domingo, 28 de junho de 2015
No princípio, o jovem mais belo e prometedor da terra, o mais jovial que até tinha uma banda de música, a atenção da mais bela moça da mesma terra e arredores, o Pai duro e consagrado e a Mãe gigante, o mundo a seus pés. A guerra estourou e foi o melhor que lhe aconteceu e a tais como ele. E o princípio do fim. Disse imediatamente presente e tornou-se herói sem ter mexido uma palha. O espectáculo, o circo, a marcha universal que antes ou já na chamada globalização precisa destes eventos como o humilde de pão para a boca mimou-o sem amanhã. Só que, afinal é prática velha e espertamente caduca, os mesmos que erguem os mitos encarregam-se de os destruir para a propalada e essencial renovação e frescura que é o óleo da grande máquina não secar.
“When Willie Comes Marching Home” é de 1950 mas fala do mesmo embuste que a televisão ou os jornais impigem a cada semana ou dia para nos reconfortar e fazer sonhar – o novo salvador, o mágico, o revolucionário, a perfeição. Neste pináculo altíssimo de John Ford, e se calhar por coisas destas tão esquecido como já está “Flags of Our Fathers”, o pobre Willie, depois dos louros, do ouro, dos beijos e da ganância - para não dar a receita completa - recolhe-se (ou recolhem-no, o que abriria a moral para as mais cavas intenções e mecanismos ambíguos) na sombra para mesmo assim fazer o que tem de ser feito. E por estar na sombra, mesmo que talhando Homens inteiros ou “assassinos” (pois é, puristas…) como a ele lhe chamaram no auge, sofre da vergonha da não exibição, do apagamento, de não ter estado à altura das espectativas, de não ter feito render as potencialidades e mais-valias que lhe adivinhavam os especialistas doutos (a pro-actividade dos anúncios de emprego e desemprego; credo das messiânicas agências de trabalho (escravidão) temporário). Pobre dele, é gozado e tornado cobarde, os cães puxam-no para a cama de lama dos vermes; já era. Como na metáfora desportiva, tinha um grande futuro mas perdeu-se, foi pena… agora, vamos fazer que não aconteça o mesmo aos miúdos que aí vêm…
Novo herói precisa-se! É o que anunciam as parangonas, os exploradores e fazedores de êxitos, empresários do sucesso e brilho, profetas dos números e da salvação, prospectores da moda, tal como os agentes de compra e venda (sales agents no nosso estrangeirismo superior) e representantes das estrelas e do comércio (cultural, artístico, divino…) do instante. Precisam-se novíssimos! Novas capas! A última velhice que chegou! E eles lá acabam por aparecer a martelo e os pobres Willies ficam mortos por dentro antes da hora a todos destinada. Mas então o filme dá uma grande volta para a miséria dos maiorais continuar a mesma. Mas vamos por partes: Wille consegue finalmente que o mandem para um campo de batalha, sorri e faz sorrir os seus, mas destino ou obra dos Deuses ou Demónios, cai num vórtice que o próprio Ulisses não desmentiria. Sangue a rodos e balas na cabeça, nem vê-las, mas (sortudo e miserável) presencia e tacteia os inícios dos belicismos modernos e genuinamente cobardes, entre mísseis e friezas distanciadas. No fundo, não faz grande coisa – a não ser que falemos da formosa que cobiça ou dos copos que deita para dentro - a acção ou a épica visceral ou cinematográfica não quer nada com ele. Mas, dizem-lhe e aplicam-lhe o rótulo, é o maior dos Heróis. Azar dele, não o pode gritar a ninguém.
