante que naquela terra já todos se esqueceram ou nunca se lembraram convida-a para o castelo das suas fantasias infantis para ajudar a tomar conta de uma filha pequena. O Pai que comanda uma família Fordiana abre a bíblia e sai-lhe uma passagem de Abraão que parece augurar boas perspectivas. Logo todos se encontram na sempre grande Nova Iorque e o apelidado parente é nada menos do que Vicent Price. Já se está a ver, aos olhos esfíngicos de Tierney opõe-se o semblante impenetrável e a postura hierática e vampírica do Price das casas de cera e de usher. E por encantos tamanhos e convicções de ferro lá a arranca ao Pai. “Dragonwyck” é uma peça de ambiências soturnas escorregadias húmidas enleadas a um manso barroquismo arquitectónico mas carregado de profusões simbólicas barroquismo formal nos seus claros-escuros e composições desviantes.
Perversa e fascinante é a complexidade e a evolução de Price. Da simplicidade e simpatia inicial para os laivos e certezas totalitárias com que verga os que nas suas terras trabalham e se senta em imponentes tronos, do respeito pelos valores sagrados daquela família até à ausência total de crenças e ao niilismo desesperante ou do romantismo que cedo dedica a Tierney – “o vento deve desfrutar muito quando toca a tua cara bela” – para no fim contaminar e semear o seu lado mais lúbrico e cruel e prepotente – “gosto de ficar nos cimos para ver as montanhas, as nuvens, o infinito…para ver de cima”. Só que quem tudo quer, das terras às ambições desmedidas aos servos ou a Tierney ou ao impossível filho acaba por se perder e num rol de delírios – assassina a mulher que é apenas um fantoche de aparências, planeia destinos idênticos para quem lhe resiste, isola-se para tudo de cima controlar – chega à loucura prometida. Tierney permaneceu sempre miúda e no berço embora encontro implacável ao deslumbramento dela a estética referida e desditosos acontecimentos, talvez sim talvez não merecidos. Mas o filme é do lado dela bem como a sorte. Pelos olhos dela então pelo seu estado mental. Não renegou origens e solicitou para si o campo e as crenças e o regresso final depois das tempestades, mesmo que isso lhe tenha custado a integração oficial dos falsos. No termo o castelo e as maldições fecham-se e um raio de esperança e de paixão surge candidamente naquelas alvoradas mais luzentes que pretas. Assim como a candura imensa deste filme tão simples e tão aventureiro nos seus significados e promessas e riscos que recupera e acredita no cinema como esse paraíso quimera perdida de humanos e monstros e luzes e sombras e todo o fascínio de uma arte que assim olhada parece sempre nascente. Vai-se um bocadinho a estes mundos e as estas feeries e volta-se…o cinema. Mank sabia destas coisas e seguir o seu percurso será sempre fascinante.
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
“Liebelei” é de 1933 e foi realizado por um cineasta alemão, Max Ophüls. “Strangers When We Meet” já data de 1960 e tem a assinatura de um esquecidíssimo americano de seu nome Richard Quine. Ophüls tem as suas merecidíssimas páginas na história do cinema oficial ou não e o seu monumento final, “Lola Montes”, é o ponto culminante de uma mestria formal e sexual com escassos pares, um dos mais singulares cineastas da mulher e do lírico e das desmesuradas paixões que tudo quebram. De Quine conheço bem menos mas valeria a citada obra para nada dever aos maiores dos maiores, ainda que eu garanta que o vale a pena descobrir em objectos bem diferentes. Pode-se defender que ambos nada têm em comum bem como estes dois filmes se diferenciam como água e vinho. Ou então poder-se-ia evocar o santo nome do melodrama em vão e meter-lhes a mesma etiqueta. Mas não vou nessa e para o “Liebelei” poderia dizer como João Bénard da Costa que tão absurdas mortes finais porque tão absurdas razões e na surdina e emoção pura com que tudo isso é mostrado retira qualquer vontade de assim o considerar. “Strangers When We Meet” já é caso mas bicudo, filmado à largura e com as cores matriciais ou Sirkianas de tão famoso e cultivado género por essas alturas, tudo parece estar dentro dessas normas e desses códigos, o patético inclusive. Fico-me por agora mais neste filme porque a coisa é mais ambígua do que parece. A situação é simples e antiga, um arquitecto de sucesso num dos seus pontos mais altos da carreira, casado e com filhos, é apanhado por uma loira também casada que todas as manhãs leva a sua criança à escola. Conhecem-se nesse ritual e tudo o que se seguirá terá o condão de naquela sociedade despertar escândalo. Kirk Douglas, o arquitecto. Kim Novak, a loira. E se Kirk é tecido a obsessão e persistência e laivos de loucura, no trabalho e no amor, Novak, luxuriante e de presença que tudo à volta engole está paradoxalmente ou não ainda envolta em aura funesta e libidinosamente fantomática da Madeleine/Judy que em “Vertigo” tudo aniquilou, dois anos antes. Lá para o meio ou coisa assim existe um momento particularmente enigmático e obscuro quando numa das vezes em que Kirk encontra supostamente Novak sem querer, ao chamar por ela –Maggie, diminutivo que só o pai algum dia lhe ousou chamar – esta pergunta-lhe a quem ele chama e quais as razões ou audácia, mas isto com uma certeza e igualmente estranheza que nós e Kirk ficámos por momentos sem saber onde é o chão e onde é o tecto. Essa loira jamais foi pálida como ali, severa como ali, assustadora como ali. Ou como contar os instantes que antecedem e concretizam o primeiro beijo que instala o arrojo, nada menos do que assombroso: ele chega-se a ela e vai-a amarrando, ela diz que não que não faça isso, ele faz, ele vai beijá-la a qualquer momento e o impulso é irreprimível, ela diz-lhe insistentemente para a não beijar, ele beija-a contundentemente. Ela a realizar ou ela tramar? A mesma coisa? E depois pelas praias tórridas, pelas pedras e pelo mar, pela casa que eles constroem mais para os dois e para os seus sonhos e desejos do que para o escritor fanfarrão, os encontros enublados em sítios enublados ou os desaparecimentos dela e as dúvidas volvidas certezas e certezas volvidas dúvidas, a noção de que tudo aquilo não existe e é tão fruto da imaginação e vontade de escape e perigo do arquitecto tal como o foi para o James Stewart no Hitchcock citado, é para mim deveras atordoante. No final, depois dos problemas com os respectivos pares, muito mais ele do que ela, e de eternas fugas imaginadas, dizem adeus um ao outro na dita casa das montanhas. Um adeus para sempre que ninguém acredita numa casa hiper-irreal que parece flutuar nas suas cores em arco-íris veladas. Estamos num céu que para eles será a partir daí como inferno ou apenas nos estoura na cara um mundo para lá deste em que aqueles encontros abismais afinal sempre ou nunca se deram?
Pode ser que uma fantasma o tenha transformado em outro fantasma para o resto da vida, pode ser que não. Sem resposta. Tudo tão carnal e ao mesmo tempo de tão fina ilusão, eis o mistério e o triunfo da obra que a todos os instantes extravasa os pressupostos melodramáticos e já é outra coisa de que não disponho nome.
Volto a “Liebelei” e a uma história só aparentemente bem menos fora do mundo e bem menos flutuante – mesmo que uma das mais belas cenas do cinema se passe na neve e num pequeno cosmos de pura magia – do que a de Quine. Na Viena dos inícios do século vinte somos imediatamente introduzidos a um universo operático que orquestrará a tragédia e a gravidade de um tenente que possui às escondidas uma baronesa comprometida com um seu superior e tais consequentes inesperados. Esse tenente, de nome Fritz, conhece numa noite também ela nublada e carregada uma jovem aspirante a cantora e perde-se irremediavelmente de amores. Vai a correr acabar com a baronesa mas o barão ou seu general conclui as suas suspeitas e faz um ultimato fatal a Fritz. Naquele tempo e naquele contexto a honra era coisa absurdamente posta acima do amor e o duelo entre os dois homens é inevitável. Pertence ao barão o primeiro tiro e já não se vai escutar o segundo porque em of e lá longe no contra-campo um amor que tudo prometia é assim espezinhado. A jovem inocente de nome Christine nem em devaneios ou nos seus piores pesadelos poderia tal coisa supor e depois de uma audição que lhe correu às mil maravilhas só quer é beijar e abraçar o seu amado. Procura-o em todo o lado mas quem encontra são os portadores de tão pavorosa noticia. Ophüls cola a câmara à jovenzita e detêm-na a perscrutar o imperscrutável, a adivinhar e a repudiar e ainda a acreditar que tudo não passa de algo transcendente que se vai desvanecer. Terror do presente total e aleatórias distensões. Homilia e estilhaçamento. Mas o ambiente e as certezas adensam-se e adensam-se. Levanta-se e começa a descer umas escadas, e sabemos como este cineasta sabe filmar escadas. Abre uma janela e o plano seguinte já nos mostra uma multidão num passeio em volta de um corpo terminado. Antes um salto até ao desconhecido do que a puta da loucura. À memória inapagável, o risco sem limites. Seco, inaceitável, triste sequência de sabor para lá do amargo. O plano final é o de um cemitério gelado que enegrece precisamente a citada sequência do trenó na neve e que assim pode funcionar como união dessas condenadas almas. A imaculada e o honrado. Ó eternidade gritada um dia.
