segunda-feira, 24 de março de 2014
"A Girl in Every Port", 1928
Spike Madden é um trota-mares e um trota-mulheres. Em cada pedaço de terra junto ao barco atracado, lá costuma estar uma da sua lista à espera. Mas no hiato em que o apanhámos neste mudo de Hawks configurador de quase toda a sua moral e construção posterior, esse possante marinheiro encorpado pelo colossal Victor McLaglen anda em maré baixa. Umas casaram-se e tiveram filhos, outras entregaram-se a diversas carnes rivais e muitas delas provaram da anátema invisível de Spike que lhes marcou literalmente a pele. Então, essa massa desejante em alta rotação, resolve tentar quase tudo o que mexe mas mesmo essas vão preferindo a sombra que teima em não confluir com ele. Como para quem muda mais vezes de poiso do que de sapatos o mundo é pequeno, vai num dos engates embater com a personagem que lhe fez a vida negra pelas costas, e acontece tudo menos o esperado. Entre em cena o também marujo Bill e logo andam à porrada como se não houvesse amanhã. Mas porque se reconhecem numa qualquer audácia ou numa qualquer solidão, tão rápido como se altercaram se vão unificar contra outros. Entre desafios às autoridades, cigarros trocados, bebedeiras revitalizantes ou investidas conjuntas ao sexo oposto, tornam-se unha com carne. A amizade significa mais para os dois do que qualquer mulher. Acima de tudo, pensando já em “Tiger Shark” ou “Red River”, tudo mais do que qualquer junção traiçoeira. Então vai acontecer o que acontece tantas vezes, Spike deambula sozinho e deixa-se apanhar no feitiço de uma víbora. Víbora marcada por Bill que sabe do que essa cospe, e se lhe vai chegar perto já não é para mimos mas sim para ameaças sérias. Está lançado o conflito e a perpétua possibilidade de tragédia. Bill repele o veneno todo e orienta-se para a desgraça. Bebe e provoca alheios e no tudo ou nada clama pelo amigo ao acaso. Este, contra todas as probabilidades e sortes, ouve esse rumor e esse secreto apelo. Vencem mais uma batalha, mas o orgulho quase fere mortalmente o julgado traído e este leva o fidelíssimo ao tapete. Mas reconhece-o outra vez, mais do que na audácia ou na solidão, na verdade certa vez prometida, e acabam de copo na mão. Entre juras de para sempre. É-se bruto, javardo, foge-se da terra ou das obrigações, e se sozinho não se é nada há que se juntar a alguém. Na máxima violência, no máximo amor, sem destrinçar. Neste portentoso Hawks ainda sem os diálogos furiosos e a sucessão de imagens e sons a carburar justamente à causa, nas comunhões ou dialécticas cortantes, já está todo o fundamental. Completamente imerso no ritmo da vida sabendo que é esta que despoleta todas as ambiguidades e clarividências. Cortes em movimento, frontalidades reveladoras ou acusadoras, respiração conforme, Homens a fazerem os trabalhos dos Homens. Forma superiormente moldada que busca sempre a mesma coisa: perceber o mal, descascar o mal, recuperar qualquer coisa original. Para nos derradeiros suspiros se poder ousar pelo menos aproximativos do tal “I`ve had a hell of a good life”, sem a grande depressão. Já irrompe toda a força e todo o corpo de Hemingway, Wayne, Cooper ou Capa, isso do antes quebrar que torcer, como no seguinte “Fazil” assombrará o Faulkner ou o Gable das mais escavas sombras. Se o último dos planos já comporta uma cicatriz num rosto, maldições cravadas ou pressão do além, das primeiras de muitas do realizador, é porque esses dois polos indivisíveis já se entreveem, mas olha-se de frente e eclipsa-se a temeridade. Seguros de si. Essa a tal da moral ou do código, sabendo do fundamental de A Girl in Every Port.
sábado, 22 de março de 2014
"The Dawn Patrol", 1930
O Pão de Deus cria cada burro…velho dito popular que não aparece pelo google mas só na fonte das fontes, os tais antigos e a infalível memória e perspicácia. Lembrei-me disto, que tantas vezes ouvi e percebi logo o sentido, a ver este filme de muita luta e de muita espera tanto no céu como na terra. Numa diminuta área concentracionária, tal como em “Ceiling Zero” ou em “Only Angels Have Wings”, três homens vão-se suceder no posto capital que a todos começa por decidir a sorte. E no tempo fugaz que não dá para considerações, terão de alinhavar estratégias e tentar esquecer o factor humano. Nesse posto ao lado da síncope estarão sempre entre o Burro e o Santo. Mas o que se fica a perceber pelo mais obsceno dos fora-de-campo é que esse Pão azedo, ácido, só se come ali mas vem produzido de bem longe, do quente de quem não suja as mãos e tanta esperteza comporta. Dick Courtney é como uma estrela complexa em todo o trajecto delas que fará o percurso completo, do aviador que engole as ordens, até ter que as dar sem pestanejar, à morte. Neste bando de anjos joviais que diz sempre sim e não teme, quando teme é pelo outro tão mais amado que ele mesmo, as mais belas cenas serão de pura insurreição. Quando Dick e o comparsa acordam de madrugada e vingam pela calada uma provocação intolerável; os permanentes esquecimentos da conduta certa para estar sempre na asa do melhor amigo; e a mais bela, quando esse aprumado herói comum embebeda Hawksianamente o rapaz que acabou de perder o seu irmão mais novo, e se ri por isso, se ri como se conquistasse a mulher amada. Uma das mais belas traições do cinema, que é o acto supremo da amizade e da doação. Insurreições, dizia, mas insurreições por amor. Ri-se e vai direitinho às nuvens para fazer o trabalho do que ficou zonzo em terra. Faz a coisa como deve ser e incendeia-se ainda jovial, saudando o oponente que como ele tem de matar outros homens porque sim. E neste que é dos primeiros filmes sonoros, o suspense e a reviravolta chega como tantas das vezes através dos motores das máquinas, tortura em off sem volta a dar. A não ser através do escrito final que afirma que o inimigo morreu mas que morreu galantemente. Neste que se diz ser o único filme de HH sem uma mulher, dos mais despojados e despidos onde a fixidez tudo carrega e tudo abstrai, o que não se vê como o que não se percebe vai sempre volver-se eco da desgraça e da paixão. Num universo em que o essencial brota do irracional. Lancinantemente.
sexta-feira, 21 de março de 2014
quarta-feira, 19 de março de 2014
A “Beatrice Cenci” de Riccardo Freda ilumina-se
com fugas a horas tardias demais na noite e enegrece a cabeças decepadas.