Mas… depois da fuga para a própria casa e dos Pais - ou do Pai pois as Mães sabem sempre a verdade e o fundo - e da noiva o olharem de lado, o confirmarem fraco e deslocado, depois de lhe quererem aplicar camisas de ferros… e vai-se lá saber porquê (dava outro tratado ambíguo e conspurcado quem soubesse realmente dizer porquê) vai dar jeito à máquina que tudo ordena, ao Deus rasteiro, elevar novamente ao mais alto patamar quem tinham afundado, quem tinham perdido por ínvios caminhos, evocando se for preciso parábolas do filho pródigo. Se o caçador foi aparentemente sempre presa, se a historieta do Pastorzinho e do Lobo se ergueu à tragédia, se começou a era moderna da verticalidade do embuste, Willie, peão no tabuleiro mais ordinário e indiferenciado, fica um ícone do humano realmente condenado e castrado na nascença. Se o seu sorriso deixa entrever e perceber a maravilhosa constituição, as suas vontades denunciam toda a manipulação. A doçura que restou do berço e o fel do crescimento. Pobre deles e deste fado que Ford pinta liturgicamente e cospe subterraneamente: formação, condução, esperança, adormecimento, morte. De onde felicidade e amor, depois de um tal ocaso, pertence aos dissidentes. Aleluia para eles e para as suas auroras, dizem-nos as grandes obras como os grandes seres.
domingo, 21 de junho de 2015
“Contra a minha própria vontade,
vejo-me obrigado a fazer aqui uma pausa. É difícil saber até que ponto a
natureza deverá impor a discrição a quem testemunhou certas coisas. Pelo menos,
pode-se colocar em causa a legitimidade de as divulgar. Se alguns livros são
considerados muito funestos e a sua venda proibida, que dizer então dos factos
mais terríveis que não são divagações dos homens? Aqueles que são perturbados
por livros nada provam contra os factos. São os factos, e não os livros, que
deviam ser proibidos. Mas o homem está constantemente a semear ao vento, e o
vento sopra para onde está virado, sem que se saiba se daí advirá mal ou bem. Muitas
vezes o mal vem do bem, assim como o bem do mal.”
Herman Melville, “As Ilhas Encantadas”
"Spring in a Small Town" (“Xiao
cheng zhi chun”) erigido em 1948 pelo grande cineasta Chinês Mu Fei talvez fale
mesmo de um renascimento depois das tormentas, tempestades, plantios, e, a
mesma coisa, aprendizagem. Ou então, o quadro final que parece tudo redimir e
rasgar em relação aos sentimentos e enquadramento anterior, crave ainda mais os
segredos e o lado incompreensível de estar nesta vida. É um mistério num filme
tenso, afligido e ao mesmo tempo sereno como o que não tem volta a dar. E
merece cada imersão, transformação e via-crúcis nele. Por todos os motivos
inesgotáveis da carne e do espírito. Narrado pela esposa à deriva, logo nos é
apresentado o marido agónico, depois a jovial irmã dele, o criado fiel, e o bondoso
amigo do marido que vai abalar os adormecimentos, impor a insónia, sem controlo.
As contendas vitais vão estremecer e pulsar novamente, mas, talvez o mais insondável
e sublime (e logo duro) desta jornada, não vão haver anátemas diabólicas ou
duelos fatais, todos se vão querer e amar para lá ou cá da normalização, de
onde as transgressões passionais ou sanguíneas deixam de fazer sentido. Envolto
em ruínas que são as da guerra mas são também as da rotina mais perigosa (o
caminho faz-se passo a passo seguro como os muros que crescem lentamente), será
para lá delas que quem quiser ver acederá a uma salvação pessoal e depois
universal. Narrado pela mulher, é a mais críptica das vozes, pois se é off e se
domina acima de todos, se paira nos ares, o que a câmara vê, cá bem nos baixos,
o que vemos nós, no presente, faz a diferença, e esse choque vacilante entre a
palavra e olhos e rostos e acções une o a posteriori e o agora num indefinível
que é o centro do filme e da encenação. Encenação que vai sempre desvelando e
velando pacientemente o que encontra em frente e em torno, aproximando-se
conforme a temperatura, ora começando nos pés e indo ao todo para a energia se
concentrar e permanecer, ora raramente olhando os céus ou uma lua que, sabe-se,
tem o poder de tornar rarefeito qualquer vulcanismo. Nessa encenação - a
manifestação do natural - o som é fundamental e irremediavelmente
revolucionário. Nunca pela técnica acabada ou não, em si mesma, mas porque a
primeira vez que o vento sopra selvaticamente nas árvores e no resto tem o
mesmo fôlego catártico dos silêncios e do mudo que antes presidiu e destacou os
gestos, não ditos, o dentro. Depois desse vento sucedem-se os movimentos para
fora e tudo parece revolver-se a outro nível, pelo espírito e compreensão que inflige
no físico. De braço dado com a elipse, verdadeiramente ou cripticamente em
acção, não por cortes largos no espaço e tempo, antes intervindo em quartos, em
leitos mesmo, por infinitesimais porções, carregando em paroxismo até o coração
de cada um ser audível, sensorialmente e materialmente. Um cosmos pode ter
acontecido no entretanto onde o cinema corta, ou apenas uma brisa ter passado.