“Strangers When We Meet” e “Liebelei” têm progressões, movimentos, atmosferas e diálogos para lá do real ou do natural, instaladas campo do irreal. Se os amantes do primeiro parecem ter planado acima da terra para no fim do filme, que não o fim da história deles, dizerem que basta de tanta transgressão e preferirem uma suposta “normalidade”, já não sei a dimensão em que tudo aquilo afinal ficou e o que em cada um deles irremediavelmente transformou e o que se adivinha dali é adivinhavél, naquela paz ninguém acredita e se calhar aquela casa e aqueles altos querem dizer mais qualquer coisa. Já o tenente e a pura parecem ficar unidos no final mas já noutro reino, o dos mortos. Ela tão ainda desarmada percebe ou acredita que naquela vida já não vai ter hipóteses e a ele prefere juntar-se. Naquele momento paroxistico, acreditou-se que para lá da castradora realidade o amor ainda seria possível e um abismo abriu-se.
É provável que só para uns ou só para mim esta leitura faça o mínimo sentido e não delírio qualquer, mas no presumível hiato entre as duas artes, temperaturas e sufocos concordantes. Arte da crença. Quine, a fantasia carnívora e ideada para lá de todos os credos. Ophüls, o amor dos tão jovens que não se conformam na terra. Romanesco enviesado, fendido, carregado. Ambos em certo momento, a arrepio.
domingo, 11 de dezembro de 2011
Cela s'appelle l'aurore
Um dos mais belos filmes de Buñuel, certamente dos mais comoventes, ultra misterioso. Beleza que transborda serena dos encantos daquela terra e de uns homens bons que fazem esquecer o terror da escória. Comovente pelos rostos que exprimem tão nobres e genuínos sentimentos e pelo que no interior se adivinha escaldante, pelas certezas absolutas e pelas torturantes duvidas e contradições. Misterioso ao nível dos surrealistas pois o que ali se sente jamais se ousa gritar ou ostensivamente figurar, tão secreto, tão em filigrana. Doce e trágico a um tempo, de travo indefinível.
E é o filme do espanhol que tem a moral – palavra perigosa e para usar à cautela, sem vacilar muito - mais bonita de todos os seus, não só em filmes penso mas em qualquer obra ou em qualquer conto. Moral da história, isto é.
Amor entre homens e pelas mulheres assim não tinha visto nunca, nestes limites. Vale a pena dar a vida pelo casal puro e desfeito às mãos dos mercenários do dinheiro. Vale a pena ficar com o homem que pela amada perdida brutalmente partiu para o tudo ou nada. E como vale a pena estar do lado do seu duplo ou irmão de coração e perceber que pela quimera encontrada quando porventura jamais esperada, se deve ir até ao fim do mundo. As trocas de olhares que tudo dizem no mais inviolável silêncio, apetece que o tempo aí pare. Que coisa pungente, que alturas e profundezas dos sentimentos aquele final que tudo isso condensa – o seu "outro eu" morto nos braços e o correr posterior para os braços da sua amada, agora sem duvidas. E depois a câmara sobe e eles vão à vida. Por coisas assim, tudo.
sábado, 10 de dezembro de 2011
Há dois fatores determinantes. Em primeiro lugar, a extrema pobreza intelectual da maior parte dos críticos-diretores, visto que todos leram os mesmos livros, vêem os mesmos filmes, partilham dos mesmos valores e, às vezes, até o mesmo vocabulário, e quase sempre o mesmo “método de análise”. Em outras palavras: uma vez que não há olhar crítico, não há uma crítica. O olhar crítico precisa de liberdade, deslocamento e alguma solidão. De experiências, e não somente de conhecimento. Observou Larrosa: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. (...) Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara”. O conhecimento não é necessariamente uma experiência. Você pode se deparar com algum conhecimento sem ser por ele afetado. Acreditamos que a experiência do homem se dá pela intensidade de sua relação com o objeto que lhe chama a atenção, que lhe fixa uma obsessão, um interesse que arde sem explicação ou contornos imediatos, num processo de assimilação e integração que implica uma ampliação de ângulo da realidade.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
"O riso é o canto dos anjos".
"A tree grows in Brooklyn" é o primeiro filme de Elia Kazan e pode logo ser o mais belo Kazan, tão magoado como "On the waterfront", tão propenso a brotar e a queimar de lirismo como "Wild River", enfim, tão emocionalmente e nostalgicamente violento como "Splendor in the Grass". Isto para ficarmos em três cumes. Pode ser tudo isto mas faltará sempre o que para Kazan ou Nick Ray ou Fuller era fundamental, um golpe de verdade que obliterasse os mundos e as pessoas captadas e que pusesse o foco em algo que soubéssemos perfeitamente físico e próximo. Visceralidade. Carne. Suor e o sangue que nos corre e escorre e nos faz agir. E as relações...e como são tocantes e ternas e duras nesta Brooklyn a arder de laços humanos.
Uma família e o bairro que as envolve, e tudo isto no mais dentro e no mais intimo que tal complexidade ostenta. Os Nolan, a família com que estaremos duas horas e se quisermos uma eternidade. Temos a mãe, o pai de vez em quando mas no fundo sempre, o filho e a filha que são pequenos mas tão velhos parecem. E mais.
Comecemos por Johnny Nolan, o bêbado e o sem rumo que talvez só o seja para, como se vai dizer, combater a sua falta de talento para ganhar dinheiro. Isso não sabe fazer, mas sabe amar com o coração e a cabeça e o corpo todo. Canta pelas ruas e quando entra em casa. A todos quer alegrar e ver bem. Cumprimenta um a um como se oferecesse sempre algo valioso. Andar a seu lado era como dar a mão a um rei, é o que reconhece a mulher após o turbilhão... Uma criança, portanto. De sorriso tão bonito, tão puro, tão ingénuo. Dos que não sabem jamais distinguir a irresponsabilidade dos dizeres do orgão que comanda a vida, mesmo que com heróicos esforços. Tão, tão inseguro. Tão, tão apaixonado.
Depois, a sua mulher que certa vez lhe vislumbrou esse brilho raro nos olhos que só alguns crentes e desesperados na terra possuem, mas que se assustou pela vida e suas responsabilidades e assim mesmo se esqueceu por tempo fatal. Viria uma redenção sem tempo, ficaria cravada uma marca certamente inapagável do valor das coisas que realmente importam. A entrega final a outro homem só noutra dimensão e distância se adivinha.
Ainda a filha que é anjo protector e consolador do Pai e do irmão também. Menina franzina e delicada que de tenra idade prefere Shakespeare às fábulas e lengalengas instituídas mas que mesmo assim gosta de finais felizes. Devora prateleiras de biblioteca na sua ordem alfabética. Quer ser escritora, fala com Deus e acaba feliz na incomensurável aventura da existência que o filme nos mostra. Frágil e de uma fé sem limites, de seu nome Francie.
Às vezes, em alguns lugares, olha-se lá para fora e tudo faz sentido.
E é sobre tudo isto e mais infinitas galáxias de vida – também não se esquece a tia Sissy que é gozada por amar homens sem conta; a professora que nota a verdade na mentira de Francie e lhe dá a tarte; o engate final do adolescente fã de basebol à mesma Francie; os seus olhares pelas janelas molhadas ou geladas; as idas transformadoras dos irmãos aos telhados, que tanto fazem lembrar o que se vai passar em "On the Waterfront", etc – nesta obsessão pelas pequenas grandes coisas, comportamentos, rostos, andares, famílias, que tão se nota o anacronismo em relação ao hoje, uma nobre tradição, algo que lamentavelmente nas telas contemporâneas pode passar por racionarismo ao "espectáculo do grande" ou igualmente às teorias bem pensantes de fim de curso, pois esses não percebem que o espectáculo e os segredos da vida e disto por onde passámos, sempre serão o essencial da arte. Chamem-me reaccionário, mil vezes.
