sexta-feira, 29 de dezembro de 2017




leituras - 2017

Estava aqui a tentar escrever algumas coisas sobre a folha e o livro que mais gostei em anos e algumas dúvidas estúpidas ou não puseram-se a dizer-me que talvez devesse falar de Agustina Bessa-Luís, de Thomas Mann... sei lá, de Tolstói.

Mas vou falar, enfim, divagar, sobre “1933 Foi Um Mau Ano”, sacado da vida de John Fante por ele mesmo e apenas revelado postumamente; Fante, o ídolo de Charles Bukowski, e também ele, dizem, um tipo instável, com gosto pela pinga e pela vadiagem, carregou a sua escrita de dúvidas existenciais antigas, fastidiosas relações entre filhos e pais e o resto da equipa, a importância do modo de vida, traição e fidelidade, as origens familiares, o catolicismo... mas com um sopro de vida, de carinho e de humor tão terno como descarnado e por isso violento que ler-lho é estar num qualquer bar tarde na noite ao lado de alguém muito jovem mas já tão calejado que pensamos que esse sabe tudo e possui o segredo fundamental.

A Agustina visionária... um Thomas Mann fáustico... o Tolstói lúcido demais... mas o que Fante consegue nestas linhas que à primeira vista qualquer um poderia escrever nem é fazer recordar a infância, impor a nostalgia como uma ferida aberta sem chances de cura, trazer a saudade com lágrima... o que ele consegue, pelo menos para mim, é que tudo isso volte a ser, a estar, presente e até irremediável, mesmo que por uns breves segundos mais o respectivo bónus de ficar a ressoar. E depois cada um pode voltar nesse hiato a calçar as chuteiras ou o vestido de fada das bailarinas minúsculas... voltar a estar com o melhor amigo nos balneários velhos como o mundo do antigo estádio 1º de Maio em Braga à espera que o sisudo treinador anuncie o resultado dos treinos de captação e perceber antes da idade o material de que é feita a angústia... voltar a correr para o jogo de andebol no ABC de Braga, esbarrar com o Carlos Resende e ficar a pensar que se esbarrou com Deus e que é pecado para logo se escutar Deus pedir desculpas... assistir ao Sporting x Benfica da época 1993/94 e ligar e desligar a televisão à espera de melhores minutos até o ratinho eléctrico João Vieira Pinto sacar as mais belas fintas da história, os movimentos mais loucos e graciosos, a perfeição de um desenho animado, o sonho... sua alteza das nuvens Michael Jordan no seu último céu pelos Chicago Bulls em 98, bigger than life, uns míseros pós de tempo e aqueles cestos seguidos, o roubo de bola ao carteiro Malone, o disparo no tudo ou nada, a beleza em explanação, a décima sinfonia de Beethoven, o milagre com provas... a primeira vez que vimos a nossa Becky Thatcher no pátio da escola comum e as maças vermelhas no rosto a formarem o prenúncio do novo mundo.

John Fante, argumentista falhado, de bibliografia escassa, sempre a afagar, a tentar safar, conseguiu devolver o que se julga impossível e incomprável pelo menos a um, e assim já não há dúvidas estúpidas ou macaquinhos no sotão que sobrevivam. Full of Life, dude, thanks very much.

E um bom 2018 para todos!

sábado, 23 de dezembro de 2017



"The Amazing Transparent Man", Edgar G. Ulmer, 1960

The Amazing Transparent Man” é um aviso terrível à humanidade e uma amostra de todos os nossos limites inexistentes. Aviso que junta a era moderna, a ciência, a malfadada realidade virtual, as guerras mundiais (as frias e todas as cobardes incluídas), a sede do domínio universal, o fim do mundo como objectivo primeiro. Amostra que só um realizador do génio, da clareza e do inventanço de Edgar G. Ulmer seria capaz, utilizando o visionarismo de Max Reinhardt para na contagem decrescente rumo à explosão e ao buraco negro absolutos que cavalga em salas claustrofóbicas e em espaços abertos tratados com as mesmas coordenadas espaciais e pressão atmosférica (mesmo que ainda se sinta a respiração da natureza indiferente), nos fazer ver atomicamente os nossos esgares abjectos, o nervo futurista, a loucura da posse e do apelo à condição de Deus. Ulmer persegue e fixa um bailado de almas penadas que tanto odeiam o seu poder como o querem extrapolar sem objecto nem propósito; como a luz e a sombra, o cientista que viu demais e se cegou e o Major que liga Hitler aos actuais líderes norte-coreanos e norte-americanos; um Fausto que por uma vez não vai vender a queimada alma visto um breve lampejo de luz certa e as mulheres trancadas que se sacrificam num reduto de derradeira pureza. A alma, o invisível, e a matéria e o nada do tudo, é essa a luta primordial desta empresa aflita que apenas parece adiar a lógica reverberativa dos ciclos terrenos e dos esquecimentos. Mas a redenção, a luz maior, uma esperança ousada, talvez esteja mesmo na maneira como Ulmer transmite a dignidade do homem, lembrando a sua presença, o seu peso, a sua possível beleza, o poder transcendente, não com glorificações vácuas mas com o poder do cinema, o seu ofício: estando ele transparente, invisível, morto, nada, ainda é tratado com o campo / contracampo da realização clássica como se ele continuasse inteiro, com corpo, rosto e olhar perto da síncope, é esse momento sublime no carro rumo ao roubo que despertará outras consciências mortas. Depois há aquele guarda da mansão demoníaca que baixa a arma porque acredita na palavra da mulher, o sacrifício de Fausto e o cogumelo aninhado, o diálogo final entre a tentação paradisíaca e a soma de todos os medos. No centro do degredo máximo, Ulmer ainda concedeu todo o espaço, todas as escalas e tempo ao ser, concedeu-lhe um coração para uma tal da alma, não acreditando no nada. Um valente.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017