O plano final... não há como não voltar lá, assim com nunca se esquecerá a
esposa e o amigo contra o fundo etéreo que acolhe, comenta, se mantém
impassível e resume a beleza lírica do instante – ali passaram milhares de
anos, o afogueamento da decisão, todas as posições, contradições e gama de
sentidos e sensações; como a passeata pelas águas e brilhos plenos de si pelas
flutuações de quem o atravessa; como a dança, canto e brincadeira infantil
entre a irmã e o amigo que abole qualquer idade. O plano final liga ao Jean
Renoir das razões para cada qual e ao Ozu dos destinos. Sem esquecer Paulo
Rocha, basta ver qualquer das suas obras ou escritos ou ele mesmo a falar ou
caminhar, essa vertigem dos abismos primordiais da criação e da vivência em correspondência
com a arte e a crueza do real na fixidez do plano prestes a explodir. Para
valer por si como cada qual vale por si acolhendo a paixão. Puro, alvo e
assombrado por um fora que para dentro trouxe e trás toda a negrura; por um
dentro que não escapa às imemoriais ambivalências. E a transfiguração a conquistar.
Indecifrável, como todas as grandes histórias de amor.
sábado, 20 de junho de 2015
Uns por aqui altivos e incomunicáveis e secos como polícias de beira de estrada ou no gabinete ferrado. Uns anónimos e sem rastro, lembrança ou encalço tal e qual lugares de estacionamento do parque mais concorrido. Os que tudo entregam, tudo trabalham e dão a outra face não na humilhação mas na obstinação suprema. Os que velam por cada alma nos silêncios do mais acabado escuro. Corpos largados ao vento e à sorte que gastam o tempo permitido a tentar encontrar o chão firme. Os fiéis como estátuas ou genuínos apóstolos e os trementes e pecadores tão legítimos como.
Aprender e apreender o caminho da vida e aprender e apreender o caminho da morte. Saber da treva e saber do brilho da luz. Da justiça terrestre e da plena. O que está escrito nos altos e o que podemos escrever. Do impossível e da vontade. Muitas vezes se vai a Deus, aos seus escritos, testemunhos, mítica, incomensurável fonte. Isto está em “Battle Hymn” e em todos os obcecados e perdidos na procura; filme onde homens torturados que foram à guerra procuram razões superiores para os seus actos e para seguirem em frente; onde imperturbáveis sábios também fazem calmamente a mesma busca trucidante em terra queimada; num entrelaçamento e acordo nos quais se sonda e clama instante a instante a mais greve e eterna das questões, o porquê das coisas acontecerem como acontecem e não como deveriam acontecer. Obviamente que a recente tragédia que ilumina as sombras da vida presente em “American Sniper” de Clint Eastwood é mais um remake exacto e geométrico do filme de Douglas Sirk – de vez em quando há que cimentar as fundações; “Battle Hymn” já era remake de muitos mais e sobretudo de quem pisou e respirou verdadeiramente.