Filme de anjos, de primeiras vezes e de superação, tal como a árvore selvagem que contra tudo e contra todos teima em crescer sempre, mesmo que vilipendiada. A mestria de Elia Kazan por 1945 é conservar a câmara como elemento altamente preciso e tremendamente sensual que compõe e harmoniza o espaço e a luz e os corpos, que se dispõe para as almas quaisquer que sejam, e já torcer e explodir tudo isso por dentro – o incontrolável que excede o cinema e os truques. Que afecta a invisibilidade da construção e a clareza clássica do recito. A sua modernidade ou o seu temperamento - o máximo de solidificação das formas e dos materiais e, pelo enquadramento adentro, tudo a poder pender para o mais negro ou para o abismo mais inescapável desses destinos. Tal como as imperturbáveis janelas da casa dos Nolan e a neve que se desfaz lá fora. Existem os que confundem os maneirismos vazios e aleatórios da movimentação exterior sobre a cena e só ai fazem coisas "bonitas" e sensoriais (ai os modernos de trazer por casa e os pós-modernos e os que experimentam nas superfícies) e depois aqueles que não desligam uma coisa da outra e onde um suspiro ínfimo lá dentro pode convocar a catástrofe. Aqui é a atenção a esses laços, afectos e dependências, bem como ao afunilamento da esperança, que faz nascer a posta em cena, num sensivél tomar de pulso e de temperaturas a cada singularidade. Superfícies de betão, homens que tremem, e tantas vezes vice-versa, fundamental. A justeza de tudo isso.
Elia Kazan, pulso de aço e interior convulso.
Elia Kazan, pulso de aço e interior convulso.
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
"para não me confundir com a mediocridade dominante"
Rogério Sganzerla, realizador de alguns dos melhores filmes do cinema brasileiro ("O Bandido da Luz Vermelha"/68 e "A Mulher de Todos"/69), pelo que deflagraram no processo cultural do País, ficou muitos anos afastados das câmeras ("para não me confundir com a mediocridade dominante")
segunda-feira, 14 de novembro de 2011
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
segunda-feira, 17 de outubro de 2011
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
Vi um filme calmo e incandescente. E por entre essas duas sensações, belo. Senti, entre quadros, ares e arrepios de frio. "Few of Us", como outros filmes de Sharunas Bartas, é uma experiência sensorial, física, mental. Poderia entrar em delírios, e entro, estamos perante um western? No princípio o vazio, comboios, planícies, espaço aberto e rasgado. Depois, uma mulher que vem de longe, não sabemos de onde, nem ela diz, ela e os outros nem falam – lembro-me de "O Homem sem Passado" de Aki Kaurismäki, o movimento é semelhante. Passado, toneladas de passado no lúgubre e taciturno semblante da quela mulher - Yekaterina Golubeva, uma das presenças mais indecifráveis que o cinema guardará memória. Naquele ambiente carregado, sombrio, despovoado, esfíngico, entre as deambulações e os descansos e estranhos bailados que irrompem, vão-se travar duelos, vão aparecer céus avermelhados e de horizonte mitológico como aqueles que sabemos, ela vai dar as costas a uma porta como em "The Searchers" e vai desvanecer-se de destino incerto. Mas poderá ser todo o contrário e Bartas vai recusando qualquer chave cinéfila pela frustração de expectativas, modos, desenlaces. Filme desgraçadamente perdido como as pobres almas que lá andam, que recusa a descoberta de teorias a cada momento, porque quando julgava a ausência de campos-contracampos, lá aparece um quase clássico. A coerência fílmica não existe tanto quanto aparenta e depois de um imenso plano geral, o seguinte pode ser um apertado. Entre o grande e o pequeno, uma fé no rosto que por vezes parece tocar a ordem do sagrado, quase da transcendência, na maneira como estes são filmados e postos em contacto com a desmesura da paisagem, um frente a frente, quase uma não distinção. O mesmo esmero, o mesmo encanto, o mesmo enfeitiçamento por parte de quem olha. Por baixo das caras estão os corpos e estes parecem estar, precisamente como o meio que os envolve, todos mortos, fantasmas de regresso a uma terra que já foi viva e que também parece já existir num qualquer pós apocalipse. Pós humanidade. Nada mexe, a carne está paralisada, o sangue estancou irreversivelmente, os olhares não tem direcção nem brilho. A suposta Sibéria é de cera, a terra, folhas, água, neve, as casas, tudo o resto, encontra-se ente a calcinação e o fóssil. Os animais e os velhos que a recortam também não respiram. Estátuas. O desejo por um corpo nu é frigido. Um tiro é disparado e alguém cai, não tenho certeza se se morre duas vezes. Todo monolítico, marmóreo, eterno. E assim um sopro que nada tem de desespero, sim de apaziguamento. As formas do cinema e o reconhecimento do homem e do mundo para lá de tudo. Porque tudo atrás pode estar errado e afinal estávamos no princípio. Antes do verbo e com uma emoção que não posso reproduzir. Mas emoção. E o sublime nos filmes de Bartas só se dá em plenitude porque tudo o que está nele é belo e dói, qualquer que seja o tempo e o estado.
...
Leos Carax sobre Bartas:
"Le cinéma de Sarunas Bartas a toujours existé, depuis que le monde est monde. Mais nous, où étions-nous passés ?
Le monde est triste, accablant. Les hommes se sabotent, errent et crèvent.
Mais le monde est beau parce qu'il survit, parce qu'il dure.
Oui, le monde est beau même là où rien ne pousse, pourvu que quelques-uns continuent de l'habiter et d'y semer, avec l'audace des désenchantés.
Pourvu qu'un homme et sa caméra soient là, qui le combattent et l'aiment, au-delà du raisonnable."
terça-feira, 11 de outubro de 2011
Ruiz tem esse olhar de inspiração clássica, mesmo que impregnado por algo que ele considera de extrema utilidade, o mau gosto! Ou seja, a vulgaridade, como sublinha. Recorda a de Fassbinder, Schroeter, ou a dos seus próprios filmes mais antigos: "Os meus filmes que estão mais perto do cinema experimental têm sempre elementps populares. O mau gosto é sempre imprescendivál no cinema. Tem de se ter uma atctitude de toureador."
Actual, Expresso
"Il fait de l`autodestruiction, pour filmer comme un cochon on ne peut pas fair mieux que lui. Dans "Nous ne vieillirons pas ensemble", on voit Yanne dans deux scènes qui sont les mêmes. Pialat a tourné les deux en pensant, je garderai la meilleure, et pour faire chier le monde il garde les deux qui sont absolument incompatibles puisque c`est la même action qui recommence. Dan "La Maison des bois", il le fait très souvent."
Jean Eustache
"Malina", Werner Schroeter, 1991
História simples na sua teia absolutamente complexa e oblíqua que só os espelhos finais e as refracções me fazem vacilar. A mulher, estonteante Isabelle Huppert, não sabe se existe. Parece preferir não existir. Procura espelhos para obliterar esse estado. Procura histerias ou absurdos diálogos. Põe-se em perigo. Lança-se ao primeiro abismo que a tenta. Cede aos mais fáceis delírios. Impulsos irreprimíveis. Desdobra-se. Reencarna personalidades outras. Amarra-se em labirintos mentais. Ao presente supostamente imediato submete-se a regressos e avanços. Máquinas do tempo. Fugas e voltas na sua realidade. Tempo suspenso. Só o instante. Uma mulher? Quantas mulheres? Nesse estado, suores frios e infernais. Vómitos. Desmaios. Tonturas. Desfasamentos Demências inexplicáveis. Visões alteradas, duplas, triplas. Imaginação fértil. Desejos vertidos e revertidos. Fronteiras fastasma. Cigarros catarse. Cigarros testemunha. Bofetadas estridentes. Hemorragias a vermelho carregado. Sacrificios. Mutilações interiores. Mutilações exteriores. Ligaduras. Queimaduras. Peles que arrepiam. Entregas ao outro e impossibilidade. Vertigens. Espirais. Loucas profecias. Diabo no corpo e na alma. Anjo ternurento. Dentro do mundo e fora do mundo.
"Com a minha mão queimada eu escrevo sobre a natureza do fogo." Flaubert, Huppert, Schroeter
Gosto cada vez mais de cineastas porcos. Badalhocos. Que filmem dessa forma. Que captem som dessa forma. Que montem dessa forma. Que modelem a luz dessa forma. Que enquadrem dessa forma. Que façam os actores atravessarem o enquadramento dessa forma. Que cheire mal. Que façam os profissionais da técnica, os professores e todo o género de académicos dizerem que assim é de amador. Que não respeitam os padrões mínimos e seguros de qualidade. Que está uma grande merda. Que haviam de ir para a escola de cinema. Gosto que Schroeter filme à porco. O Fassbinder. Ruiz. Argento. Eustache. Pialat. Carax. Stroheim. Ferrara. Bava. Fulci. Candeias. Todos os restantes irmãos. Proscritos. Dissidentes. Vencidos. Atenção, não falo de porcos como Lars Von Trier ou Desplechin. Nada a ver com o moralmente ofensivo. Prossigo. Contra a higienização imagem/som. Desmascaramento dos supostos radicais de pós-produção.