Salvações inusitadas e enganos terríveis no movimento desta eternidade. Na sua
órbita perpassa tudo do que se pode imaginar e do que não se pode. Inocentes a
fazerem do primeiro amor o amor eterno. Crescidos marcados pelo tempo e pela
carne gasta da partilha. Forasteiros obstinados. Petizes assustados. Sinceros
demais como os novos na terra e aberrações incuráveis. Maquinações mútuas e respectivos
encravamentos. Incestos a toda a largura e grau. Comida envenenada. Relação
envenenada. Deturpações originais. Sangues ruins. Certezas absolutas.
Reviravoltas sem causa. Contradições inatas. Insinuações latentes e correspondidas.
Devassidão de porta aberta. Dádivas puras e maldade incurável. Mestiçagem letal.
Elipses no presente puro e impuro por causa delas. Terrores entranhados. Beijos
fulgentes. Beijos funestos. Fel putrificado. Milagres condenados… E o delírio dessa
envolvência, da ambição, da consciência que tudo amplifica: realezas e escravos
e por aí fora nos seus castelos inconsequentes. Cavaleiros de espada à cinta de
cabelos ao vento a rasgarem a paisagem decadente. Argamassa secular do embuste…
Numa sinfonia que abre na demente floresta de suicídios e desmaios salvos ou destinados
e que cerra em silêncio aterrador. Ambiguamente sem bons e maus definitivos. Onde
a sorte dos vivos parece interminavelmente pior do que a dos mortos. Onde tudo
parece ter morrido. Apocalipse consumado nessa constante ebulição. Dos azuis e
verdes e vermelhos e negros corroídos até à descoloração acabada. Imensa
pintura em movimento arquitetada pelo rigorosíssimo e sensível CinemaScope continuador
de todo o cinzelamento Egípcio do berço de Freda até ao alto renascimento da
pátria de trabalho, o reconhecido Giovanni Piranesi ou o Courbet dos enterros, Da
Vinci horizontal e sucessivos. Que não se racha constantemente, não se
estilhaça ou mosaica em múltiplos ecrãs ou narrativas ou plataformas, como se
costuma pensar que é dramaticamente mais forte para falar de grandes painéis,
frescos ou gravidade humana, mas que nos junta a nós e à nossa enfadada
catadura que ainda nos aguenta, a grandes distâncias ou bombasticamente perto, para
fazer ver que não há saída para tamanhas discrepâncias, covas, usuras. Por isso
não é questão, nem nunca foi, do progresso ou da tecnologia cega e surda que
nos agride no “300” e suas sequelas ou no mais sofisticado autorismo de “Pompeii”,
mas sim de sentido e de sentimento. Riccardo Freda atingiu o cúmulo do
romantismo e a frieza insuportável, questão de saber olhar e perscrutar. Nada
mais grave, antigo e moderno.
segunda-feira, 17 de março de 2014
sábado, 15 de março de 2014
“Fantastic Voyage” é mais um caso à primeira
vista inclassificável no multidimensional percurso de Richard Fleischer, caso
fantástico na sua tremenda viagem. Não lhe servem as prateleiras nem os
carimbos da Sci-Fi, piropos utopistas ou solenidades proféticas. Está, como nas
suas féeries tardias ou nas primeiras dos pretos e brancos e das assombrações
calcinadas, instalado no momento presente que os aglutina a todos. Nascimentos,
jornadas e crepúsculos na mesma passagem ou no mesmo cosmos que não exclui,
pelo contrário, os turbilhões, os rasgares, as dimensões resvalantes.
A missão, a sinopse seca, na sua incredulidade científica
ou narrativa, é simples: alguém que importa foi assassinado e urge reverter tal
facto. Então, reduz-se literalmente uns cientistas e uns médicos, um submarino
piscatório e a sua equipagem e toca a metê-los pelo interior do corpo humano
adentro. O tempo urge gravemente e não há espaço para hesitações, éticas, repensares.
Segue-se o conhecimento adquirido, afia-se o instinto e o cheiro selvagem,
puxa-se o medo para a coragem, carrega-se no acreditar, e torna-se o
extraordinário plausível por aquilo que sempre nos fez mexer, a necessidade, esse
vulgo desenrascanço.
E depois, depois, começam lá dentro deste nosso
embrulho, desta nossa mala, a dizerem espantados que o Homem é o centro do
universo, que o nosso pensamento brilha mais do que todos os sóis de todos os
universos, essa glória incandescente da infinita mente nossa. Eles, os
especialistas, a abrirem a boca a cada instante, a surpreenderem-se sempre pelo
que julgavam saber de cor e salteado. Todo aquele organismo de arestas
recônditas, texturas ocultas, luzes e sombras fugidias, significações ambíguas
e experiências primeiras vão ser como o acordar de uma nova galáxia. Eles ficam
sem chão, e o cinema com eles. À redescoberta ou descoberta do que julgávamos
arrumado, uma infinitude de surpresas, soluções, opacidades, altercações. A
massa do sangue a deslizar para todos os mistérios e maravilhoso. O coração a
suspender-se, a ceder passagem, e a bombar de novo. Os desastres e anomalias
ali como em todos os lados. Como também se diz lá: a mente finita não pode
compreender o infinito; e a alma que provém de Deus é infinita.
E a dramaturgia, a imortalidade. Lá nesse dentro
concentracionário como o dentro das insolentes e arrojadas expedições da Nasa, continua
a maligna sede da inteligência, da pulsão rasteira, fractura, degredo. Há
sempre alguém que destoa. Que desarmoniza a natura. O demasiado humano e o carácter
cravado a almejar orquestrar a seu belo prazer. De facto, atinge-se alturas
raras de perigosas quando antagonismos destes se debatem. Por entre esses
tecidos e fluidos que fazem lembrar os desertos quentes da terra, nas zonas
pulmonares que são o fundo do mar ou no cérebro das explosões cadentes, e que
dizer dos alvéolos, guerrilheiros glóbulos brancos e vermelhos ou os fractais
tão estupefacientes como no 2001 de Stanley Kubrick, o permanente deslumbramento
da nossa constituição com o permanente deslumbramento desta arte tantas vezes
sem saída, não são o suficiente para limpar a mente de outros tipos de
sujidade. Um dos elementos da tripulação renuncia e não são precisas
insurreições vingativas dos seus comparsas. Entra em campo a grande justiceira,
a ordenadora superior e depurada, a natureza. A essência. Essa que recicla
tudo, clamante dos eternos-retornos, sempre certa. Recicla o traidor, orienta
os inatos milagres. E termina sempre em apoteose como este espantoso, e não
encontro palavra mais definidora, filme de 1966. Sublimes ajustes da Mãe das
Mães e sublime plano alto final, vulgo picado, a meter tudo na justa
prespectiva. Mundo realista de escalas falseadas, maquetas mágicas, computação
tosca, muito mais do que se fosse supervisionado ou sujeito a aprovação de um qualquer
licenciado sério; e a mais bela das homenagens ao seu Heroico Pai, o Max
Fleischer pioneiro da animação e inventor do Popeye marujo; ao seu Heroico Tio,
Dave Fleischer, e a todos os que elegeram os trilhos desgarrados da poesia
total, tais espelhos reveladores e pintura livre para encarrilharem aos trilhos
essenciais da vida.