“Isso não tem lógica, regressar à guerra não tem lógica.”, é o que diz a mulher terna e esbranquiçada de medo do guerreiro queimado. “Não procures a lógica, não irás encontrá-la. Nem sempre temos que ter um motivo claro para o que fazemos. É apenas o que sinto.”, responde o dito guerreiro pelas entranhas inegociáveis. Guerreiro a que apelidaram assassino, que virou padre, que não se reconciliou com a paz entregue, que teve de voltar para o caos para algo começar a fazer sentido. Olhando para os outros e para o fundo dos outros, olhou para os desígnios mais profundos, para si e para o terrível e generoso do caminho e da origem aceite. No centro do centro do nefasto, jamais lição de moral ou patriotismo, mas uma concepção da fé que ultrapassa o seu circuito corrente para a colocar ou recolocar nos fundos ou voos da paixão. Esse guerreiro que trouxe à vida todas as crianças de todos os lados, que amou o melhor amigo nas misérias oficiais, que amou a sua mulher incondicionalmente, que amou a outra mulher que sabia não mais poder regressar a sua casa. A agonia da fé porque trilho da serenidade. De uma forma implacável, como bom antigo e revolucionário a sério, o mestre da estilização volve-se como sempre se volveu o mais realista dos cineastas e dos seres – todos os meninos são aqueles meninos e o genial Rock Hudson sua mesmo – o movimento que se pressente e sente verdadeiro tal e qual como se pega em dezenas de quilos de uma só vez ou se beija a face desarmada da Mãe. Sirk e Eastwood sabem que as aparências são só as cascas e a reverberação do impronunciável. Sem dissimulações. Estilhaços e inteireza num mesmo corpo contraditório e pleno. Para sempre.
Em qualquer paralela ou em qualquer meridiano, avesso ou
direito, o fundamental que abole todo o palavreado: nada é certo e urge escavar
sempre.
quarta-feira, 17 de junho de 2015
quarta-feira, 10 de junho de 2015
"Taza, Son of Cochise" (no 2d estonteante, vertiginoso, inclassificável a que tal cineasta nos habituou) é de uma beleza mortal, precisamente porque não a exibe nem faz dela primeiro plano, antes existe pela dependência dos vários elementos compositórios. Ar, montanhas, céus e homens em vínculo extremo e inegociável. Um cegante brilho dissemina-se entre dias e noites, denso e difuso, nessa cara carregada de choro e riso travado ou abrupto; são os grandes corpos revoltos na sua singular manifestação. Muito mais do que o exotismo de Douglas Sirk metido no Western, é ele mais uma vez defronte dos irremediáveis estatutos e tensões que compõe a raça e a sua divisão. John Ford é a totalidade, o humano e o entorno fixo e focado até ao ínfimo e infinito, pelas danças e pelos massacres, para se ver inteiro como no dia do parto. Sirk quebra essa unidade, instala-se na brecha e na falha consequente para observar por dentro os mecanismos, até à detonação e renascimento. (Isto nada tem de transcendente ou de intelectualmente elevado: Ford agarrava dos cavalos até às montanhas e ao infinito; Sirk interessava-lhe era estar entre as castas humanas, mesmo no centro deles, metido.) Daí está intacto o lirismo dos seus grandes painéis posteriores já em aparente civilização acabada. O apocalipse final não contem demagogia ou heroísmo cinemático, antes tragédia antiga. Do mais americano dos géneros à americana melodramática de "All That Heaven Allows", o obstinado e inato orgulho, virar de cara às visões espelhantes. Sem contemplações ou partidos, como as verticais físicas que se impõe e abarcam na magnifica horizontalidade que de tão pura parece ascender ao metafísico. Físico e metafísico, a carne e a alma, o misterioso que a isso preside, intemporal.
segunda-feira, 8 de junho de 2015
A misturada presente em "Across the Wide Missouri" tem muito que ver com as terras virgens, o desejo e o sonho, a comunidade; e daí a transcendência, o heroísmo comum, a vida e a morte completa, o chegar à beira de Deus. Um homem não era só um homem mas infinitos deles, entre baixos, altos e o incomensurável, pela neve e sobre o sol que a tudo preside, podiam viver e morrer desconhecidos e mesmo assim a imortalidade esperava-os; cada um em toda a terra e ela toda por causa de um. Sangue e terra finalmente uma massa complexa e vital. Nativos, forasteiros, franceses, gaitas de foles ou parecido, os índios e os sem nome, isolados e uns com os outros; tal como os territórios ainda não estavam apelidados e o horizonte aberto era o amanhã de cada um como o pão. Bebiam, divertiam-se, brigavam, matavam-se. Não parece muito diferente do que se passa hoje, com todas as gavetas, demarcações, topografias, globalização; e no entanto William A. Wellman nada força e em cada acção ou ritual corre um vigor e uma crença indelevelmente ligadas à pertença e à partilha que as redes e o social de hoje tornou pobre simulacro. Cada acção, ritual, ou gesto, no período em causa, mas poderia ser nos inícios do mundo ou no agora mais perfeito, existe genuíno e indelével, acabado; de onde a reconstituição não procede.