Equilibristas doentios. Heróis. Contra todos.
Que tudo estilhaçam, mas que tudo fazem vibrar de inauditas visões.
Ao lado do que filma. Justiça poética.
O princípio de "La ville des pirates", o cigarro colado à lente, o plano subjectivo de dentro da boca sobre a dentadura. Assim sucessivamente. Fassbinder e o vulcão essa sede de vulgaridade e melodrama e corpos e tudo. Carax e as danças bélicas e de sexo. Pialat e a câmara que arrasta pelo cenário milhões de quilos de violência. Schroeter, fiquemo-nos no sumptuoso e suicidário "Malina". Filmar com a mão queimada a natureza do fogo. Filmar temperaturas imedíveis. Do além qualquer. Impregnar e perturbar de símbolos e de barroquismos aterradores. Rosas. Velas. Caveiras. Chamas atrás de chamas. Sangue. Sagrado e ultra profano. Distorções ópticas. Escalas devoradoras. Embates fatais. Vermelhos. Amarelos. Azuis. Verdes. Cinzas. Negro. Buracos. Cores quentes. Cores Frias. Tudo misturado. Contra luz que define e extingue. Sons que se atraem. Repelem. Combatem. Confinam. Dilatam. Explodem magnificamente. Libertações operáticas. Trivialidades. Espectros na penumbra. Cadáveres expostos. Vice-versa. Bonecos de fios cortados. Movimentos sedutores e harmónicos. Luxúria. Lasciva. Sexo bruto. Carnalidade. Desejo. Rainhas e putas. Cinemas de bordel e passagem para o outro lado. Bailarinas e pequenos teatros. Crianças ameaçadoras. Na profundidade de campo e a embarrar na câmara. Fendas nos tectos. Escadas cortantes. Quedas eminentes. Céus e horizontes bizarramente pintados. Escalas de planos sem vocabulário. Movimentações de câmara como as deambulações sem rumo. Montagem risco. Essa plasticidade artesanal. Citando Eustache novamente: manifesto pessoal, manifesto individual. O filme é para ele. Tudo faz sentido.
E talvez por isto, pelo amor e pela guerra, "Malina" é sumptuoso e um furioso golpe de revolta.
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
"Nós sempre fazemos o que consideram impossível.
Vamos continuar!"
Vales, colinas e montanhas...alguns precipícios à espreita...o céu como guia, oxigénio, luz ou infinitude que tapa e destapa. A terra nos pés...inevitabilidade. Chuvas, ventos, despojos de toda a ordem, mosquitos que dão sangue ao rosto...pântanos pegajosos de águas sedentas...fogos de supremos desejos de destruição...o homem atravessa tudo e faz-se herói...galga íngremes passagens e realiza caminhadas inauditas com pernas partidas, suores nunca vistos, balas cravadas na carne, óbvias alterações e espírito reinventado. Em "Northwest Passage" o pelotão do Major Rogers tem de ir de um ponto a outro e nesse desconhecido hiato escapar-se aos horrores dos índios e dos inimigos franceses da jovem América. Pequenas pesadas canoas montanha acima como depois no Herzog... esforços sobre-humanos..cordões de homens banhados que tentam suprimir a potência avassaladora dos rios que violam...remadas exaustivas...fome de morte...demências e alucinações...desesperos e uivos...canibalismos e consequentes suicídios..Está claro, há ganhos e perdas, laivos de ternura e actos medonhos. Gestos iniciáticos, regressos de milésimos à infância e recordações de uma mulher...mas também vergonha das vergonhas, racismos e traições, fúrias incontidas, chacinas e holocaustos. Sorrisos e transportes sobre os ombros mas também cara fechada de disparos sem remorsos.
Complexas e ambiguas relações quando se está perante o que deve ser o inferno – vai-se de uma extremidade à outra e já não se sabe a diferença.
O homem também pode desistir e desiste e os que ultrapassam limites.
King Vidor vai ao todo e jamais separa os homens do meio que o envolve, o acaricia, o salva ou o come. O mais ténue suspiro ou um pelotão incontável faz sempre eco singular nas paredes do universo e é preciso sabê-lo, é preciso amarrá-lo. Um todo imenso e o incomensurável fogueiro de dependências, sentimentos, relações mutuas. De modo uno, Vidor jamais construiria e não constrói um único plano vazio, na imensidão deste cosmos que é a terra sempre lá nós presentes. Nem um plano de enfeito ou contemplação, mesmo as casas estão cheias de gente e criação, mesmo os escalpes nas árvores espetados são rastros não só físicos mas de ódio e de violência. Comunhão, aliança, organismo camaleónico - fontes de querelas. Com tamanha condensação, pressão, falta de ar no aparentemente aberto e logo a inteligência dialéctica de que temos o mundo todo e assim a eternidade e a beleza de cada coisa...plano a plano, som a som, movimento a movimento De uma só vez une-se a força humana, a força da natureza e a força da câmara de Vidor, sem separação. Maior elogio às forças telúricas e às forças do cinema é impossível.
Filme em plano sequência, não se corta como o olhar firme não dispersa. Não só de cinema é isto.
Oposto da contradição é que "Northwest Passage" é pois a mais contemplativa das obras e as metáforas enunciadas existem materialmente em cada aparição. Do mínimo que abana ao tremor irreparável tudo é centro ou segredo elíptico.
domingo, 9 de outubro de 2011
"Sangue do meu Sangue" é o pior filme de João Canijo em anos, depois da bruteza de "Mal Nascida", o seu melhor filme. As diferenças são óbvias, porque à câmara que naquele era intransigente e se colava às paredes, aos rostos e à fúria em latência e ebulição dos seus personagens rumo ao paroxismo e à catarse, aqui já é puro virtuosismo, declaração de talento, criatividade. Desapareceu a rugosidade e o visco, impossível não notar a suavidade aqui presente, mal-grado as tangentes dos grandes planos. O que é triste é que Canijo prefere pôr em relevo a sua técnica e mil ideias por plano em vez da habitual uma ou duas que sufocava - os foques e desfoques, o trabalho das lentes e dos zooms e dos carris, em suma, o plano sequência que atrofia o espaço – do que nos mostrar e nos deixar ficar verdadeiramente com os magníficos actores, pelo qual o filme, apesar de tudo, vale. Ou seja: não temos propriamente um gesto singular nem actos de generosidade, longe muito longe disso - como dizem os mais excitados críticos - sim um testemunho ou lição de gosto de como o cineasta conhece e trata por tu diversas geografias e modos de fazer como Hsiao-hsien Hou, Brillante Mendoza, Assayas, os cineastas de bairro e do of, Cassavetes, Leight...À preciosa distância desses anteriores filmes, uma inconsequente fascinação pelas superfícies, que podem ser passar por um corpo sem lhe sentir o pulso ou maravilhar-se com os brilhos e as transparências de certos materiais.
Portanto as nojentas cenas de sexo e de violação são apenas o culminar lógico do rolo compressor de uma mise en scène que engole tudo nos seus riquíssimos e sofisticadíssimos meios. Tanto barulho, como as supostas "cenas inovadoras de slogan" dos enquadramentos com mais do que uma cena a passar-se, para um pobre conclusão: tenta-se imitar e viver e captar a vida dos simples e o ego do artista passa por cima sem dó nem piedade. Faz falta a pobreza dos cineastas pobres sem vícios do social e da imitação. Fica a boca aberta da obstinação, como na publicidade que ainda outro dia passava na televisão ou antes da grande tela abrir.
Portanto as nojentas cenas de sexo e de violação são apenas o culminar lógico do rolo compressor de uma mise en scène que engole tudo nos seus riquíssimos e sofisticadíssimos meios. Tanto barulho, como as supostas "cenas inovadoras de slogan" dos enquadramentos com mais do que uma cena a passar-se, para um pobre conclusão: tenta-se imitar e viver e captar a vida dos simples e o ego do artista passa por cima sem dó nem piedade. Faz falta a pobreza dos cineastas pobres sem vícios do social e da imitação. Fica a boca aberta da obstinação, como na publicidade que ainda outro dia passava na televisão ou antes da grande tela abrir.
quarta-feira, 21 de setembro de 2011
Homenagem - Leos Carax
Leos Carax é um cineasta nato. Um realizador de talento incomparável, capaz de arriscar tudo para alcançar os seus objectivos artísticos.