"Trouble with the Curve", Robert Lorenz, 2012
 
“Trouble with the Curve”, o filme da saudade de Clint Eastwood como actor é, ao contrário do que se costuma dizer sobre os grandes ou pequenos filmes onde o desporto tem papel relevante, sobre beisebol. É esse desporto americano fundador que nos seus detalhes minúsculos ou na sua beleza secreta nos fornece chaves e formas de ver as ténues cambiantes que tecem a vida e as suas escolhas, o fluir e os impasses. São os movimentos do corpo, da bola, do taco ou da dança, a maneira como se calculam os tempos e se tem calma, a precipitação necessária na batida ou a lucidez nas curvas que nos podem ajudar a continuar o trilho ou mesmo salvar. E tudo isso é passado para o lado do cinema numa realização absolutamente em conformidade com o jogo, absolutamente imbuída nos jogos dos pormenores e do que se tornou invisível pela banalização dos sentimentos primeiros, desvelando e revelando lentamente o cantinho tímido e inacessível do esférico ou do rosto que se acha repentinamente, do estômago sobressaltado que se reflecte neles, o plano-sequência partilhado. Clint Eastwood está contra as máquinas das estatísticas porque elas já não permitem ir para os pátios das escolas observar essas batalhas e essas graças igualmente fundadoras.

Trouble with the Curve” é o filme de um velho rezingão que já não vê quase nada dos olhos mas percebe tudo com o seu célebre instinto, mal consegue urinar, bate nos homens que se querem aproximar da sua menina de trinta anos e parte os móveis que lhe aparecem pela frente, mas que mesmo assim acredita ser o maior do seu ofício; só que também é no mesmo palco que ele, o olheiro de beisebol antiquado e senil, percebe que o miúdo sensacional que está quase a ser a eterna promessa só precisa de ver a Mãe para encarrilar; e será ainda ele que manda a filha e o jovem que um dia foi sensacional e que já nem eterna promessa é para fora do seu domínio e para a noite das paixões... velho ferido que certo dia teve um encontro com o Mal e não mais soube lidar com essa filha, disfarçando o demasiado amor com birras e distância duvidosa... velho que canta no cemitério para a falecida mulher versos sobre o único raio de sol e a felicidade nos dias cinzentos e lhe oferece cerveja... e que tem a sorte de ter um anjo da guarda a velar por ele no recanto da sombra sagrada, fabulosa personagem e aura de John Goodman que mais uma vez na obra de Clint funciona como fonte de purificação para a violência necessária e sem a mancha da maldade. Velho que se rodeia de outros amigos que se preocupam com ele sem o dizerem por aí além, nomeadamente aquele que acha que Sammy Davis Jr. é mais bonito e melhor actor do que Robert Redford por isso mesmo e Ice Cube mais versátil do que De Niro por saber rapar...e todos os outros que irritando-se mutuamente vão prolongando os encontros, e ele que nada escancara mas jamais os dispensará. E por entre tanta contradição, sentimentos abafados e trajectórias imprevisíveis, assiste-se à imposição, à nascença do amor como partículas sedentas de um menino a mexer-se no ventre da sua Mãe tempos ou segundos antes de vir à luz do mundo.

Trouble with the Curve” é uma passeata e uma fuga de redenção não pedida e que mesmo assim ou por isso se impôs, onde o som puro que Clint ensina a filha a reconhecer de olhos fechados tanto serve para se perceber onde está o Ouro da next big thing como para destruir os simetrismos tortuosos das expectativas e do cada vez mais nefasto: «É o p'ogresso, estúpido!»; a filha que anda perdida no mundo dos advogados para corresponder ao esperado e conseguir dar a prenda que pensa que o pai quer porque este se enganou num dia mau contra a história desse desporto que ela sabe de cor e salteado tanto como percebe da acção e da prática; o velho que diz à miúda de trinta anos que cada um se deve meter na sua vida privada e profissional mas que lhe vai subtilmente indicando a quebra das distâncias de segurança para acabar por dizer ao mundo inteiro que do que ele pensa que sabe mais do que todos sabe ainda ela muito mais; enfim, o puro som e movimento do instinto, do selvagem, da reacção, dos namorados envergonhados, da aproximação lenta e sem volta a dar, a impor-se aos números, às agências de rating, aos contratos encapuçados da sociedade.
 
No ocaso, o ouro reluzente da próxima temporada estava nas traseiras dos despojos onde ninguém vai espreitar, tal como o problema do que aparentava ser a próxima estrela só se via despojando todo o barulho do espectáculo, assim o mesmo para os passados cheios de voltas e reviravoltas e acidentes do trio magoado que se foram endireitando quando foi desligado o canal da dissimulação e se escutou o analógico coração; o mais puro dos sons e a beleza última ou primeira que é a mais árdua de conquistar por razões de escavação funda que faz com que tantos desistam a meio ou nem começem; quando se desligou a televisão literal e a televisão do medo de olhar de frente que hoje se cultiva nas instituições oficiais, foi possível o cristal bem delineado, mesmo até perfeito e por vezes cegante, essa explosão nos créditos com Ray Charles a fazer ver. E com certeza até o miúdo arrogante poderá ser desculpado e ser amigo do génio dos amendoins, depende de como entender essa curva do seu percurso, pois não é esse o imperdoável, o imperdoável ficou para sempre enterrado e mesmo a polícia e a lei compactuou – lição do humanista Donald Siegel. Robert Lorenz, que tanto andou ao lado de Clint em lutas e transplantes anteriores, utilizou todos os seus ensinamentos e ainda uma lenta aproximação das coisas e dos seres entre si e com o mundo que necessariamente sentiu dessa caminhada. Uma câmara que vai flutuando com a beleza do genuíno e com a beleza de uma bola curvada do beisebol, na gravidade mais equilibrada e inaudita. Por mais uma vez, tudo se une e o acaso faz parte do todo. Belo como a continuação final.
 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017