quinta-feira, 13 de março de 2014
Henry King talvez seja, como afirma Jacques
Lourcelles, o mais reservado, o mais apagado dos grandes cineastas americanos
de um certo tempo. Sem pretensão autorística mas antes privilegiando o que narra
e a matéria que o possibilita, como o padeiro genuíno que apenas quer fazer
sempre o mesmo pão do dia-a-dia, sem inventar ou inovar o que está
absolutamente resolvido, deve ser isto. Mesmo que o seja, e num grupo onde
estão Dwan, DeMille, Ford e Walsh eu vacilaria sempre, é igualmente um obcecado
sem volta a dar. Obcecado pelos altos, pelos Céus, pelas suas transparências e brilhos
paroxísticos, pelos Cordeiros de Deus ou pelos tipos comuns com a sua fé e
transcendência em primeiro lugar. Seja o sétimo Céu com a licença de Frank
Borzage, onde um homem e uma mulher fazem cair toda a lógica da física e mesmo
do milagre para transporem isso para o plano do indizível e da demência amorosa;
as visões subjectivas e assim reais pelo sem margens-para-dúvidas do anjo da
terra de “The Song of Bernadette”; a troca de forças megalómanas e
correspondências interiores entre a plena divindade e a fraqueza da carne no “David
and Bathsheba”; ou, para acabar o inacabável, esse planalto de ventos, suaves
verdes e sombras de árvores que será para sempre o Paraíso que a morte não
venceu, onde a borboleta que tudo liga e faz reviver iniciará novamente o amor,
perco-me ainda por “Love Is a Many-Splendored Thing”.
Não é para poder estar tanto tempo literalmente
no Céu, envolto nele ou o mais perto dele possível, que King teria de fazer o
chamado filme de aviação. E como já disse e se fica a saber melhor vendo ainda
outras obras, esse, o inclassificável, impassível e visceral firmamento, o
desmedido, o infinito carregado do Nada e carregado de Deus, foi se calhar mais
o centro e fulcro cá em terra do que no seminal “Twelve O'Clock High”. Mas a
questão aqui, e por isso a vertigem, é que no outro interesse partilhado com os
grandes cineastas citados e com mais alguns – Griffith, Vidor, Hawks, para me
calar imediatamente - ou seja, a força dos Homens, ou para me socorrer de
diálogos, o saber quanto um homem pode aguentar, quanto se pode superar,
ultrapassar. Mais gravemente, até à exaustão: Parem de fazer planos, esqueçam
voltar a casa. Considerem-se mortos. Quando aceitarem essa ideia, não será tão
difícil. Quanto pode o Homem não dormir, manter-se em pé, ir à luta e não
tombar definitivamente. Acima de tudo, e é aqui que entra o risco e a
complexidade do General de Gregory Peck, quanto pode acreditar nele próprio. General
que puxa por eles, arrisca tudo, inclusive o ódio supremo e a morte
irreversível, as cobardias e o heroísmo vazio, para nunca cair na intrujice ou
no romantismo balofo, mas para, como o líder dos Marauders de Samuel Fuller, demonstrar
que por algumas coisas os mortos caminham. General com asas que os vai entender
depois de também levar cargas de porrada e humilhações outras, que voa com
eles, chora com eles, dilui-se neles, paralisa-se pela visão demasiado
plausível do falhanço dos filhos, acorda quando eles o acordam, e dorme na
grandeza partilhada. Ele que não foi na missão capital mas que estava em cada
canto das malditas caranguejolas.
A superação. Comum aos grandes, claro. É por ver
essa imensidão lá em cima e lá de cima. Ver quanto no incomensurável a nossa
pequenez de tamanho se impõe. Ver a terra de lá e a destruição. Mortos e mais
mortos, mortos sem conta a explodirem nas máquinas voadoras, esse orgulho
nosso, e a busca do motivo. A superação, a elevação, a suspensão desafiada aos
mitos; para o pior dos males possíveis ou mesmo para a salvação, e o absurdo. A
plenitude e a concentração total de força bruta e de alma direcionada à guerra,
ao caos, ao desentendimento. Fazendo-nos ver que sem isso não conseguimos estar
completos. Henry King, o viciado nos Céus, vai misturar o que filmou com o que
outros filmaram. A chamada ficção com a chamada realidade, com o documento. Introduzindo
outras questões. Como seríamos, nós, a nossa cultura, sociedade, imaginário, e
como seria também o cinema, o espéctaculo, a história de um e do outro, a moral
e todas as reflexões sem as tais imagens feitas por não artistas? Essas
descarnadas imagens do ponto de vista dos homens para queimar, dos
dispensáveis. Às vezes fica-se a pensar que é para se ter catarses,
experiências registadas ou memórias mais duradouras e insuportáveis que tais
foram provocadas. Mas por amor a ele, ainda ao Céu, e a nós, King abre e fecha
o filme com um regresso a casa, à casa daquela ser, à de cada um, para nos
fazer ver a união e a família. A união e a família, tal e qual como Nicholas
Ray também culminou em “We Can't Go Home Again”: “Take care of each other. It´s
your only chance of survival. All the rest is vanity”. Together. Together.
Contra o intolerável e dissimulado veneno da grande mentira que mata. É a
bênção recíproca e a máxima radicalidade. A derradeira coragem.