As quatro longas-metragens que realizou desde a sua estreia são obras exemplares, que demonstram sem ambiguidades uma personalidade cinematográfica singular. Um visão plena de sentido poético e que alimenta complexas e atormentadas representações do amor.
Com apenas 24 anos realizou “Boy Meets Girl”, inesquecível longa-metragem de estreia, premiada no Festival de Cannes. Dois anos depois, “Má Raça”, que reuniu pela primeira vez o par Juliette Binoche e Denis Lavant, garantiu a Leos Carax o Prémio Louis Delluc.
O seu filme seguinte, “Os Amantes da Ponte Nova” (1991), acabou por definir o seu percurso posterior de forma dramática. Assombrado por uma rodagem problemática, e por uma carreira comercial desapontante, o filme afastou Leos Carax das longas-metragens durante 8 anos.
O sombrio e polémico “Pola X”, que Carax apresentou no Festival de Cannes de 1999, marcou o regresso ao abrasivo universo do cineasta francês, num filme protagonizado por Guillaume Depardieu e Catherine Deneuve.
Mais de dez anos depois, o realizador não voltou a assinar nenhuma longa-metragem, tendo apenas dirigido o segmento “Merde” no filme “Tóquio!”, em colaboração com Michel Gondry e Joon-Ho Bong.
Uma ausência decerto difícil para quem já afirmou: “quando tenho uma câmara sei que estou no meu país, na minha ilha”.
Leos Carax é um cineasta nato. Um realizador de talento incomparável, capaz de arriscar tudo para alcançar os seus objectivos artísticos.
As quatro longas-metragens que realizou desde a sua estreia são obras exemplares, que demonstram sem ambiguidades uma personalidade cinematográfica singular. Um visão plena de sentido poético e que alimenta complexas e atormentadas representações do amor.
Com apenas 24 anos realizou “Boy Meets Girl”, inesquecível longa-metragem de estreia, premiada no Festival de Cannes. Dois anos depois, “Má Raça”, que reuniu pela primeira vez o par Juliette Binoche e Denis Lavant, garantiu a Leos Carax o Prémio Louis Delluc.
O seu filme seguinte, “Os Amantes da Ponte Nova” (1991), acabou por definir o seu percurso posterior de forma dramática. Assombrado por uma rodagem problemática, e por uma carreira comercial desapontante, o filme afastou Leos Carax das longas-metragens durante 8 anos.
O sombrio e polémico “Pola X”, que Carax apresentou no Festival de Cannes de 1999, marcou o regresso ao abrasivo universo do cineasta francês, num filme protagonizado por Guillaume Depardieu e Catherine Deneuve.
Mais de dez anos depois, o realizador não voltou a assinar nenhuma longa-metragem, tendo apenas dirigido o segmento “Merde” no filme “Tóquio!”, em colaboração com Michel Gondry e Joon-Ho Bong.
Uma ausência decerto difícil para quem já afirmou: “quando tenho uma câmara sei que estou no meu país, na minha ilha”.
segunda-feira, 19 de setembro de 2011
FIZESTE BEM EM PARTIR,
ARTHUR RIMBAUD!
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Teus
dezoito anos refratários à amizade, à malevolência, à
bobeira dos poetas de Paris,
assim como ao zunzum de abelha estéril de tua
família ardenesa um pouco doída, fizeste bem
espalhá-los aos quatro ventos, em jogá-los sob a
lâmina de sua guilhotina precoce. Tiveste razão
em abandonar o bulevar dos preguiçosos, os
botequins, os mija-liras, pelo inferno das feras,
pelo comércio dos espertos e o bom-dia dos
simples.
Este impulso absurdo do corpo e da alma, esta
bala de canhão que explode seu alvo, sim, é isso
mesmo a vida de um homem! Não se pode,
indefinidamente, saindo da infância, estrangular
seu próximo. Se os vulcões mudam pouco de
lugar, sua lava percorre o grande vazio do mundo
levando virtudes que cantam em suas feridas.
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Ainda há
quem creia, sem provas, que contigo a felicidade
é possível.
René Char, "Fureur et Mystère"
ARTHUR RIMBAUD!
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Teus
dezoito anos refratários à amizade, à malevolência, à
bobeira dos poetas de Paris,
assim como ao zunzum de abelha estéril de tua
família ardenesa um pouco doída, fizeste bem
espalhá-los aos quatro ventos, em jogá-los sob a
lâmina de sua guilhotina precoce. Tiveste razão
em abandonar o bulevar dos preguiçosos, os
botequins, os mija-liras, pelo inferno das feras,
pelo comércio dos espertos e o bom-dia dos
simples.
Este impulso absurdo do corpo e da alma, esta
bala de canhão que explode seu alvo, sim, é isso
mesmo a vida de um homem! Não se pode,
indefinidamente, saindo da infância, estrangular
seu próximo. Se os vulcões mudam pouco de
lugar, sua lava percorre o grande vazio do mundo
levando virtudes que cantam em suas feridas.
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Ainda há
quem creia, sem provas, que contigo a felicidade
é possível.
René Char, "Fureur et Mystère"
domingo, 18 de setembro de 2011
"Wild Oranges", 1924
Um homem que por que razões desconhecidas perdeu a sua amada, se isolou e tornou azedo e desacreditado, se perdeu em altos mares e junto a eles encontrou sem logo saber e sem aviso prévio, a emancipação de uma via-sacra.
Um homem que por que razões desconhecidas perdeu a sua amada, se isolou e tornou azedo e desacreditado, se perdeu em altos mares e junto a eles encontrou sem logo saber e sem aviso prévio, a emancipação de uma via-sacra.
"Wild Oranjes" pertence à assombrada categoria das obras – terríveis. Como "Nosferatu" ou praticamente cada Murnau, como "Greed", como "Psicho" ou os "Mabuse". Ainda as trevas e a temeridade do Franju de "Judex" ou " Les yeux sans visage". Pouco depois Vidor entraria por tais caminhos com "The Crowd". A saber: a danação dos homens, nada menos. Como a imagem inclassificável dos olhos do cão sedento e raivoso que orquestra os acontecimentos e avança fulminante pela escuridão da noite cerrada a fim de devorar a criança-monstro que ensombra o nascimento do amor e a reabilitação que por ali se dá. Que devolve tal criatura ao inferno de onde se parece ter evadido. O resto, e que resto, são símbolos e premonições, corujas nos troncos e galinhas depenadas, animais híbridos e noites amaldiçoadas e densas e demoníacas, superstições e feitiços paralisantes, fantasmagoria catártica que aponta caminhos. Almas perdidas e almas no passado estagnadas que só saltando os abismos poderão atingir a paz. Jacques Tourneur passou por aqui para fazer depois o que fez.
"Life is so dreadfully in the dark. There are maps to guide us to strange places, but none for souls. John Woolfolk had entrustedhis soul to Millie"
Último intertítulo.
Grande peça de cinema de acção, grande peça de cinema de suspense. Inadjetivável todo dramático. Da chegada inicial de Frank Mayo à ilha, onde os pontos de vista se multiplicam e se revelam, passando pelo jogo do gato e do rato posterior até à grande pancadaria final – onde Capenter decerto foi buscar os socos e os pontapés de "They Live" – na qual se sentem o peso e a gravidade da carne e o impacto dos golpes desferidos, o desgaste do confronto, os suores e os vermelhos de raiva que ardem e a transpiração de tudo isso que vibra pelo quadro.
King vidor, inventor do "action film" como depois Ford assim elevou momentos em "The Prisoner of Shark Island" ou "Drums Along the Mohawk". Depois, cópias de cópias.
Imbatível suspense, insisto: os segredos e irradiações por detrás das portas, os planos apertados dos passos ou dos olhares e rostos, o pressentimento constante da ameaça, os ritmos e contra-ritmos, a flutuação e o desfocamento daquela realidade, o afunilamento e a urgência.
E é o génio da decupagem, da afinação e inteligência da montagem, da precisão lancinante das tomadas de vista e do mandar lixar todos os códigos ou convenções que ainda pouco tinham sido inventadas: Ser tão exacto como anárquico.
sábado, 17 de setembro de 2011
"Street Scene", 1931
- Muito tempo antes de Howard Hawks ter feito "Rio Bravo" ou de John Carpenter ou Johnnie To terem ido por caminhos análogos, já king Vidor dominava uma rua – ou se quisermos, um passeio – as entradas e as saídas e as janelas de um prédio e pouco mais do que circundava esse pequeno espaço de uma forma ditatorial.
- Muito tempo antes de Howard Hawks ter feito "Rio Bravo" ou de John Carpenter ou Johnnie To terem ido por caminhos análogos, já king Vidor dominava uma rua – ou se quisermos, um passeio – as entradas e as saídas e as janelas de um prédio e pouco mais do que circundava esse pequeno espaço de uma forma ditatorial.