"Lucky", John Carroll Lynch, 2017

John Carroll Lynch, fabuloso e discreto actor secundário americano, reconheceu um parceiro e com ele olhou e falou para os altos. “Lucky” abre com a velocidade de um cágado perdido e fecha com outro cágado ainda mais perdido ou sempre achado, um velho homem entre cactos gigantescos e mais do que triássicos, o pó do deserto de um cansado Arizona de estúdio de cinema que será sempre a América mais realista, o silencioso cosmos dominado e aceite pelo sorriso ultra jovem de Harry Dean Stanton em fusão de todos os papéis que são a sua vida. Entre esse princípio e esse fim, uma jornada de curiosidade e aceitação que de surpresa em surpresa tem de convocar todo o cinema americano para abrir para todos os lados, todas as nações e pessoas, todo o outro, todos os filmes e todas as buscas que é necessário fazer na hora negra ou no eclipse sem aviso. Ao som de Red River Valley trauteado em serena harmónica pelo próprio Harry Dean desenham-se as deambulações e os horizontes Fordianos em questão, como nos seus tantos filmes em que a trama é apenas isso, um aglomerar de humanismo redentor que pode ser tão violento como terno (massacres, bailes, nascimentos); de Hawks a metafísica concreta, uma coisa é, outra coisa não é, e cada um com a sua coisa, a bem ou ao murro; e por todo o lado e por todas as memórias e ecos, “Paris, Texas”, dos telefones do lamento da incomunicabilidade aos engates ainda possíveis e concretizados só com o olhar e o coração em surdina e lancinantes, a velha Europa e o sonho americano...; o David Lynch das histórias simples e surreais...; ainda, surpresa maior e ponto de comoção absoluto, Chavela Vargas (o vulcão emotivo que contrasta com o vulcão contido de Harry) e o seu Volver, Volver que no meio de Mexicanos, as suas fiestas e mariachis recorda os outonos tão terminais como cintilantes do poeta Sam Peckinpah (ou Cimino), apaixonado pela diferença e por todas as coisas belas e não tão belas à primeira vista... voltar, voltar... ao berço de criança, à juventude ou ao outro lado da vida... e é toda a narrativa, todos os acontecimentos e todo o incomensurável cosmos do rosto desse homem sem idade. O cosmos e o indecifrável do universo para lá da linha do horizonte, o cosmos e o indecifrável de uma vida infinita nesta terra, nessa medida se equilibra o filme até ao descomunal sorriso que se abre como flores na Primavera, unindo Buster Keaton e o outro filme mais belo de 2017, “Paterson” chamado. Cinema americano e o mesmo visto pelos outros, muito menos cinefilia do que a realidade e a ficção mais uma vez em pé de guerra, concreto vs alma; tudo pode ser belo, o miraculoso swing de Joe DiMaggio, um atordoamento de Miles Davis, uma briga de amigos e o passo seguinte, uma montanha de Ford, Juan Wayne, a cultura e a arte, aquela balada de Johnny Cash, um cigarro e as pequenas coisas. O vazio e o essencial. Todos os tempos e todos os lugares. “Lucky” é um filme feliz.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

"Bloodbrothers", Robert Mulligan, 1978


A montagem paralela que vai fluindo irresponsável na abertura de um dos Robert Mulligans da safra de 1978, o implacável e cheio de dúvidas “Bloodbrothers”, só parece celebrar a vida, dizer às pessoas presas no tédio e no cagufe do quotidiano que a aproveitem sem consequências ou julgamentos. Ou seja, essa correria dos pais ainda mais malucos do que os filhos, os eternos engates sem idade nem condição, as zaragatas mútuas ou os conselhos sem exemplo, fazem parte do utópico fogo da liberdade que a noite pode oferecer a alguns. Só que pela manhã, nesse lar agridoce, as brincadeiras furiosas e os excessos são ainda a tentativa de promulgação do ontem, muito sentimento que soa excessivo, muito barulho que parece querer iludir uma dor; da casa para o mundo, um passeio de domingo prometido e o chefe de família anuncia que comprou o terreno para o eterno descanso, fazendo disso a coisa mais normal do dia, descansando-se já sobre o piso, todos menos as mulheres aflitas que suportam os desequilíbrios e pressentem a tal agudeza calada, tudo ainda a fremir do espírito da noite que aqueles homens prolongam para o dia que se quer composto.

Curioso que Mulligan comece e acabe o filme com planos aéreos, ampliando vários caminhos, encruzilhadas, possibilidades, mistérios, mas também o dia e a noite, respectivamente. O que se passa durante toda a metragem cá nos baixos já foi mil vezes visto, revisto e contado, por isso mesmo só pela intensidade dos fabulosos e doridos actores se pode acreditar mais uma vez, ver o futuro, perceber e pegar nas pontas soltas e nos nós intrincados, focar mais nitidamente o déjà vu, aproximar o mapa, fazer alguma coisa com a oferenda - “Bloodbrothers” é um emplacar de enquadramentos estremecentes. E recordar o início para se admitir que tudo poderia coexistir de outra forma, a noite com o dia, o excesso com a seriedade, que não se era menos honesto.