Um Cineasta da eternidade, chama-se assim o
artigo de Lourcelles que cito. Ámen.
terça-feira, 11 de março de 2014
Mas há esperança para o futuro. Quando o mundo
estiver preparado para uma nova e melhor vida. Tudo isto se irá um dia
passar...no bom tempo de Deus. São os derradeiros brados para nenhures das “20000
Leagues Under the Sea” pintadas secretamente e em convulsão por Richard
Fleischer em 1954. Nunca apenas Júlio Verne em transposição imagética mas antes
pura poesia em andamento, a desenrolar-se de boca aberta pelas possibilidades
inexploradas das coisas e das suas cambiantes, massa aquosa que transporta em
si a harmonia da rima e o seu contraste terrível; pura poesia atormentada pelo
mal que jorra constantemente sem trégua à vista, pura poesia elevada pelas cintilações
ontológicas inapagáveis; sem retórica ou sublinhado que não a livre beleza
imanente. Não poesia na prosa, fogachos a trucidar uma narrativa clássica, mas
sim a verdade dela, a sua chaga escancarada, desnudada, sangue a correr e esse
milagre nunca percebido. Água, sangue, coisas que correm consubstanciadas. A
trazerem ao de cima os massacres calados pela eternidade tão velha, a
cavalgante sede destruidora, a culpa indesculpável; e o humanismo e a
contradição a surgirem como possível única redenção. É a guerra, não
antecipadora da primeira ou da segunda de um século vinte, mas essa destinada
enquanto razão houver.
O Capitão Nemo sabe que o poder do ódio pode ser
tão forte como o do amor. Mataram-lhe mulher e filha e entregou-se ao génio. Ao
mais puro génio que só tem por finalidade e objecto o mais perfeito mal. Tombou
nos visionarismos e afogou-se na totalidade. Na sua ansia cega de terminar a
morte só responde com morte. A sua libertação pelo privilégio impar dos fundos
dos fundos das águas é a sua condenação e a de todos. Os tesouros e o ouro da
danação terrestre já não fazem ali sentido. Paradoxos aflitos que remetem para
todos os holocaustos recorrentes e sem rasto, na ponta da língua e cifrados na
ciência ou na computação, onde o crescimento para Deus prepara o embate impraticável.
Esperma de baleia à sobremesa, cobra marinha
melhor do que carne de carneiro, charutos de algas, os mortos que ainda se continuam a enterrar
solenemente nas profundezas das profundezas… monstros e mundos da maravilha
e do terror onde se pode viver quando se esquece e mata e humilha o prisioneiro
palco da nascença, com todas as latitudes e infinitudes intactas e fulgurantes,
nada a ver com subsistência mas antes com avanço e potencial nunca sonhado
pelas mentes fechadas no seguro chão. Pensava-se que nas águas se escondia a
maior e mais perigosa das criaturas marinhas e ainda a inteligência e
estratégia oposta. Nemo a crescer para Deus. E em contragosto o marinheiro e
caçador de baleias bêbado de Kirk Douglas, que só tem a carne feminina e o
álcool na cabeça e na ambição, a mais reconhecível das nossas criaturas e Herói
ou Carrasco máximo quanto tudo parece ficar na costumeira paz. Inventor que
junta à música de toda esta pintura a música de guitarras desconhecidas.
Costela Fordiana que impõe o baile à violência, que sente o auge desses
movimentos sem lhe impor moral. Muitos não pararam de avisar que é talvez a paz
que se seguirá ao The End que provoca o caos. Essa da ilusão e da repetição que
antecede o sono e a paralisia, a antecâmara da morte.
Não há fim do beco e luz, tudo se complexifica
na máxima simplicidade, sabemos do que se trata e sabemos que a solução não se deixa
agarrar. Compreende-se perfeitamente o que se passou e a irresolução perene. Os
grandes planos de Nemo dão-lhe a razão tirada pelas suas acções. De monstro a
criança indefesa e a monstro. Quando o marinheiro bêbado o salva e de seguida
se embebeda para esquecer essa infâmia, também fica sem o tapete do bem e do
mal resolvido. A chave ou o pistão que salta será algo muito, muito maior,
inultrapassável, invisível, esquivo aos correntes olhos, irrevelável,
inviolável, aquele ponto onde sempre se tenta chegar, sempre, em milénios e
milénios perpétuos, e que cada vez foge mais, mas comanda e seduz. A poesia,
precisamente, fonte e confluimento de todas as forças, crenças, direcções, onde
nada pode ser descurado na perseguição do absoluto. Perseguição, apenas
perseguição. Absoluto, absoluto, nome para todas as quedas. Em Hollywood e com
a encenação a carburar sem freios, raro tanto se entreviu. Fleischer
absolutamente aberto e absolutamente em sentido. Vigilante e em arrepio, por aí
toda a descarga suave e maléfica desta sinfonia pelo ordinário.
O maior dos oceanos não é o venenoso mas o que
separa um Cristão de um Pagão. As mãos podem cruzá-lo facilmente. Se estas se
tocam também as almas se tocam. E a carne. Quem assim se debate são rainhas e
herdeiros de tempos longínquos demais, suplicando pela fusão. Homens e mulheres
imemoriais. Trabalhos imemoriais. “The Vikings” é já de 1958, auge de outra ou
da mesma poesia que no mais irreconciliável e cavo não desdenha a pujança dos
seres e os esplendores da sua envolvência, jamais fendendo, jamais traindo,
jamais rebaixando. Toda a trama e toda a questão, assim todos os sentimentos,
são mais velhos ainda, velhos como o respirar, por isso iguais aos da vida e da
ficção deste lado do contentamento.
Tem que ver com Irmãos de sangue separados na
vida e reconciliados na morte. Junções prometidas como amanhãs de sempre.
Bruxarias ancestrais. Se nos tempos e lugares desses povos a violência ainda
não teve rival, todo esse vendaval e universo parece bem mais habitável, justo
e honrado do que qualquer civilização, sistema político, organização moderna,
ou seja o que mais for de sentido de decência e cavalheirismo. Ali entregam-se
espadas e soltam-se amarras antes da morte do inimigo, para este ter paz e
encontrar o seu Deus, como gostaríamos que nos fizessem a nós mesmos.
Cumprem-se promessas mesmo que a certo momento inconcebíveis. Abre-se o jogo e
a tal da ambiguidade e das meias-verdades em voga não entram. Visão reconfortável
em comparação com o último chegar da grande panorâmica do tempo.
Claro que os corpos se rasgam em grafismo e fealdade
aterradora, o sangue afugenta-se tristemente, a vingança volve-se visita fatal.
Mas nesse ressoar de suaves trombetas dos anjos sem apocalipse que fazem correr
homens, mulheres e crianças para a felicidade dos novos mundos, pelos ventos
místicos e mágicos e entre as neblinas da perdição navegante que evaporam o impressionismo
e o fantástico rumo à superior abstração da mais pura beleza inominável com o
horror casada, assoma a pulsão original do homem e o seu natural instinto
justiceiro. Antes da degradação pela aparência, precisamente. O choque final é
sintomático, revelador e cheio de saudade – o embate escrito em rodopios ao céu
direcionados, a presença inteira da mulher, a testemunha das forças telúricas expectantes.