- Naquele cenário mínimo, despojado e barroco, um cosmos de diferenças e disparidades, de credos, ideologias, vontades e letargias, excitações e hermetismos, ânsias de novos ares e de recomeços, tentações da fama, luxúrias e prazeres carnais recalcados e libertados à socapa, tudo adquirido como acto extraordinário ou quebrador ou coisa eterna. Vinganças terríveis e dádivas ternurentas.
- Também bem antes das altas temperaturas e das altas tensões da Nova Iorque de Spike Lee e dos seus seguidores, já a fornalha de Vidor carburava de uma efervescência e chama perto do desmaio. Antes das polifonias narrativas e de personagens de Robert Altman ou de Paul Thomas Anderson, ou das cacofonias de imagens/sons dos mesmos senhores, já aqui a desmultiplicação e os embates, as rotinas e acasos, bem como a subtileza e polimento formal e labiríntico era absurda de tão apurada.
- Teatro, sem dúvida, as lições e a admiração a Griffith, essa frontalidade e limpeza dos palcos que entram pela câmara adentro e da câmara que entra pelos palcos. Mas como Stroheim ou o mesmo Grifith, uma pulsão, um risco, uma ferocidade e uma violência na captação e apreensão do movimento das coisas físicas e das outras, assim como uma criação atmosférica palpável e sensorial que imprime na película e posterior percepção uma capacidade próxima dos medos e dos terrores que hoje em dia está completamente ausente dos interesses deste ofício. Terror da realidade em bruto e do aleatório da vida. ("Quando Stroheim mostra uma rua, a rua existe. Quando o personagem atravessa uma rua, é um terror, sente-se que é uma rua, o trânsito e o ser humano na rua" Jean-Marie Straub). Arrepiante e exemplificativo aquele plano em que um miúdo atravessa a rua de patins e um carro tem que se desviar à tabela. Sente-se o coração nas mãos como o que sabemos sentir da proximidade desse perigo que algum dia possamos ter vislumbrado. Ou seja: não só ilusão puramente cinematográfica, mas já outra coisa para além disso, que fere. Ou as angulações laterais das constantes idas e vindas das pessoas, bem como os picados e os contrapicados das conversas entre os passeios e as janelas – uma vitalidade e uma sensação de realismo dessa dramaturgia que é arte findada. Coisas destas, só no cinema.
- A transcendência e a suavidade de Borzage e a ameaça de Stroheim. Impronunciável combinação.
- A roda final das crianças em brincadeiras: a vida contínua como num Ozu e promete futuros episódios imprevisíveis.
VERSOS ÍNTIMOS
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Augusto dos Anjos
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Augusto dos Anjos
sexta-feira, 16 de setembro de 2011
Bird of Paradise, 1932
"Desde o genérico, que nos são dadas a dinâmica e a respiração de "Moonfleet". Surge uma onda num penhasco, enrola-se e depois desfaz-se contra as rochas, e dela apenas resta um turbilhão de espuma. No segundo, terceiro, quarto planos, etc, as ondas sucedem-se, sobrepõem-se, plenas de uma violência contida, por se desfazerem, enfim, com furor. Por que razões estes planos do mar e das ondas são os mais belos alguma vez filmados? Mistério inexplicável da arte, excepto se admitirmos que o olhar do poeta pode penetrar o mundo tão intensamente que torna magnífico tudo o que vê. A poesia reside na verdade e no conhecimento."
Jean Douchet, Cahiers du Cinema, Maio 1960
"O cinema tenta agarrar, no instante, os instantes da verdade. É assim que um filme se faz. O resto é só uma questão de olhar sobre a vida e as pessoas"
Nicholas Ray
Temos aqui a história mais clássica e mais simples, a de um homem que descobre o que há muito desejava ou não imaginava que existia, o ser feito mulher de corpo inteiro que vale uma vida. Depois é o incompreensível e o inaceitável e o absurdo das tradições e das crenças e do mal indissociável ao homem que vai orquestrar e precipitar a tragédia. Mas o que seria política no puro sentido ou exotismo de pacotilha para os medíocres é, com King Vidor, um apelo e um poema ao encontro do mais insondável e estarrecedor telurismo com a força aguda do amor. Sem separações nem cortes. Uno e orgânico.
Como "Tabu", como "The Hurricane", "Bird of Paradise" pode ser o filme mais belo do mundo, aquele em que todos os elementos fílmicos e da natureza surgem no cúmulo da pureza, cristalinos, feitos graça.
O modo como a máquina que filma se põe em perigo logo de início nas águas e o modo impassível como daí para a frente agarra e contempla os milagres da criação. O segredo disto não está no mundo em que Vidor se planta, ou não estará completamente, sim na forma como se vê esse mundo e como dele se extrai a poesia e se lhe reconhece e devolve o génio. Como se escolhe o ângulo onde a luz incide em esplendor como em mais nenhum dos ângulos bem como a distância de onde o magnânimo do que está defronte da lente surge no mais alto grau da sua imponência e beleza. Como os grandes pintores paisagísticos – verdadeiramente paisagísticos – ou como os grandes pintores da ardência e fogosidade, que para o caso é a mesma coisa, ou como Murnau (Cinema+Pintura / Cinema, Pintura), a questão está em apanhar e captar a vida inerente e interior de todas as coisas, de cada detalhe – um charco de água ou uma lagoa, a ponta de um ramo húmido ou uma lua cheia que se volve meia – e não a simples ilustração bilhete-postal ou moldura do que tão agradável à vista é. Como eles, os grandes, conseguem isso? Nunca saberei.
Se em "The Champ", imediatamente anterior, tudo reluzia mesmo no negrume, aqui temos o mal em abstracto e assustador e a constatação que tantas vezes só escondidos para a felicidade se encontrar.
E o sublime é atingido a cada momento sem a introdução de sinais ou de aparências perto da obscenidade ou do mau gosto, sem recorrências ou toques filosóficos, sublime como máximo de emoção.
Realismo físico? Estilização poética? Realismo poético? Podem-me dar mil razões que vou continuar a duvidar do que isto seja.
Momentos de arrebatamento:
- A chegada dos intrusos à ilha, a contraluz dos nativos em observação e a felicidade com que estes descobrem os brinquedos oferecidos.
- Joel McCrea a roubar Dolores del Rio (para sempre a índia de "The Fugitive" de John Ford) aos reis e aos prometidos, na escuridão total, seta que rasga a noite rio fora.
- Os bailados sedutores e carnais dos rituais da tribo e os bailados dos barcos. Ainda o outro bailado no fundo dos mares entre ele e ela, suprema elegância dos movimentos. Um dos topos do erotismo segundo Vidor.
- Já na ilha de todas as promessas, as subidas pelos rios e cataratas acima, onde se banham e provam da água, e o momento em que fazem projectos de construir casa e a chuva irrompe – mais uma vez, só a visão do poeta pode assim animar o que julgaríamos certo e outro patamar atingir. Uma coisa que é já outra coisa.
- A longa subida de McCrea aos cocos.
- Cataratas que brotam água que é esperma como esperma parece brotar dos cocos que eles devoram antes ou depois de se devorarem dentro de campo ou nas misteriosas elipses. Como em "Ruby Gentry", a vontade e o suor estão inundados nos corpos e o acto consumado surge metaforicamente, ou se quisermos literalmente, no meio envolvente e nos seus órgãos Tudo é ânsia.
- Os rios de lava já muito negros e espessos que o descobrem sozinho e subitamente impotente. Contraponto: a explosão vulcânica furiosa. Pendurado numa corda sobre o precipício em chamas, qual Tarzan, portentoso símbolo fálico.
- As subidas aos topos das montanhas e a imensidão à Friedrich, o pintor, que os engole.
- Os dois cravados na cruz da punição, e del Rio a agradecer-lhe por ele a ter ensinado a amar.
- As brincadeiras aquáticas de McCrea com a tartaruga de proporções fora do normal. Crianças entre monstros de soslaio.
- Um fala uma língua, o outro fala outra absolutamente diferente, e a invenção de uma nova língua que se canta e harmoniza e que assim só a eles pertence.
- Na caça aos peixes voadores ela puxa-lhe pelo barco, ele solta uns sons da guitarra, ela deita-o num trono de rosas e o resto é mais do que sabido...
- As sequências a dois na ilha-paraíso onde rigorosamente nada se passa, a não ser uma esfuziante alegria, pulos, cambalhotas, sorrisos, foguetes fogos-de-artifício, beijos e carinhos sem nome. Reflexos, brilhos, transparências. Ou seja, tudo se passa e essa é aquela narrativa, ou, como diriam os grandes "especialistas", a sua estrutura narrativa.