A narrativa de Richard Gere, o filho na hora da decisão grave do modo de vida oficial e do semblante a manter, encontra-se emparedada entre a inocência do seu amor pelas crianças, os bares manhosos aonde ainda não perdeu essa inocência (vive em terreno ordinário e no brilho magnífico das estrelas, hora onde a noite encontra o dia lá pela madrugada, a sua relação com a lindíssima ruiva) e a questão – que alguns poderão chamar honra – de seguir o emprego dos pais e continuar o legado - «um homem que não gosta do que faz não é nada nem tem respeito por si próprio» diz-lhe o progenitor que parece o amigo mais louco. E aqui já estamos perto de John Fante e da ferida do american dream (remake de “The Brotherhood of the Grape” e talvez de “1933 Was a Bad Year”), pois temos toda esta cisão e o bifurcar a mata-cavalos, mas o realizador, como o escritor, não tomam partido – a cena em que Gere conta aos miúdos o conto dos irmãos de sangue é tão bela e tão terna como a chegada à construção civil e a experiência da vida de trolha prometida ao pai. E essa é a poética e a moral com que tudo se reveste, as coisas boas ou as coisas más não têm rótulo nem são estanques, dependem sempre do momento, da pressão do tempo ou do sangue – assim a realização, silenciosa ou de orquestração esfuziante, de olhar impassível ou puramente funcional, conforme a incontestabilidade do presente.

Richard Gere vê nos mais velhos o futuro e no seu irmão tão novo as promessas, assim como os adultos praguejam, cometem e recordam os mesmos erros que os novos mas ainda estendem a mão no momento em que gritam, como no final em que o pai insulta e protege, bate e incentiva. Ínvios são todos os caminhos e tudo é questão de intensidade e de entrega à vida – mais uma vez e sempre o paraíso apócrifo inicial e iniciático – e o final é tão incerto como generoso, não menos seria de esperar do coração de Mulligan. Filme corrido entre bares e lavandarias, quartos e hospitais, nada de extraordinário aconteceu, todos já passamos por coisas iguais ou idênticas ou já escutamos parecido; alguma coisa realmente aconteceu e vai mudar pois o filho viu coisas com os olhos bem abertos e o espírito totalmente disponível, rasgado, do mesmo modo que qualquer espectador teve oportunidade para fazer do mesmo. E mais uma vez uma obra tão simples e que muitos podem considerar tão naif e básica se pode tornar revolucionária. Questão de entrega, nada menos do que perder os medos imemoriais, nada menos do que a definição pura de humanismo.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

"The Stalking Moon", Robert Mulligan, 1968


Em 1968 Robert Mulligan já andava a convocar a lua para presidir a certas irresoluções humanas. “The Man in the Moon”, fogacho de despedida puro, dorido e aconchegante, sussurrava sobre as dores invisíveis de crescimento, do encanto e da marca Sulista, de Elvis, da magia transformadora de olhar na direcção do firmamento e aguentar as pálpebras e o medo desconhecido sem desvios; projéctil completamente inaudito nos hip-hops e nos speeds dos anos 90 que em gesto de fascínio intergaláctico recuperava a humanidade e a inocência prestes a serem devoradas pelo golpe da globalização em voga. “The Stalking Moon” anda pelos terrenos e por algumas formas do Western, mas muito longe das suas convenções. Abre com a ferida do nascimento da nação em causa, acarreta as vinganças e os tormentos, o sangue ruim e o traçado, e fazer uma viagem longa demais já envolve vários bilhetes, carruagens, comboios, tranfers e escalas. Até ao final essa ferida imemorial, da barriga da nação, e a vingança sua filha, cobrirão a narrativa e a pintura com a sua têmpera e a sua índole, uma peste fora de radar, mas o centro e a razão desta fábula é a Casa.

Logo depois do momento grave em que o soldado retirado de Gregory Peck pondera até ao fim dos seus dias e convida a alva e loira Eva Marie Saint a ir viver para a sua quinta juntamente com o rapazinho procurado, todas as chacinas que circundam o momento fulcral da chegada a casa são as agruras do merecimento, as justificações de uma paz, as incompreensíveis irresoluções humanas que tanto pasmam a lua. Toda a banda-sonora mete em jogo essas oposições de maneira sumptuosa e clara, os metais crispados e a pedirem sangue como ferro fundido contra um corpo desnudado em plena tortura estarão constantemente a ser silenciados pelos sininhos, xilofones, vidros translúcidos, aves do riacho do paraíso e magia natalícia do dentro. No fim, os sentimentos de cada um de nós irão decidir o vencedor. A chegada desse trio que clama família e a será ou não será como José, Maria e Jesus de certa época é um momento perfeito que tem lá dentro todos os aniversários, mortes, Páscoas, ressurreições, nascimentos, o casamento ou o derradeiro exame escolar; casa encantada, lar doce lar, com a suavidade do olhar cândido e terno de Mulligan que sabe que tais perfeições e ousadias cobram o bilhete mais longo e mais duro, ou a visão mais desfocada, à imagem do primeiro dos planos de dentro para fora da casa, puro quadro abstracto ou impressionismo sôfrego, embrião em formação com os malditos dos metais à espreita do aborto. Continuação: a câmara de Mulligan continua a fluir suavemente, Peck chega da primeira ronda que antecede o sono conciliador, e a visão é ainda mais absoluta e original, com o fogo da lareira para derreter o que houver para derreter, a luz amarela para resistir ao negro da noite, o chamamento caseiro. Lá dentro, comida feita e prato na mesa, o resto são ainda conquistas e lições paternas, astúcia e gesto secreto maternal, a casmurrice infantil.