Passa-se todo o arco de acontecimentos, detalhes carregados, odisseia concentrada, centro exemplares e o que normalmente fica de fora sem exemplo. Do matar a sede ao próximo até ao casamento mestiço; bailados idílicos e sujos com pancadaria a fechar e o solitário com o seu pobre instrumento; aprendizagem casual e a chegada das cobardes armações e da cobarde pólvora; caçadas, passagens suicidárias, contemplações, agonias. E os casamentos que não se previam com os crimes rasteiros; os nascimentos com genocídios ligados; beijos soprados ao vento, cavalgadas inauditas, enterros imperdoáveis. Relações universais e intimismo lancinante (as festas da mãe índia ao bebé no quarto com o pai a chegar em silêncio encerram o universo).
Envolto numa forma que organicamente admite tudo, das panorâmicas vacilantes, sulfúreas, sem rasto de perfeição mas antes de consonância com o momento, ebulescentes contra-picados escavados no solo; até aos estancamentos de registo, memória e experiência. Tudo enlaçado por uma voz off que nos chega para cá do ventre e do acordar primeiro e nos encontra entre batalhas e paixões. Isto era importante, uma atenção e uma sublimação da grande natureza e dos grandes sentimentos; e uma atenção outra, aos fundos e à constituição, um cavar nas aparências, desfibramento essencial que aplicava vigilância e ainda mais dedicação. A fúria do cavalo com o bebé no colo só avisa do que podemos violar. A violência e ternura do primitivo no aparentemente irreconciliável que faziam as coisas entrar nos eixos. É no reconciliável deste novo super século, nesta paz letárgica, democracia barulhenta, que nada, nada acontece. "Across the Wide Missouri", 78 minutos, transbordantes e serenos, o estado do mundo e dos seres em eventos e nadas quotidianos. Quantas horas e quanta suposta modernidade nos shows fílmicos dos nossos festivais e quanto realmente mexe?
E que se fixe a força, o acreditar e depois a negra desilusão de Clark Gable. Assim tão sereno e tisnado da vida só o tinha visto em "The Tall Men" de Walsh, sentidos e sentimentos em contacto. Acaba o Pai e o filho a caminharem em frente e a câmara a procurar Céu. Grandezas em sintonia numa relação plena e sintética.
sexta-feira, 5 de junho de 2015
“This Land is Mine” é
um finca-pé onde um crescido aprende ou não aprende a fumar à pressão para que a
realidade não seja tão real; “The Southerner” é Steinbeck em pincel e de mão
dada; de “The Woman on the Beach” os olhares feridos de Ryan e Bennett e
sobretudo uma virgindade aquosa de que é difícil não lembrar como sonho. A obra
americana de Jean Renoir é tão espantosa e pura quanto se pode equiparar à dos
grandes cineastas desse país, nativos ou não, para se perceber que não havia
entre eles cópia mas um olhar e um trabalhar e um sentir esclarecido e agudo. Muito
pouco valor se tem dado a “Swamp Water” (onde também laborou Irving Pichel) mas
a sua complexidade e candura é evidente. Baseado numa história corriqueira como
extraordinária do The Saturday Evening e não num Great American Romance, logo se
escuta o mais americano e Fordiano dos temas musicais que sempre irá amparar ou
aquecer os momentos mais fulgentes. Poderia ser só uma fruição de um tronco
humano e de um cão por entre líquido, bichos, ramagem, monstros orgânicos e
inorgânicos, céu tão alto, o inferno em beleza travestido, a caveira no topo da
cruz, um nenhures, e a experiência já seria inolvidável, o cinema justificado e
agradecido. E no entanto uma amplitude que apela ao grande oceano do Senhor
onde as estrelas são enormes jangadas prateadas; pois vamos encontrar um
recluso que já não acredita na bondade terrestre e então prefere viver nesses
pântanos selvagens que reconhece como outra estrela longe daquela onde vivem os
outros comuns e ditos felizes. Nessas águas negras demais ou brilhantes demais prenhas
de veneno e de morte, é onde essa criatura desenvolve instintos novos e revoluciona
ou reinicia o nosso poder. Quando a certeza é deste modo inquebrantável e