- Como em outros filmes de Vidor, o apagamento final, seco e silencioso de McCrea.
- O plano final: del Rio em sobreposição ao fogo e o vulcão que surge como contra campo, magnífico e significativo corte, genuina montagem – maldição e fatalidade.
A câmara como aparelho científica de alta precisão; a luz como matéria modulável; o imponderável que pode acontecer de alguma forma e perpassar uma qualquer vertigem; o olhar do artista como transcendência de tudo o resto.
quinta-feira, 15 de setembro de 2011
"The Champ", 1931
Expressão dos bons sentimentos.
- O miúdo tão miúdo a cuidar do pai bêbado que um dia foi campeão e que nos afectos contínua a ser o maior, durão lutador que se deixa derreter pelo olhar de uma criança como a manteiga ao sol se derrete. O miúdo que o veste, o despe, o calça e o cura do álcool seu pior inimigo. Corre a seu lado e não o larga por um segundo. "Champ", assim o trata o filho.
- O Pai bêbado cai, levanta-se, volta a cair, volta a levantar-se..mas ainda consegue concretizar o sonho do seu filho e oferecer-lhe a desejada quimera. "Little Champ", belo nome para belo cavalo.
- O momento doce em que a Mãe do miúdo o redescobre passados muitos anos e os momentos ainda mais doces e ternos em que esta e o seu companheiro percebem que só na morte pai e filho se separarão.
- A espera do miúdo antes da revelação da Mãe que nunca conheceu. Brincadeiras entre as grades e os telhados, uma imensa liberdade e inocência que só com esta idade sem idade e com este espírito e com esta atenção e generosidade de um cineasta são possíveis, fantasia plasmado numa tela. Aí, a descoberta de uma meia-irmã. Ela conta-lhe um conto de fadas e ele ensina-lhe a cuspir para bem longe e ambos se abraçam como se namorados fossem. Ele ainda não gosta de beijos, sussurra depois à Mãe, mas vai prometer à meia-irmã um passeio.
- O miúdo a fugir do comboio para em correrias e lágrimas se encontrar com o "champ" e ali um milagre como o de "The Citadel" ou como os de Capra acontecer. Não exagero.
- Cai, levanta-se e volta a cair mas de pé põe-se sempre, dizia eu...como o cavalo que passa de mãos em mãos mas que finalmente fica nas mãos do miúdo, uma que nem a principal dádiva e manifestação infinita do carinho daquele gigante, certeza final da raridade desse coração. Desculpas sempre aceites. Promessas cumpridas. Sorrisos oferecidos. Amor impossível.
- King Vidor, poeta da ternura, da força bruta das convicções, da fragilidade e da fisicalidade sem par. Temos Champ mas também temos Howard Roark, Mimi ou Dempsey Rae. Sem esquecer lados sombrios, Rosa Moline ou Chick. Tudo. Filma um conto e um lugar como que dentro do grande conto e do grande lugar, dentro mas isolado. Excepção e glória.
- Mundo aparte em que tal elevação, nobreza e crueza dos bons sentimentos e da emoção faz daquele mundo um mundo onde eu gostaria de viver. Esse mundo sem falsos pudores onde os homens não tem vergonha de chorar tanto ou mais do que as crianças e as mulheres também. Esse mundo onde as crianças são levadas a sério e onde correm como querem e se entreajudam. Paraíso eminentemente perdido.
quarta-feira, 14 de setembro de 2011
terça-feira, 13 de setembro de 2011
Em "Ruby Gentry" Jennifer Jones tem tudo a seus pés e tudo lhe vai ser negado. Pelas gentes que não lhe perdoam as origens e as géneses, tais virtudes ou tais defeitos. E por algo tão elevado, poderoso e incomensurável que a parece abafar e não lhe querer entregar a única coisa ou o único homem que interessa.
Jennifer irrompe pelas águas, nas águas acaba. Costas voltadas.
Depois... os céus carregadíssimos e estridentes e sombrios que a escurecem e enegrecem o olhar e o íntimo. Céus feitos abóbadas incandescentes.
As florestas em que a candura mágica e doce da infância já lá vão e lhes devolvem (a ela e a ele) os genes de terror e de susto inatos dos seus desenhos e sarrabiscos. Florestas interditas – como "Beyond the Forest ", filme que conserva movimento idêntico e luminosidade/seu negativo que me parecem semelhantes como dois irmãos podem ser.
As árvores grandes, pequenas, rectas, torcidas, deformadas, envergonhadas ou imponentes que a espetam na penumbra.
Pântanos e lamacentas extensões de terra inundada, símbolos da derrocada.
Pedras de toque e outras estendidas que são como que altares de sedução.
As casas ou a casa mãe acima de tudo que são fogueiros que derretem o sangue, sugam horizontes, abafam pulsões, estralhaçam a carne e o nervo e a mente.
As portas que raiam halos de luz cegante e os rostos velados.
Ervas que se adivinham venenosas.
O acinzentado por vezes preto ar circundante feito de volúpia, êxtase e fim.
Os luares dos desejos e logo das perdições.
A grande metrópole como um braseiro insuportável que ainda mais arde e abafa do que a minúscula e concentracionária terra original.
De rompante e sem aviso...a noite perfeita que terá valido a eternidade e que ao mesmo tempo libertou e condenou: ela e o amado; ela a gata selvagem que o quer devorar e que por ele devoraria o mundo inteiro, ele que pelo estúpido do orgulho não dá o passo seguinte e só os dá ao para trás. Naquela idílica e libidinosa praia em que as águas e as ondas representam a massa e o jorrar da fome de ambos, esses movimentos que vão e vêm. A aurora ou o crepúsculo, a consciência da brevidade. A velocidade e a trepidação do automóvel, o turbilhão e prazer interior e exterior – escape das farsas e finalmente catarses prometidas e merecidas. As escalas e proximidades da câmara como medidor das temperaturas, única testemunha.
As águas fulminantes e desejantes, tal lirismo como os líquidos que brotam imparáveis e em torrentes contra os homens potentes/impotentes de "Our Daily Bread".
Porque serão as águas a tudo engolir. A cena Mizoguchiana da morte do amado e a cena escrita nos ventos (sem pais nem filhos) que também tanto lhe sopraram da morte do marido de conveniência. O seu apagamento, a magreza, entrega ao flutuar final e eterno.
Final em correspondência e antítese, sussurro e desprezo com o anterior "Hallelujah". Outro modo de regresso a casa e estagnação. Sangue em água diluído, o que dá?
Águas, terras, ares, os céus e as suas nuvens, pedras e tudo o que mais existe de vegetal, mineral ou animal...porque o homem no meio disto, face ao fatal destino ou ao seu acaso ou a qualquer negação. O panteísmo e o seu peso, suas forças e atracções.
Movimentos caleidoscópicos que King Vidor ergue com a rectidão, a incorruptibilidade, a garra e o total da sua mise-en-scène e que assim tudo deixa para incendiar e abanar e entrar em confronto e em violência nos corpos e nas vozes e nas almas e na vida que rasga pelos planos, este mundo.
Costuma-se dizer toda a América – metáforas, espelhos, mosaicos - como se diz com John Ford ou Howard Hawks ("American Tryptych", Tag Gallagher). É toda a humanidade, história das pessoas. Cravação mística.
quinta-feira, 8 de setembro de 2011
quarta-feira, 7 de setembro de 2011
o cinema é Lillian Gish a vender os seus trapos por umas moedas, a parar para pensar e a ir ao pescoço e a vender mais um trapo mesmo que por mais frio, imensamente frio...
...é o escritor de peças teatrais já caído de amores por ela a desfazer-se de uma das pernas da sua cadeira para lhe dar fogo para o corpo e obviamente para a alma...
...são os amigos dele a trazerem-lhe comida e a fazerem a farra dos pobres, a perceberem que ele tombou de amores e a mandá-la buscar para ele.
Se calhar é preciso ter-se abandonado uma casa para se começar a puder entender qualquer coisa na tristeza infinita e infinitamente magoada dos olhos de gish com os sacos às costas...é preciso sentir uma qualquer pulsão que desfaz o efeito da ilusão ou da magia ou da hipnose e nos proporciona o arrepio na espinha da vida. cinema = vida, cinema ≠ vida.
é essa dança absolutamente louca, demencial, animalesca e livre igual à de binoche e lavant nos amantes da ponte nova...onde a câmara e os corpos nessa eterna bebedeira dos sentidos fodem e não olham para o lado.
são os olhares beijos e abraços e todos os mimos à beira rio...a luz a incendiar a película de desejo, o lirismo a queimar pelas águas ventos ervas a saia a esvoaçar...
...é o escritor já nos chãos fuzilado pela musa de inspiração.