E o funeral a suave fogo, chamas bem-aventuradas, devires plenos. Dovjenko nas Fiordes, os planos e a matéria devotamente
ungidos, num dos cimos do seu lado da sagração. Que tanto ainda mais rima com
os fecundos verdes das planícies e árvores invencíveis, a agrura também tão
velha da pedra, os brancos espumantes e jorrantes das águas e das cataratas
procriadoras, prenhas mesmo, o olhar vidrado e rosto esfaqueado do mano
hesitante como o do conto de Lucas. Tudo tão velho, velho, cansado, o ressurgir
de novo, o presente.
As veias que se esticam até aos limites e o suor
que seca o corpo que resiste a tombar, acordado com a pintura dos sentimentos,
a rescendência dramatúrgica, a alma plasmada, o tremor universal. O selvagem a
viver com o artifício mais real do que o convencionado real. Lembra-me “Acto de
primavera”, lembra-me “Le legioni di Cleopatra”. Foi preciso ir tão atrás para
se perceber como se está tão na frente. E, numa oposição tão descabida e bruta,
esse pesar da constatação limpa demais. A derradeira cisão, o buraco desmedido.
Outra musicalidade, esse som dos círculos para sempre.
Assim como assim, não se deve ignorar o encontro
de Fleischer com Mark Twain, no qual um Príncipe, um pobre e um viandante se
colocam em causa para colocar tudo o mais em causa. As fundações gerais, as
aparências locais, os espelhos literais e o poder tentadoramente ilusório do
cinema e da efabulação. “Crossed Swords”, assim foi cortantemente rebatizada a
parábola que para tanto mundo serve; e assim a obra do cineasta que foi
vigorosamente a todas ainda não se podia abrir ao demencial do que seria “Red
Sonja” ou o seu “Conan”, pois a verdadeira demência estava na realidade mais
rasteira. Ou, para não nos perdermos tanto, na realidade edificada pelos
sobre-humanos. Não se pode negar as origens, é o que sobrevém na cena da
reposição final, logo tudo o que se perdeu da semelhança original. O suposto
Pobre a devorar com as manápulas o fino manjar palaciano, as regras de etiqueta
a caírem e toda a sua entourage feliz da vida nessa anarquia; o suposto Príncipe
a espalhar altivez humilde pelas pocilgas, confundindo todos os patamares e
todas as lógicas. O Viandante, esse meio fanfarrão meio revolucionário como
todos os que valem a pena, a planar por onde o perigo der de si. E apetece
recontar a cena mais bela, a mais significativa, para reverberar só um
pouquinho mais: no nevoeiro espesso à beira da encantatória lagoa e por entre
viçosa verdura encontra-se o Rei, ou o Pobre?, e o Viandante, ou um seu gêmeo,
e não acontece milagre nenhum. Olham-se na miséria e na fragilidade, e no
prodígio da aventura de viver, e acreditam-se. Choram-se, riem-se e abraçam-se.
E a natureza com eles. Treme tudo, por dentro. Muda tudo. Sem milagres, mas no
auge da comoção comum. Poesia, romantismo, catarse, o turbilhão do cosmos a
encontrar-se. E os três a unirem-se num só. O Príncipe, o Pobre, o Viandante.
domingo, 9 de março de 2014
quarta-feira, 5 de março de 2014
Encontros Cinematográficos 2013 – Fundão (III)
ROSA LA ROSE de Paul Vecchiali
92 min | 35mm | Cor | França, 1986
Escolha de Bruno Andrade
Uma vida...
"Seria preciso um dia para contar a história de
um segundo,
um ano para contar a história de um minuto,
uma vida para contar a história de um dia."
Jorge Luis Borges
um ano para contar a história de um minuto,
uma vida para contar a história de um dia."
Jorge Luis Borges
É menos o
cotidiano de uma zona de prostituição que um ciclo de nascimento e morte que Paul
Vecchiali descreve no seu filme; menos uma questão, portanto, de narrar alguns
instantes mais ou menos anedóticos, mais ou menos determinantes na vida de uma
prostituta que de figurar com ternura exemplar seu ciclo de vida, como se
assistíssemos à formação e à extinção de toda uma galáxia - ou, mais
precisamente, um magnífico corpo galáctico em torno do qual as reminiscências
de toda uma vida orbitam. Eis o que de fato caracteriza a proposta e a forma de
Rosa la rose, fille publique.
Como Heaven’s Gate, como The River’s Edge, como Ugetsu monogatari, como Una donna libera, como Merrill’s Marauders, como Une partie de campagne e Une vie, Rosa la rose compõe-se ao mesmo tempo como narrativa elementar e sinfonia cósmica. Moderno - ou seja, sintético -, Vecchiali utiliza-se habilmente da proposição de Borges, porém invertendo-a, restringindo a ação do filme a um período de vinte e quatro horas para contar toda a história de Rosa: não através dos seus anseios, suas expectativas, suas frustrações... Nenhuma generalização de ordem demagógica ou psicológica se interpõe à visão do cineasta. É assim que, por uma espécie de astúcia poética que filtra tudo o que poderia haver de auxiliar, falso ou desnecessário na descrição dessa vida, Vecchiali deixa sua câmera somente com o sorriso, o andar, a maneira de se insinuar tanto pelo distanciamento como pela proximidade (“o que existe de mais profundo é a pele” disse Valéry, e Vecchiali o mostra desde o primeiro plano de seu filme), em suma com a presença dilacerante e arrebatadora de Marianne Basler, sua Rosa.
* * *
Amanhece, e o dia ainda é tomado pelo azul da noite. Algumas imagens em still do quarteirão de Les Halles, a imobilidade despojando de alguns passantes o movimento que animaria o local, e imediatamente nos encontramos em um tempo e espaço que seria aquele da recordação. Quando os créditos se encerram com uma dedicatória a Danielle Darrieux, Max Ophüls, Dora Doll, Jean Renoir e Didier Albert (assistente de Vecchiali), uma desaceleração percebida tanto no encadeamento das imagens como na composição musical parece anunciar, por assim dizer, a promessa da serenidade. É então que Vecchiali introduz sua personagem e, com ela, dá à luz o movimento que animará todo o filme: uma repentina virada de rosto que faz seu cabelo esvoaçar diante da câmera, a pergunta “Quanto?” vinda de fora do quadro e a resposta “Quinhentos” saindo da boca de Rosa são signos de fácil compreensão que não apenas informam tudo o que precisamos saber do que foi a vida de Rosa até então como bastam para que se estabeleça todo o quadro da ação. Esse tempo e espaço da recordação que se instala ainda nos primeiros minutos do filme (e que Vecchiali, através da dedicatória aos autores e atrizes de Madame de... e French Cancan, deixa claro que é também um tempo e espaço seu) acompanhará o ritmo de uma vida que se precipitará subitamente aos seus instantes finais. É no intervalo de uma vertigem, como em Aldrich, que se dará a experiência completa de Rosa: a de uma menina, jovem muito jovem, que conhece um jovem rapaz e com ele um amor que somente pelo sacrifício dela poderá ser imortalizado.