serena, o físico como o outro lado que invisível se diz desdobra-se e vive do
avesso, sem meias medias. Daí os dois milagres maiores de um filme carregado
deles e do seu oposto: quando Walter Brennan, o eremítico, é mordido
mortalmente por uma cobra, morre de facto; elipse, e Dana Andrews, o
bem-aventurado, já abriu a cova para o enterrar e já ascendeu as preces; mas
vai buscar o cadáver e já encontra um estóico são e salvo e pronto para muitas
outras; a justificação nada tem de heróico - há que se resolver a curar, pensar
com bastante força e rezar um pouco. O segundo mais visível e severo milagre é
o da dignidade e o da força bruta e intemporal da verdade – o regresso ao seio,
plenitude sem antes ou depois, amor. Muito se erra e muito se perde e foge e o
encontro tem de estar sempre ao canto do coração. É o que mais nos diz esta
fábula carregada de sorrisos envergonhados e cheios e centrais, bailarinas
etéreas resgatadas à lama costumeira, areias movediças mais consequentes que
mil martelos oficiais da pobre justiça, bailados estonteantes entre carne e
suor e fingimento, inocentes a leste do paraíso, baladeiros apaixonados e
assustados sem culpa, erradas culpas imemoriais, buscas de tudo ou nada pelo
companheiro para lá de animal de estimação, ressurreições e limpezas, reencontros
e absoluto. E tanto mais, tanto que não pode ser dito. Água, ar, cimo, razões, entendimento.
Não são as bases ou fins de algum evangelista bem-intencionado mas sim do
humanista convicto que não cega nem cede à aparência. Fundo, muito fundo. Como
esses rios e mares e fúrias que, como o vento, o fogo, sopro, correm por onde e
como querem. Sempre e cada vez mais.
quarta-feira, 3 de junho de 2015
O máximo de leitura com
o tempo adequado, a distância e a composição exacta e assim evidente, a
conservação do imperscrutável, o humano como princípio e fim na sua relação com
o meio – antes partir do que coçar, em 1928, já John Ford utilizava todo o
manancial a que se apelidou de clássico nos anos 40 ou 50 do século passado, de
onde a sua selvajaria, o indomável, nunca este na violentação formal ou no alarde
mas antes do lado da crença (antes ainda da ideologia). “Hangman's House” abre
em cenário de oficiosa guerra e cheiro a pólvora mas logo parte para as
paisagens idílicas da Irlanda, entrando lamentavelmente noutra guerra mais suja
e covarde, a da pequena mesquinhez, mal e poder exclusivo.
O primeiro longo plano para Victor McLaglen é
mais um abraço de admiração do cineasta, onde se pode apreciar o colosso da
bondade, mas tudo começa no interior a vibrar e essa presença impassível grita
que tem de matar um homem. Quando assim se grita, foras e dentros estalam. A
limpidez começa a esfumar-se, irrompe água e isolamento, logo depois o fogo que
a apaga, e uma consumição de visão dos infernos com os mortos de cada um a
pularem de alegre vingança dentre libertação de cadafalsos e humilhações. É
aqui que realmente se deu um encontro com F.W. Murnau, porque essa mansão, as
suas linhas, arcos e ar de terror tem a mesma constituição dos castelos vivos e
monstruosos e sedentos (mesmo que imperturbáveis) dos do alemão; e McLaglen é
um Nosferatu que em positivo ou mantendo o negativo - pouco interessa pois
estamos no terreno plástico, instintivo e abstracto do mal – vem vingar e
espalhar certas coisas que se pretendiam esquecidas. Mas Ford é Ford e a
restituição e devolução é feita de outra maneira, não como fim na danação mas
como justiça demencial porque obstinada, intemporal e a ferros tirada. A ferros
pois toda a lógica, causa e efeito, toda a coerência narrativa supostamente
alicerçada na realidade que o cinema costuma seguir, todo o reconhecimento e
cópia-conforme, tudo isso é vergado e, agora sim, assombrado para que se
perceba que há limites que não se devem transgredir e que compete ao verdadeiro
gesto cinematográfico como ao verdadeiro ser que respira livre cometer os
massacres certos para que o bem possa ainda brilhar ou espreitar dos escombros.