é essa musa a esconder-lhe que foi despedido do trabalho indecente e a dar-lhe o pouco que ganha nas noites em branco...
a musa que para o amado triunfar foge e se apaga...altar final do sacrifício altar do amor cego que não se qualifica...
+
o último plano que rasga como uma faca no coração.
(liturgia da paixão)
os grandes planos que não funcionam como a puta da regra da linguagem ou o cumprir de quotas cinematograficamente falando, mas sim para filmar a emoção e variação - revelação, perdição, força, medo, escuro, claro... - do homem..toda a complexidade do ser. O gp foi inventado para qualquer coisa, griffith sabia-o como vidor o sabia, e cada um deles é um universo de energias que explode na tela. Gesto a um tempo íntimo e singular e total.
vertigem do rosto, vertigem do olhar. aproxima-se demais e queima-se.
então, insisto, esquecer a tal da linguagem e esquecer o fato e gravata e volver-se um vândalo de coração à beira da câmara, um vândalo e um taberneiro dos sentimentos...essa palavra hoje tão ridícula na arte como todas estas quimeras que se pressentem aqui e que à custa de tanto talento e génio e progresso hoje tornaram o cinema na porcaria que ele é. o cinema de um génio por semana, 1000 ideias por minuto, artistas de museu, radicais ica de subsídios de milhões.
...é o escritor de peças teatrais já caído de amores por ela a desfazer-se de uma das pernas da sua cadeira para lhe dar fogo para o corpo e obviamente para a alma...
...são os amigos dele a trazerem-lhe comida e a fazerem a farra dos pobres, a perceberem que ele tombou de amores e a mandá-la buscar para ele.
Se calhar é preciso ter-se abandonado uma casa para se começar a puder entender qualquer coisa na tristeza infinita e infinitamente magoada dos olhos de gish com os sacos às costas...é preciso sentir uma qualquer pulsão que desfaz o efeito da ilusão ou da magia ou da hipnose e nos proporciona o arrepio na espinha da vida. cinema = vida, cinema ≠ vida.
é essa dança absolutamente louca, demencial, animalesca e livre igual à de binoche e lavant nos amantes da ponte nova...onde a câmara e os corpos nessa eterna bebedeira dos sentidos fodem e não olham para o lado.
são os olhares beijos e abraços e todos os mimos à beira rio...a luz a incendiar a película de desejo, o lirismo a queimar pelas águas ventos ervas a saia a esvoaçar...
...é o escritor já nos chãos fuzilado pela musa de inspiração.
é essa musa a esconder-lhe que foi despedido do trabalho indecente e a dar-lhe o pouco que ganha nas noites em branco...
a musa que para o amado triunfar foge e se apaga...altar final do sacrifício altar do amor cego que não se qualifica...
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o último plano que rasga como uma faca no coração.
(liturgia da paixão)
os grandes planos que não funcionam como a puta da regra da linguagem ou o cumprir de quotas cinematograficamente falando, mas sim para filmar a emoção e variação - revelação, perdição, força, medo, escuro, claro... - do homem..toda a complexidade do ser. O gp foi inventado para qualquer coisa, griffith sabia-o como vidor o sabia, e cada um deles é um universo de energias que explode na tela. Gesto a um tempo íntimo e singular e total.
vertigem do rosto, vertigem do olhar. aproxima-se demais e queima-se.
então, insisto, esquecer a tal da linguagem e esquecer o fato e gravata e volver-se um vândalo de coração à beira da câmara, um vândalo e um taberneiro dos sentimentos...essa palavra hoje tão ridícula na arte como todas estas quimeras que se pressentem aqui e que à custa de tanto talento e génio e progresso hoje tornaram o cinema na porcaria que ele é. o cinema de um génio por semana, 1000 ideias por minuto, artistas de museu, radicais ica de subsídios de milhões.
quinta-feira, 18 de agosto de 2011
sexta-feira, 12 de agosto de 2011
Há muito que não existe um Walsh, como não existe um Ford ou um Hawks. Essa casta que, complexa e labiríntica, humanamente e cinematograficamente, recusava os jogos de metáforas e as tintas das china estéticas e narrativas para só ficar o essencial, o que de facto é e está lá. Um filme como "They drive by night" a ser feito hoje em dia ficaria com uma duração de umas três ou mais horas, foi o preço de "tanto e tanto talento" que hoje em dia os suplementos artísticos dos jornais nos entregam.
Aquilo que já sabemos, o mundo parece andar a um ritmo trepidante – os satélites, os aviões, as máquinas digitais, os avids, os portáteis dos jornalistas dos festivais – mas uma peça de arte deve ser lenta, dilatada, fazer-se poética e se possível sensorial. E o que aqui falta...
Walsh contava e mostrava coisas sem fim, coisas do arco-da-velha, coisas singelas, idas e vindas, momentos de amor, paz e guerra, mil e uma coisas e os filmes continham toda a fulgurância que 90 minutos poderiam conter. A cada cena, a cada acção, a cada palavra, a cada gesto, a cada suspiro – o máximo laconismo, a máxima intensidade. Arte da concisão + arte da dramaturgia. Cada coisa dura o que tem a durar, tal como cada homem faz o que tem que fazer. A poesia inscrita na acção. O Resto é quase sempre pose ou vontade de imposição, essa afectação.
Glória do classicismo, obviamente, mas repare-se na construção de "They drive by night" e meça-se os ditirambos normalmente aplicados ao cinema moderno:
- O uso da elipse, nunca escancarado como em tanto desse rotulado "cinema do tempo", antes impregnado nessa linha recta onde as curvas se vão mostrando e diluindo e destruindo. O tempo passa e passa na caleidoscópio serena de Walsh.
- Sem excepção, cada plano possui gente dentro, um motivo, uma razão de ser, jamais se limita a qualquer embelezamento ou estranhamento. O que não impede, antes pelo contrário, as fabulosas ambiências e a espessura atmosférica de cada espaço.
- A psicologia da personagem de Ida Lupino que é tratada como a fome de paixão de Bogart ou a fidelidade de Raft, e assim nos surge assustadora.
Filme de fidelidade. Arte de fidelidade.
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
Para o vento e o mar
os homem e os seus problemas,
não são nada.
...
A lua estava baixa.
As árvores, silenciosas. . .
o ar, nebuloso.
O mar era profundo.
As rochas, negras.
A natureza estava indiferente
ao destino do homem.
É preciso ter-se caminhado muito, visto muito. É preciso ter-se falhado e acertado muito. Ter-se ido aos limites e esvaziar-se. Para recomeçar, com o fulgor dos grandes recomeços... Ter-se tido todas as certezas e abandonar-se aos mistérios dos tempos todos. Certo, "Anathan", última obra de Josef Von Sternberg, é um fim e é um princípio, de onde os meios nada podem e por isso mesmo tiveram papel essencial. Mestre da luz, do sumptuoso, do funesto e das demências carnívoras, do erotismo cortante, do seco fetichismo, da mise en scène voraz ou do fondu...aparece aqui, nesta estranha história de resistência e de abandono ao primitivismo e ao ser, despido de qualquer adorno ou utilidade que não a apreensão imediata, clara, concreta do que está em causa, do que está à frente. O que é tanto mais impressionante quando sabemos que tudo aqui é também a glória ao estúdio e às maquetes, em suma, ao falso. Que a natureza e os seus segredos insondáveis de sempre, que essa luz divina abarque e redimensione tudo a outra luz ainda, e que os corpos e os comportamentos nos surjam com o mais feroz dos vigores e de peso de verdade, de conhecimento ou de misticismo inerente, é o golpe de asa e o retirar do tapete. A poética cravada na ontologia, de todas coisas e do oficio de cineasta. Já nos tinham dito que "quanto mais artificial, mais real", e Sternberg ao usar de todo o decoro mas implacavelmente e vertiginosamente da máxima transparência (quase um livro de instruções ou um guia para principiantes) que alcança a máxima opacidade, diz-nos o que Godard nos disse de "Bitter Victory" - "“O que é o amor, o medo, o desprezo, o perigo, a aventura, o desespero, a amargura, a vitória? Qual é a importância disso quando olhamos as estrelas?”.
Também na sua assustadora lógica interna e reveladora, todas as cenas exteriores ao paraíso (tão cândido como infernal), ou seja, o nojo da guerra e do poder, são tratadas como elas merecem, varridas às três pancadas e assim cumprindo a sua função.
No centro da ilusão os corpos não enganam e a palavra obsessiva fere de morte, explodindo como centro a mais eterna das perguntas: o que somos ou podemos nós diante de toda a imensidão que nos engole.
O que valem as aparências diante da fatal e última nudez?
Que pode o cinema ou a criatividade ou o génio perante o mundo?