Vivida por muitos,
ou por muitos poucos, mas sempre vivida a dois, é uma velha história que nunca antes
vimos representada tão intensamente pelo signo da nudez. Nudez física e emocional,
expressão de felicidade, de prazer ou de dor, ela é em todos os momentos a
manifestação da sensibilidade mais viva. Do despertar de um amanhecer ainda cingido
pela atmosfera da madrugada ao sol que raia assim que Rosa chega ao fim de sua
trajetória, o que testemunhamos é uma tragédia que destila aquela que seria a
essência do que eleva a paixão impetuosa ao sentimento duradouro do amor. Muito
mais que uma enésima narrativa da superação de adversidades, é justamente através
dessa abstração romanesca, dessa maneira de derivar dos códigos universais da
tragédia romântica uma forma obsessiva, radical e pessoal, que o filme parece
descrever o destino que une dois corpos celestes. O mínimo que se pode dizer é
que a câmera de Vecchiali faz jus aos seus intérpretes, Marianne Basler e Pierre
Cosso, dois corpos cujas belezas sobrepujam-se aos grilhões impostos pela vida
aos amantes. Rosa e Julien, uma mesma história: a história dela, dos homens com
quem dormiu, das colegas com quem andou, os encontros inusitados, o mito
atemporal do encontro de almas, o sexo livre e a utopia do amor vivido...
Ao fim do filme, pela primeira e última vez, vemos: o sol que se levanta, o dia que
começa, uma vida que se completa. Le jour
se lève encore, é o que nos diz Vecchiali.
Bruno Andrade
Encontros Cinematográficos 2013 – Fundão (II)
NOITE de Bruno Andrade
14 min | Digital | Cor | Brasil 2012
Um homem encontra-se sufocado em algum lado, na sua casa, numa prisão qualquer, não importa. É o tédio que mata. Cervejas e cigarros de esperança ou destruição. Nervosos zappings pela televisão que ainda mais condena. Aleatórias passadas para trás e para a frente. Luzes que se apagam e acendem e a electricidade que continua a ferir. A câmara que segue curiosa e extremamente física estes movimentos. Vai em busca de toda a latência prestada à altercação. E isto, até ao paroxismo. Lá fora, uma promessa qualquer.
Na noite vivem-se coisas diferentes das que se vivem de dia, isto foi-nos dito por criadores tão líricos como Nuno Bragança ou Nicholas Ray, implacáveis como Fritz Lang, ou vulcânicos à temperatura de Maria Callas. Um inapelável chamamento, feitiço, libertação, medo. Uma essencial uniformização.
Do cárcere vamos outra vez para um dentro, mas, logo se nota, é um dentro apossado pelas sombras do pecado. Fundo de parede estrelado combinado pela cor que melhor o acompanha e mancha, naturalmente o vermelho, o do sangue. No vermelho se senta uma mulher que é o fruto da tentação e da melodia nocturna. Ainda não voltámos a ver o homem e já sabemos que saiu de casa.
Não é pela consciência do seu poder de atracção que essa mulher se preenche, entre minúsculos enredos e necessário combustível também dá suspiros de aborrecimento. Necessita agir, acção, e vai à caça. Ele ao balcão, nota-se, não é novato nestas andanças. Ela aproxima-se, ele reage. O mote está dado em menos do que custou a contar. E corpos celestes com certeza incandescentes continuam a desenhar órbitas largas à mais primordial das aproximações.
Jogo de atracção, flirt sensualista, poses irresistíveis, desbravamentos, solidões lacustres. O respirável e o excitante no concentracionário e no cerco. Alguns saberão. No meio do turbilhão, um nome, Lana. E todo um passado e a sua ferida em retrocesso. Dele, só fantasmagoria e predisposição. Dela, rectidão e compreensão. Há ali generosidade, ainda ninguém se perdeu.
No carregado sofá descobrem-se nus. Estranho e límpido esventramento num dos mais improváveis redutos de humanidade ainda possíveis. Sobre aflitas elipses que o verbo e os tremores denunciam – gravidade perigosa, gravidade redentora. A auscultadora câmara vê-os agora de longe e ficam dois no espaço infinito que a todos nos promete comer. A música de muito fundo aumenta o seu volume e suspende a sinfonia. Chaga incicatrizável ou todas as possibilidades. Ali, ali não se pede desculpas.
Para além do tocante companheirismo e carinho pelos sozinhos que andam enleados algures na treva, para além da imensa vitalidade de vermos aumentadas coisas tão ínfimas e esvanecentes como a baforada num cigarro ou o animalesco cravamento de um olhar, o que “Noite” nos escancara e aproxima é o fim de um universo tão particular e bruto como os bordéis, com o fim de uma era de contacto e reinvenção entre os homens que foi o cinema. Membros de uma mesma família que por vezes ainda falam. Escuridão quebrada por violadores rasgos de luz, clandestinidade estupefaciente, a perdição e o irracional em contra campo ou num mesmo plano. Silenciosas perversões. Sagrados redutos.
Esta consanguinidade que a segunda curta-metragem de Bruno Andrade literalmente agarra, possui, materializa até consequências últimas, é a feliz união entre todas as volúpias da carne e dos sentidos com toda a hipnose e violência de que os terminais refúgios de uma arte gizada a panorâmicas omnívoras, brilhos devoradores e pedaços atmosféricos alucinantes ainda permitem. Numa grande palavra, dramaturgia. Tudo o que está, e se põe, em causa. Terminal cosmogonia. Tão fugazmente. Tão concludente. Não é coisa pouca para um quarto de uma hora.