O par jovem prometido e devastado, a morte do
colossal carrasco, o diabo na terra idílica, o encapuçado de sorriso largo e
mão generosa (chamar-se Citizen Hogan é tão afirmativo e representativo como
hoje anacrónico e provocador). Isto seria o que estava no papel, Ford, na sua
tradição, rasgou e baralhou na certeza que o caos da premissa tenderia, ainda
antes das grandes rupturas e violações civilizacionais, antes da degradação
política do contemporâneo galopante e cego, para a origem. Mesmo que nesse
turbilhão fosse parcial pois em sintonia com os das margens, ou por causa disso
em primeiríssimo lugar. Da cena mais bela desta jornada do pó à luz: a
digressão em sonho pelas névoas e águas da salvação nessa barca e nesse éden por
que passaram almas de Mizoguchi ou os meninos assustados de “The Night of the
Hunter” ou os amantes perfeitos de “Sunrise”; até ao incêndio final perpetrado
pelas línguas de fogo do firmamento. O que limpa e o que arde, do bem ao mal e
a convulsão, cantos e gritos. É essa alternância que é via da existência. E o
acreditar. Toda a criação.
terça-feira, 2 de junho de 2015
"Nothing Sacred" é, para lá da sátira e da bílis
jornalística, social e inumana natural, um dos mais realistas embates com o
amor a que o cinema se entregou. Porque absolutamente espancado e coberto pelo
sangue da loucura que corre nas veias e carnes e têmperas dos amantes. A mulher
que sabe que não vai morrer mas diz que vai; o homem que se aproveita disso e
passa a nada saber; e a fama e proveito mútuo que descamba na lama quando se
começam a encontrar sozinhos e a olharem para dentro dos olhos um do outro sem espectáculo e sem assistência. Incalculável tempo, arco, espaço e história e de tal sentimento não há nada a prever ou a educar. O homem, a mulher, acabam ao
murro um ao outro, só para poderem esconder-se do mundo para o resto da vida
deles. Tão patético como inaugural. Nessa irracional demência dos muito
francos. À maneira de parentes fiéis e sem regra chamados "The Wild
Palms" ou "Help Me Make It Through The Night ". A verdadeira
composição que descarna a mentira da normalidade, essa inevitabilidade que é
trilho para o sublime. A toda a hora, a todo o dia, num chão qualquer, quando
fechamos os olhos da respeitabilidade e do auguro adulto que nos embrutece.
Sempre a cores demenciais e em movimento estonteante. William A. Wellman, o
durão, teve a coragem ou simplesmente a lucidez. A Short Time for Insanity.
Aleluia!
(Aqui fica a minha contribuição para o mês de Maio do Cineclube do Porto. Bem hajam!)
"Um Adeus Português", João Botelho, 1986
"Um Adeus Português", João Botelho, 1986
João Botelho tem já uma longa carreira em mais de trinta
anos, com objectos muito diferentes e constantes desafios, tendo estreado
recentemente aquele que poderá ser considerado o auge do seu interesse pelo
artifício, pelo grafismo, pintura, enfim, um investimento no chamado
"falso" para desse modo atingir uma emoção que advenha do cinema como
conjugação das restantes artes, num auguro de gesto total que dispensa a
invisibilidade clássica e os seus mecanismos realistas. Mas o filme que aqui
nos trás hoje é uma página rara e delicada, o seu melhor; está bem longe de
"Os Maias - Cenas da Vida Romântica" e nem o constante choque entre o
passado e o presente, a guerra e a paz, preto e branco e cores, consegue anular
o profundo humanismo, calor e suavidade (e calor e suavidade tão grave em certos
momentos) que se desprende de "Um Adeus Português", que só terá
comparação com outro seu filme secreto e intimista feito já no início dos anos
noventa, "Aqui na Terra".