Peck, tal como Mulligan, devolveu todos os agradecimentos e atenções, e ainda os liberta mais, pedindo-lhes para correrem soltos, conquistarem vales e ganharem montanhas em busca de todo o horizonte, bruscamente ressurgindo Heidi e seus pares. Eles acedem, a magia espalha-se, flutua, meninos e meninice na terra dos sonhos adiada. Mas, sempre o mas destes contos, como existem leis e fronteiras, físicas e espirituais, tanto nos livros como nas raças, nos homens selvagens como nos intelectuais, o próximo plano já contém escarpas, nevoeiros, trovoadas, ausência do céu e a casa ameaçada. E é nesse espaço belo e mítico transformado em impiedosa arena que as sombras e os fantasmas, as heranças e o mal adulterado lutarão contra a maior das promessas, tentando-se salvar do calvário o possível para uma nova primavera. O ladrão entra no castelo conquistado e urge resgatar a luz sacra. A lua roubada a perfurar o opaco e a velar por todos nós. Como a tal câmara e os restantes recursos de cineasta deste humanista lúcido e parcial que vai sempre mais um bocadinho além da reza. Que por vezes força a barra para arrancar do inferno a semente da caminhada. Ainda outro género de melodrama que não se contenta com os signos e a estética cristalizada. Como a história de amor e o amor efectivado que valeu todas as consumações gráficas desse encostar de cabeça de Marie Saint a Peck no decurso dos agradecimentos e dos carinhos sussurrados, ou do póquer aceite pela nova criança. Mulligam é outro tipo de amor ténue e revolucionário. No espaço supremo, o radicalismo supremo.

terça-feira, 21 de novembro de 2017



E por falar em filmes e amigos... "Magic & Bird: A Courtship of Rivals" pode ser um tão belo filme sobre a amizade como o "Rio Bravo", o "Ed Wood", "Pat Garrett & Billy the Kid", "Scarecrow", "The New Centurions", “The Big Chill”... "Xavier"... Frank Borzage...

Uma amizade permanente e eterna que não precisa dos encontros diários, da rotina ou do picar do ponto... Magic e Bird, os dois seres mais diferentes do planeta terra, com uma conexão que só eles podem entender.

Nas guerras dos jogos ou nos problemas fora deles, nos MVPs arrancados a ferros ou nas doenças que chegam pela calada da noite como a morte, respeitando as diferenças e não forçando nada, a mais genuína das amizades, até ao túmulo.

E é já Ezra Edelman em 2010 a preparar a obra-prima que chegaria com "O.J.: Made in America" - do indivíduo por ele mesmo à sociedade inteira, do quintal aos cinco continentes, da pequena história ao grande arco narrativo, da fantasia ao real, da liberdade à moral como das leis à justiça, tudo é uno e inseparável, complexo e complementar, como o branco e o negro para o arco-íris completo; daí que um ser-humano é mesmo um outro, culpas e redenções para cada qual.

Não há nada de simplismo televisivo antes tudo de grandeza cinematográfica: a transfiguração e o segredo, a inteligência e a emoção; montar, resgatar, fixar, resvalar. Usar o arquivo é encenar tanto como filmar, tão fake ou tão visceral como, assim como entrevistar é criar personagens - o que se augura, como nos biliões de palavras de um Thomas Wolfe, é a luzinha da verdade inegociável, essa chama inteira de repente, clara e devoradora, dourada agulha no palheiro. Que num segundo ou em vários é tão luminosa como um poema breve de Eugénio de Andrade.

A beleza é a verdade e a verdade é a beleza, num triplo de Bird, num passe por detrás das costas de Magic ou nas lutas de emancipação seculares e justas de todos os povos conhecidos e desconhecidos. Belíssimo humanismo.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

"Le soldatesse", Valerio Zurlini , 1965


O pior pode não ser matar ou destruir, pois os homens morrem mas também nascem, as cidades podem ser reconstruídas, e a vida não acaba pela violência. O único imperdoável, mesmo com as escrituras na mão e os credos no peito, chega com a humilhação. A juventude torna-se velha. Os próximos, irmão, ente queridos ou amantes deixam de se poder olhar olhos nos olhos. Todas as coisas que os antigos passaram aos novos podem cair por terra. Gentileza... dignidade... o respeito pelos fracos... a bondade... tudo na lama da humilhação terrena. O inaceitável. Assim fecha “Le soldatesse” de um Valerio Zurlini plenamente comprometido com a humanidade de cada situação e de cada ser e nunca pondo qualquer dramaturgia ou efeito de cinema a valer por ele mesmo - uma panorâmica logo consumida em fogo imbatível ou a frontalidade possante que augura uma eternidade também ela humilhada. O sublime dos sentimentos e das emoções a transcenderem todos aqueles espaços e toda a pressão da jornada, até ao poema final onde nuvens, escuridões e plenitude tudo fundem.

Tal como “Westward the Women” do ziguezagueante guerreiro William A. Wellman ou o recente “The Homesman” do clássico e dançante Tommy Lee Jones, urge transportar mulheres em território perigoso, mas as perenes tensões e desejos entre elas e os homens misturam-se com a guerra que a raça leva a todos os lados. Em Wellman a rocha bravia e as setas do velho oeste americano, em Lee Jones o mesmo e o ouro a brilhar ainda mais cegantemente, em Zurlini uma guerra mundial, o berço da civilização e a beleza original e indizível, outra vez um território ocupado por alheios, a esfinge feiticeira de Anna Karina e uma muda ainda mais indecifrável. E soldados que escolheriam a malária ao medo, parábolas sobre a fome no deserto e sobre a fome causada pela irremediável dor que teimamos em renovar, prostitutas angélicas e anjos queimados, sexo consumado e amor eterno em olhares, sonhos justiceiros e risos desculpáveis dos vinte anos.
 