José Oliveira
Encontros Cinematográficos 2013 – Fundão (I)
CONVERSA COM BRUNO ANDRADE
por JOSÉ OLIVEIRA
A encenação no cinema e o seu poder primitivo têm-se vindo progressivamente a perder, desde o cinema clássico americano, anos 50, “Rio Bravo”, que a chamada mise-èn-scéne, esse devastador poder cénico que de Griffith ao Expressionismo alemão tornou o Cinema num modo único de lidar com o mundo, os homens, a natureza, a luz e a morte, etc. E foi por esses tempos que uns últimos resistentes da cinefilia e da vida como gesto total, grosso modo finais dos anos 50, despontando definitivamente Oliveira, Straub, Rivette, Eustache, Glauber, o próprio Vecchiali, ou seja, modos viscerais, convulsivos e ao mesmo tempo lúcidos de lidar com essas especificidades cinematográficas, pondo vertiginosamente em questão o como lidar com o que aparece defronte à máquina de filmar? Reconhecendo a enorme sensibilidade das matérias e das técnicas, da carne e dos olhares, bem como a perigosa abstracção e dispersão a que esta arte sempre esteve propensa, como resistir? Vendo esta tua curta-metragem, parece-me que vem dessa família moderna Oliveiriana, dessa patologia que olhou estupefacta os abismos e os túmulos de uma promessa violada. Uma aflição de enfâse ressuscitadora. Não me parece que como Adrien Martin, acredites que “Mise en scène is Dead”.
Antes de responder-te devo confessar que espanta-me alguém que alardeia uma média de 350 filmes recentes vistos por ano aparentemente não encontrar tempo para os trabalhos do Jean-Claude Brisseau, do Lester James Peries, do James Gray, do Asoka Handagama, do Jacques Rivette (e sabemos que deste o sr. Martin diz-se um grande admirador!), do Hong Sang-soo, do Paulo César Saraceni e do Paulo Rocha, sem contar o Gérard Blain e um filme como Hana-bi do Kitano (nestes dois leva-se em consideração a arte da elipse contundente e evocativa também como arte da mise en scène, como em Carpenter, Straub, Bresson). Pode ser também que o sr. Martin não tenha visto muito bem os filmes desses senhores, o que por fim corresponde ao mesmo que não vê-los, e nesse caso não há muito o que se fazer.
Falas de um ”poder primitivo“. Talvez devêssemos ir além e pensar mesmo numa ”vocação primitiva“, primeira, da câmera cinematográfica, que é o que de fato chamamos – podemos chamar – de mise en scène. Isto é: essa capacidade de se ver de muito perto e de muito longe as coisas, aquilo que primeiramente Griffith sistematizou e depois Ray definiu como uma microscopia, uma melodia do movimento do olhar (como o Preminger quando filma as relações humanas e as flutuações de poder nestas como se fossem arabescos ou valsas, como o Fleischer quando filma mortes sob a forma de longos rituais sinfônicos, procissões ou liturgias, mas sempre olhando-a cara-a-cara, ao mesmo tempo presente e distante). A visceralidade, a convulsão, a lucidez nada mais são que certas propensões às quais tais olhares se prestam: Fuller mais precipitado que Mizoguchi, Vecchiali e Fassbinder mais precipitados que Sirk e Minnelli, e assim por diante.
O que posso dizer é que tentei permanecer fiel à idéia de que não há nada mais difícil que olhar um rosto e não se espantar diante da sua enorme força vital e expressiva, que só resta à câmera se projetar rumo a essa força (o que se dá também pela impassibilidade ou pelo recuo; cabe à mise en scène, isto é, ao sentimento em consecução, discernir o trabalho a ser feito e fazê-lo), estando à altura das coisas e fazendo jus ao fato de que é o quê se tem na frente da objetiva o que acabará por nos surpreender e nos tocar, seja na interpelação de dois olhares, no intervalo de um gesto ou num silêncio inesperado e cúmplice. E, também, lembrando que não há nada mais difícil que registrar com precisão aquilo que é vital e aquilo que já não é, o que deixou de ser enquanto ainda o era, coisas assim. Se a prática da mise en scène é uma prática, um ofício, um trabalho, e não uma veleidade adolescente ou um capricho de diletante, então ela serviria para dar forma a essas coisas numa primeira etapa e submetê-las a um registro numa segunda. É como encaro a questão.
Insistindo mais um pouco, e coloquemo-nos agora na contemporaneidade, se tal for possível, temos uns últimos resistentes de uma memória, da importância dos Lumière, e assim penso em Oliveira e sei que alguns dos realizadores que já falamos ainda vivem e trabalham, mas também Pedro Costa, o solitário Godard, alguns orientais como Jia Zhangke ou o Wang Bing, outros que tiveram que ir à guerra e desafiar a loucura, o Carax, o Garrel, e não muitos mais. Do outro lado da barricada, esses ritmos flows esvaziados de vitalidade, essas distensões temporais que banalizam e enfraquecem o incomensurável de um rosto ou de uma montanha, das suas relações, um macaquear ostensivo de dispositivos e de catálogos “modernos” para festivais, o “novo” que rapidamente cheira podre. Para Ford ou Vidor um homem era um homem, uma árvore uma árvore, e cada plano estava carregado com esse peso abissal cósmico, poderios e segredos em epicentro e resguardados, onde dois segundos se volviam a eternidade. Hoje uma imagem de 5 minutos de um Apichatpong ou o fragmento de um segundo de um Desplechin parece-me o nada, a regressão triste das formas e da humanidade. Como estar ao lado dos que nos ensinaram tudo, sem os trair, e como andar com as coisas para a frente? Estamos na infância ou isto já acabou?
”A great man is one who in manhood still keeps
the heart of a child.“ (Meng-Tzu/Cimino pela boca
de Mickey Rourke)
Permanecer nos passos de Griffith implica estar na idade adulta da arte, mas ainda resguardando o essencial dos valores da infância (o sentimento de novidade, o calor, a imprevisibilidade). É o que vemos tanto na família pós-nuclear do Le révélateur do Garrel e na Binoche agarrando o Lavant pelo pau em Pont-Neuf como no Losey americano e os filmes da Ida Lupino: em todos os casos é como se a infância fosse preservada integralmente pela força dessa maturidade à qual o cinema ascendeu pelas mãos de Griffith. Ao mesmo tempo uma consciência que a cada filme parece como que recém-adquirida, como acontece com as crianças, age sobre o que cada um desses cineastas possui de singular. São essas singularidades as que ainda atravessam e fazem viver o que há de cinema no meio, ou às margens, da massa indiferenciada de filmes, longe desse “continuum” de histerias convulsivas ou de compostos temporais e sensoriais puramente anestésicos. Fragmento de um segundo ou imagem de 5 minutos, no fim das contas trata-se da mesma coisa, isto é: da mesma vaidade, do mesmo desprezo pelo elementar em detrimento da falsa sofisticação, da mesma imprecisão no ato de se olhar as coisas e medir seus pesos, de se ver e se sentir o mundo.