Na altura alguns lembraram-se daquele que porventura também
será a obra mais lancinante de Yasujiro Ozu, "Tôkyô monogatari", e,
de facto, não nos podemos deixar de lembrar dessa visita de um casal assente
longe dos grandes centros aos seus filhos citadinos e do desfasamento que tal
encontro revela quando Isabel de Castro e Ruy Furtado deambulam tristemente por
Lisboa. Aqui como no Japão. Do Norte Português parte esse casal em direcção à
capital, para matar saudades e para apaziguar almas, mas o que aí encontra são
os seus não lá muito bem na vida e cheios de afazeres, embrenhados no ritmo
moderno e numa luta pela sobrevivência que adormece os bons sentimentos de cada
qual. Particularmente exemplar é Alexandre, subtilmente encarnado por Fernando
Heitor, fantasma envergonhado pelo seu ganha-pão, da sua inércia abstracta, que
não o deixa como a tantos outros expandir-se. E assim, esse périplo ou essa
peregrinação, destapa tanto as feridas da guerra e do passado português como do
falhanço da sua revolução. E a acalmia, como o abafamento e o silêncio
incómodo, fazem depender os tempos uns dos outros rumo à evidência de um
destino conformado que teima em não virar.
Além da beleza, mesmo que trágica, fluente ou assombrada que
assoma momento a momento, não esquecendo uma montagem que não quebra mas antes
unifica, vale a pena insistir: Isabel de Castro e Ruy Furtado, dois dos nossos
maiores actores, são a imagem, o corpo e o peso da grande gente lutadora e da
grande tradição humanista e panteísta antes do descalabro social, cultural e
artístico do contemporâneo e do virtual feito moda. O filme trata muito disso e
o aparecimento do grande cineasta António Reis em trabalhos do campo só
relembra a questão da verticalidade humana ao invés da corrupção fácil. Na sua
aparente pequenez, uma verdadeira grandiosidade. A permanência a si, essa fidelidade.
"December 7th", John Ford e Gregg Toland, 1943
As razões que levam um homem a ir ver a guerra são verdadeiramente
obscuras, alguém o disse certa vez. John Ford, o grande cineasta americano,
foi-o algumas vezes, e não só pela potência construtora da ficção.
"December 7th" é um caso paradigmático e no seu contexto bem
enigmático. Depois das grandes obras que lhe deram o reconhecimento e o
sucesso, de "The Grapes of Wrath" a "How Green as My
Valley", Ford (acompanhado pelo não menos guerreiro e sensível Gregg
Toland) interessou-se, em plena segunda guerra mundial e nas convulsões
inerentes, a ir ver in loco como funcionam tais mecanismos, pretensões, enfim,
o grande tabuleiro da existência humana. Mas, coragem maior e abertura à
complexidade infinita das coisas e do mundo, da natureza e do homem nela, não se
limitou a mergulhar de cabeça nos abismos da realidade - como também mergulhou
sem qualquer rede - antes efabulou ainda a partir do que viu, ouviu e sentiu
para assim as coisas atingirem não só a ferida do instante agudo mas também os
ecos e reverberações do grande arco da História, mitos incluídos. Do plano
inicial de um avião desfeito até às bandeiras finais ao vento da união,
monte-se em conjunto e perdição as crianças asiáticas a cantarem o hino
americano com o rosto de um bebé ligado a uma campa do cemitério - é a
eternidade, as suas voltas e revoltas e a impossibilidade de juízos
demagógicos. Pois demagogo ou propagandista é tudo o que este "December
7th" não é. É sim, como noutro filme duro e terno realizado dois anos
depois, "They Were Expendeble", uma travessia nos destroços nossos. A
encenação, o lado descritivo, arquivista e até romântico de querer saber do
próximo e de como sopra o vento comum no outro lado da terra, por inteiro -
cada árvore uma árvore e cada choro ou riso um choro e um riso sem truques -
olha a massa do real de frente e não lhe nega qualquer segredo ou
incompreensão. Todo o Cinema de Ford, o muito Humano. Para lá ou para cá da civilização domada.