Por entre cidades dos mortos e cemitérios clandestinos filmados e montados com o peso e a funcionalidade efémera do indesculpável e cigarros trocados com olhares e timidez infantil envolta pela luz do mais luminoso cinema italiano (Karina e Milian na combustão do amor numa cena tão bela como a dos fumos entrelaçados e do prometido enlace entre Eleonora Rossi Drago e Jean-Louis Trintignant no etéreo de “Estate violenta”), Zurlini força uma retaguarda intransponível mesmo que sem perdão às invasões e genocídios rasteiros demais; sentinela que deseja e chega ao aceitamento da ausência de tempo e da união dos espaços – para lá do físico, da morte, da distância, da separação, das leis e dos matrimónios demasiado burocráticos: a certeza de um outro lado, e como se redime quem já não está presente?, como as lições inapagáveis dos antigos. E tudo isto só foi possível e se acredita pois Zurlini olhou e tudo ligou com a sensibilidade da justeza, que é a do coração em alerta, a bater em todas as latitudes e com todas as intensidades, patrulhando cada palmo, certezas e temores lado a lado. Sem a mentira ou o pedestal do estilo. A pureza proibida.

sábado, 30 de setembro de 2017

«Wonder. Go on and wonder.» (WF)

 
 


Produzida pela ESPN (por Ezra Edelman e por um coro de todos nós onde cada qual tem as suas razões) aí está uma das obras capitais da década. Para lá de filme, série, documentário, vingança, justiça... Obra total e absoluta sobre a disputa entre os homens e os deuses pelo fogo primordial. Há dois mil anos ou daqui a imemoriais. 7h 47min essenciais.

Notas:

«A minha história é como uma lenda americana, percebes? Tu precisas de superar grandes obstáculos. É fácil celebrar. É fácil ser amigo de alguém que está a ganhar. Percebes, é preciso alguma tragédia na vida para conseguires escrever uma autobiografia interessante.» O.J.

- “O.J.: Made in America” é uma pura tragédia americana... um conto de fadas... um filme de terror... todas as aparências estilhaçadas... todas os rótulos sabotados... todos os destinos trocados...

- A eterna busca de alguns homens pela impossível perfeição... a luta com deus no terreno de deuses... doctor jack and mr hyde... os limites sagrados...

- A persistência da memória e o choque... aquilo que não passa nessa linha para a frente da vida... os deuses de barro e o sistema terreno... numa montagem subtil que faz perceber e arrepiar que tudo já estava no início como no fim.... plantado e escrito.

- Aquilo que certo dia se calcou como bosta poderá ser noutro certo dia o nosso alimento, o nosso ouro e a nossa fé...

- A solidão de um e o êxtase de todos unidos seja pelo que for.

- “O.J.: Made in America” ultrapassa sem esforço a mais descabelada imaginação Hollywoddiana. Ultrapassa também sem pedir e sempre a jogar limpo todo o nosso sadismo mais recôndito. Tudo é ficção e tudo é realidade.

- Sem culpados nem heróis.

- A prova do próprio veneno... eterno retorno... homem e deus em palcos e tempos proibidos.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017




"One-Eyed Jacks", Marlon Brando, 1961


Recentemente restaurado por Martin Scorsese e Steven Spielberg “One-Eyed Jacks” confirma-se tão sublime como a visão anterior em cópias escuras e atrofiadas, sem alta resolução e de formato modificado. Um cristal de brilhos poderosíssimos que cega mesmo estando envolto em redomas e cascas de poeiras, carvões, matérias bastante enegrecidas e bexigosas. Sublime gama de todos os claros e de todos os escuros em efervescência e a reclamarem de atração. Lembro-me de o Mário Fernandes me mandar uma mensagem sobre a realização única e incopiável de Marlon Brando que dizia: «a última fronteira do western ou de Rimbaud será sempre o mar». “One-Eyed Jacks” é ainda um western quando eles estavam a agonizar, mas também é qualquer coisa que arrebenta o género e que passa para um tipo de energia e de poesia romântica e decadente que está de mão dada com a virgindade e a primeira luz do primeiro dia do mundo apegado à imediata culpa. Nesta história de vingança primordial em que o Rio de Brando não pode esquecer a traição do Dad Longworth de Karl Malden – relação, traição e consequente tragédia ainda mais complexa do que em “Pat Garrett & Billy the Kid” pois abrange o arco todo da criação e da família - o bem, a amizade e o perdão vão sendo amarrados pelo turbilhão emocional cravado nas origens fundadoras de cada ser, sem apelo e sempre em agravamento, tal como as catástrofes naturais sem aviso ou a loucura da conquista do mundo e da utopia imperial. Jamais existirão os lados bons ou os lados maus sem margem para dúvidas; de Rio a Longworth passando pela mulher deste, e não perdendo de vista os cometas secundários que nunca o são a gravitar demasiado próximos, os erros ou as falhas cometidos num certo tempo em que para eles não eram erros ou falhas e muito menos culpas não servirão para justificar nada, dos falhanços pessoais ao alinhamento comunitário. A lei clara, como a insubordinação e o animalesco, podem ser cruéis e abjectos à sua maneira, e jamais qualquer um dos citados proclamarão inocência.

«Elle est retrouvée! / Quoi? L' éternité. / C est la mar mêlée / Au soleil». Brando, que antes de pegar nesta narrativa mítica quis pegar na mais mítica de todas e adaptar o Livro de Job, montou o palco junto às ondas do mar por que tanto esperou – atrasando a rodagem do filme meses a fio – e onde nas escarpas e na dureza sem tempo das rochas e dos penedos, com a brisa imemorial a bater-lhe na cara e o infinito a desafiá-lo, se refugiava de si e com a enteada do homem que o manteve vivo por vingança; e numa dessas noites ou desses amanheceres de fronteira e com a eternidade por testemunha foi sincera com ela, para uns meses mais tarde chegar outro filho da culpa. O conto de Billy the Kid embrenhado e levado até às profundezas da ambivalência moral, nessa imagem perfeita da abertura onde Brando pesa a casca escorregadia das bananas e do crime já em rotina numa problemática balança de justiça a deslizar de William Shakespeare para Henry David Thoreau. Romantismo, fogo indomável, desacordo entre o espírito transcendente (Deuses e monstros) e a lei terrena (os tribunais e as bíblias interpretados ao sabor da corrente), Brando nos terrenos que vão do andarilho dos andarilhos até aos suicídios de Philippe Garrel sem escapar à eterna velocidade americana que ignora o túmulo.