Talvez a única forma de se estar com os Lumière e o Griffith hoje, e talvez já há um bom tempo, seja admitindo-se de uma vez por todas órfão deles, como Costa e Carax fizeram. Ter a coragem de lidar com toda a desolação e desta forma lançar-se ao que há para ser feito: é essa a contribuição dos cineastas que importam, ou que deveriam importar.
Permanecer nos passos de Griffith implica estar na idade adulta da arte, mas ainda resguardando o essencial dos valores da infância (o sentimento de novidade, o calor, a imprevisibilidade). É o que vemos tanto na família pós-nuclear do Le révélateur do Garrel e na Binoche agarrando o Lavant pelo pau em Pont-Neuf como no Losey americano e os filmes da Ida Lupino: em todos os casos é como se a infância fosse preservada integralmente pela força dessa maturidade à qual o cinema ascendeu pelas mãos de Griffith. Ao mesmo tempo uma consciência que a cada filme parece como que recém-adquirida, como acontece com as crianças, age sobre o que cada um desses cineastas possui de singular. São essas singularidades as que ainda atravessam e fazem viver o que há de cinema no meio, ou às margens, da massa indiferenciada de filmes, longe desse “continuum” de histerias convulsivas ou de compostos temporais e sensoriais puramente anestésicos. Fragmento de um segundo ou imagem de 5 minutos, no fim das contas trata-se da mesma coisa, isto é: da mesma vaidade, do mesmo desprezo pelo elementar em detrimento da falsa sofisticação, da mesma imprecisão no ato de se olhar as coisas e medir seus pesos, de se ver e se sentir o mundo.
Talvez a única forma de se estar com os Lumière e o Griffith hoje, e talvez já há um bom tempo, seja admitindo-se de uma vez por todas órfão deles, como Costa e Carax fizeram. Ter a coragem de lidar com toda a desolação e desta forma lançar-se ao que há para ser feito: é essa a contribuição dos cineastas que importam, ou que deveriam importar.
“Noite” é a tua segunda obra, lembro-me de ver o primeiro filme que fizeste há uns anos, “Ato Falho”, e ali, numa evidente fascinação cinéfila e num pagar de dívidas, já se notavam coisas que agora aprofundas, a fixidez aliada à perscrutação, o sentir de pulso da câmara às temperaturas e às pulsões do que está em jogo e vibra, uma espécie de modulação e envolvência larga que também me remete para o Brisseau ou algum De Palma. Como chegaste aí?
Um diretor, não lembro quem o disse mas concordo em gênero, número e grau, é primeiramente alguém disponível, e essa disponibilidade era algo de que eu definitivamente não dispunha à época do Ato Falho, cujo valor de experiência está contido no próprio título.
Para este segundo curta, tratava-se especialmente de conhecer e entender os atores nas suas intensidades, suas modulações, seus silêncios. Impor uma construção prévia de composição das personagens aos atores estava, portanto, absolutamente fora de cogitação.
No que diz respeito à realização, o experimento consistia em reencontrar nas gravações os impulsos liberados pelos atores durante os ensaios para assim dirigi-los de acordo com o que previa o roteiro, reescrito para se conformar ao que nasceu das contribuições dos atores nesses ensaios.
As influências de Brisseau e De Palma, as quais reconheço, foram mais determinantes na fase inicial da decupagem (que acompanhou os primeiros tratamentos do roteiro) e posteriormente durante a planificação (que passou por transformações decisivas a partir do que foi-se descobrindo dos atores). Fechamos as cenas em espaços bastante reduzidos, os quais deveriam se relacionar direta e conclusivamente à experiência íntima das personagens – o céu estrelado que decora a parede de fundos da boate, espaço ocupado pela personagem feminina; o quarto do personagem masculino reduzido a uns poucos objetos que sugerem as coordenadas da sua existência sob a forma de alusões.
Sobretudo, o que guiou essa concepção foi menos uma questão de escassez que uma grande vontade de precisão – a qual, por fim, pode se confundir à escassez...
O protagonista e o desenrolar da narrativa parecem estar construídos e viverem sobre grandes elipses de uma gravidade a um tempo libertária e perigosa? Todo um passado atrás. Como germinou tudo isto, da escrita até ao trabalho com os actores? Quanto de distanciamento e quanto de biografia?
Queria fazer esse filme como um faroeste do Boetticher, mas onde fosse a moça que interpretasse o papel do Randolph Scott. Essa mesma vontade levou-me a conceber uma forma mais seca, bioscópica, essencial para o filme. Há como que uma redução drástica da matéria, de maneira que ela se choca violentamente com a forma: espaços reduzidos, achatamento da profundidade de campo, movimentos mínimos da câmera, frontalidade declarada do espaço, teatralização deliberada das cenas, importância dos olhares, exploração máxima do tempo de cada emoção etc.
Foi também essa vontade que me levou a uma construção mais lacunar, “perigosa” como dizes. O filme me parece bastante abstrato, mais até do que eu havia concebido originalmente. A idéia consistia em fazer com que essa secura da forma contivesse a parte mais irracional e misteriosa das personagens, para que eventualmente as elipses liberassem progressivamente essas irracionalidades e os seus mistérios. Em função disso, a personagem feminina – a qual vejo como a verdadeira protagonista do filme –, que começa mais aerada, como se fosse uma visão, ganha corpo e eventualmente uma grande presença física, em grande parte pela experiência com a qual é confrontada e a qual vem a confrontar. Já o personagem masculino parece enveredar pelo caminho inverso. De uma forma ou de outra, houve uma contribuição inestimável dos atores para que essas coisas acontecessem.
Quanto de distanciamento e quanto de biografia? Diria que mais do primeiro que da segunda. Há uma parte do filme que é secreta mesmo para mim, e que portanto seria inútil tentar analisar. No entanto, creio que há também uma nudez na expressão de certas sensações, as quais confesso compartilhar com as duas personagens – e provavelmente mais com a garota que com o rapaz.
E, de qualquer forma, o impulso tornou-se irresistível.
Manténs um blog de guerrilha e de paixão há muitos anos, estiveste na Revista Contracampo e na Paisá como critico, fundaste uma revista electrónica, fizeste a escola de cinema, aventuraste-te pela realização. Foste a muitos lados diferentes, viste muita coisa, experimentas-te muito. Que conclusões tiras?
Nada temer, incluindo a solidão.