Numa recente introdução de Scorsese a um «western como nenhum outro», palavras suas, este referiu a energia bruta, algo de selvagem que não tinha a certeza que a câmara pudesse controlar. Pulsar sempre a arrebentar e a transcender as bordas do enquadramento e do próprio meio natural que a todos nos enquadra antes do cinema existir, e lembrou-se de Elia Kazan e de “Death of a Salesman”, correntes sanguíneas emotivas, primárias, ao fundo da verdade do momento, da pressão e da temperatura do presente. Já Fiódor Dostoiévski nos Karamazov tecia sobre a incurável família, alguns ternos guerreiros, de recurso intrincado ou impossível, assim: «Meus irmãos perdem-se, meu pai igualmente. Consigo arrastam outros. É a força da terra, própria dos Karamazovs, segundo o padre Paisius. Uma força bruta, violenta... Ignoro até se o espírito de Deus domina essa força». Se esse escavador dos fundos da alma humana e de crimes e castigos irresolúveis ignorava se Deus tem a capacidade de dominar certos seres, tais vulcanismos prontos para a actividade mesmo se adormecidos por séculos, assim certos temperamentos como os de Kazan, Brando, Nicholas Ray ou Scorsese travaram violentas lutas entre as queimaduras da culpa, da redenção e da liberdade com a frieza e o controle da câmara de filmar. Jogo ambíguo que coloca frente-a-frente o domínio dramático e expressivo das chamadas formas contra o poder confessional e a verdade intrínseca da alma. As luzes, sombras e composições manipuladas e o “segundo decisivo” onde tudo aparece nu.

Mas para se fazer isso é preciso perceber muito de cinema, de drama, de pintura de sentimentos, de exposição individual e de pudor universal, de ângulos e de lentes. Na cena em que Karl Malden pondera e decide sem motivo aparente trair Brando temos um longo plano do seu rosto apoiado no cavalo da salvação, muito suor, impassibilidade, a carga da perdição, a duração e a frontalidade a fornecerem todas as razões. Quando o também fabuloso Ben Johnson se torna o que certo dia Malden foi para Brando, cinco anos depois do acontecimento que até ali calcou toda a vida, a notícia sobre o paradeiro do fugitivo é recebida e orquestrada pelo campo/contracampo em tensão interior avassaladora, toda a raiva do mundo no rosto e na carne a dinamitarem dentro das quatro paredes do enquadramento que heroicamente não tremem, explosão cósmica ao para dentro, ignorando olimpicamente os raccords impossíveis da profissão. Na chegada de Brando a casa de Malden, tão bem posto na vida e com certeza respeitável como o Pat Garret de James Coburn do filme de Peckimpah, temos três secções próprias que revelam a distância, os motivos e a complexidade da resolução moral e simplista: o lento aproximar de cavalo à casa do antigo parceiro de crime que agora está do outro lado, urdido em árduo trabalho de suspense que não deixa sombra para dúvidas de que ambos esperaram diariamente esse dia; a conversa e o acertar dos relógios no alpendre, onde ambos mentem percebendo a tramada questão da pressão e da necessidade de resposta, de onde as lágrimas nos olhos e a franqueza das entranhas do rosto evidenciam um calor e uma proximidade de melhores amigos que mesmo as chicotadas, torturas e tiros posteriores apenas elevam a relação a consequências superiores e por isso mesmo só entendida na irracionalidade demencial do amor; Brando a entrar na casa de Malden e logo a antítese do momento anterior que franqueia mais uma vez a tragédia, nesses contracampos vazios de fidelidade e carregados da farsa da ambição, ausentes de som e cheios de imagens mentais; a montagem e a encenação de “One-Eyed Jacks” é esta constante dialéctica entre cenas e dentro da cena, assim, ver a conversa derradeira de Brando com Malden onde se ameaça tudo e se redime tudo num mesmo instante. Pois não é casualmente que travando e silenciando o som das esporas entra como aparição ainda terrena a figura e a silhueta de Pina Pellicer, em encarnado de querubim e a ousadia corada dos muito tímidos. Pina Pellicer, aqui chamada Louisa, luz de todas as purezas e vacilações, biografia frágil que não passou dos trinta anos mas que sorri para o corpanzil e a bruteza de Brando descobrindo-lhe a inocência primeira e assim revelando-lhe a bondade e a generosidade incondicional. Enfim, todos os momentos com Pellicer junto à espuma branca das ondas que explodem para as elipses do amor e da posse, das uniões e da limpeza; cavalos brancos misturados com a areia, véus do crime e da santidade, jóias preciosas e corruptas, o suposto western de Brando espelha sem definição os testamentos sacros e a libertação poética mais escandalosa.

«The writer only responsability is to his art. (...) Everything goes by the board: honor, pride, decency, security, happiness, all, to get the book written.» disparou William Faulkner ao interlocutor atónito de bom senso. Marlon Brando, para mim sempre muito mais generoso e subtil do que egocêntrico e espectacular – na referida cena de reencontro com Malden é este último que fica no centro e que traz todo o passado para o centro – deixou-se levar com os seus colaboradores nessa vertigem do irracional matando-se para a agarrar pela mão-de-obra do cinema o mais conservada possível. A crueza descarnada daqueles corpos tão tensos, ora explosivos ora ainda mais apaziguadamente explosivos, ainda a escutarem as lições de John Ford, a quererem escutar, mas a saberem e a sentirem que certas fronteiras e certa limpidez já foi ultrapassada e que a ordem dos sentimentos, da moral e da encenação já é outra. Actors Studio e John Wayne. A rocha e a água. Sêmen e espuma. O credo e a bala. As ondas, sempre as mesmas e sempre diferentes, perfeitamente indomáveis.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

"Wild Is the Wind", George Cukor, 1957


George Cukor, o cineasta das mulheres, o sofisticado homem do teatro, filmou em “Wild Is the Wind” o que o título indica, uma história de vento, ou do vento. Partindo de um claro interesse documental, o registo dos ofícios e da manufactura daquelas regiões agrestes americanas pós western, com os cães que domam as ovelhas como no país basco, o parimento delas e a selvajaria mais bonita quanto perfeitamente incontrolável, encontra-se nessa vida animal, bestial, orgânica e natural toda a simbologia ou consanguinidade óbvias para com as poderosas pulsões desejantes, tanto sexuais e básicas como afectivas e fundamentais da parte da ficção. O amor, a violência e o vento. Cukor capta, apanha no turbilhão, a massa possível de uma visceral história de vento, vento que acaricia, ameaça, salva, acompanha.

No começo, um par, Anthony Quinn, italiano na América que sabemos que perdeu a mulher, e saberemos depois que com muitas culpas no cartório, decide ir ao seu país de origem buscar a irmã da falecida. Quer casar-se novamente com a morta mas escolhe uma viva, não sabendo da impossibilidade de tais milagres, trocas ou compras. E trata de tratar Anna Magnani, a escolhida, como os seus animais, querendo doma-la como domou o cavalo que lhe oferece, beijando-a defronte do espelho que contém e reflecte a morta, utilizando-a assim para o sexo e para a sua imagem de fama, não vendo nela uma outra.
 
Só que não percebe que um animal fervente como Magnani, um vulcão em constante irrupção, jamais poderá ser domado sob o risco de morrer interiormente e logo exteriormente. Nem alma nem carne. Essa mulher que caiu no centro do turbilhão e da cacofonia da família já constituída e acabada, só se vai entender com os animais, suficientemente verdadeiros como se deve ser para com os da sua raça. O tempo avança a mata-cavalos, literalmente, e forma-se o trio. Magnani encontra outro inocente e necessitado que é mais um filho de Quinn e que parece ser um Dancin' Kid de Nicholas Ray, e ambos se reconhecem no alívio premente e literalmente se devoram. Espécie de Dancin' Kid que nasceu prometido à filha de Quinn. Filha que gosta muito de Magnani e que não se importa de a ver como Mãe. Explode ou implode um quarteto inaceitável.
 
E todos bailando no meio do vento e cercados pelas míticas montanhas mágicas da América mais do que mitificada – Charles Lang no auge da beleza crua e perfeita a um tempo, sem bilhete-postal - mesmo o Quinn que tudo julga dominar e controlar como Deus a seu belo prazer, se vão perder, enganar, suspender em abismos irresolúveis, praticamente matar e ressuscitar a ferros, para começarem a ver e a sentirem alguma coisa mais para lá da compostura das aparências e do esperado. O que Quinn quer é o que todos os “donos do mundo” de ontem e de hoje querem, mesmo que não seja culpado e se mova cego na engrenagem que o cegou, dominar cada peão no desmedido tabuleiro que criou e não admitindo falhas no seu esquema perfeito e maior do que tudo e do que ele mesmo. Atingidas certas proporções e posses, toda a vida, todo o tempo e mesmo todo o físico e saúde de touro de um Quinn, só para esses fins argentários e falsos serão aplicados.
 
Cukor, um dos cineastas mais narrativamente possantes dessa época – os seus filmes são densos, maleáveis e complexos como um corpo humano o pode ser na estrutura infindável de músculos, gorduras, veias, ossos, etc., etc., ou como um romance cósmico e total que vai a tudo e a todas as ficções e documentos e féeries de um Thomas Mann – captou Magnani documentalmente como o vulcão italiano perdido no imperialismo e extrapolou de Quinn a força castradora que tudo pode devorar, o humanismo em primeira instância. Mas de hecatombe em hecatombe, de incompreensível e de segredo em segredo, a panela de pressão arrebenta e advém novamente o vento. Para os protagonistas limparem a vista, as razões e o coração. “Wild Is the Wind” é a passagem afagante, lenta e dolorosa do “eu quero” para o “eu espero”. Da violência da imposição sem escolha para a generosidade com todas as possibilidades de selvajaria da liberdade e assim de uma fidelidade superior. Por isso mesmo o final não é feliz à força nem batota dos estúdios fascistas mas a visão límpida e dolorosa de um depois da tempestade. E George Cukor como cineasta do físico e da alma, ou do caminho tortuoso para esse entendimento e encontro. Imensa carícia.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

"Run for Cover", Nicholas Ray, 1955


“Run for Cover” talvez seja a obra moralmente mais ziguezagueante de Nicholas Ray, onde esse tipo de ascendência sempre dúbia passa constantemente do homem velho para o homem novo e por aí fora até à fatalidade, sem hierarquia comprovada. Que tudo se passe ainda entre dois felinos castrados, impotentes, curvados, vergados, aninhados pelos medos e pelas culpas que não sabem nem conseguem aceitar, eleva mais uma vez ao paroxismo insuportável o olhar puro e frágil de Ray. Do esconderijo dessa condição humilhante, a explosão catastrófica. No princípio, quando o jovem de John Derek apenas pretende dar de beber ao seu cavalo e o experimentado e desconfiado James Cagney puxa para ele a pistola, é o jovem que fica momentaneamente por cima, mas logo tudo vira quando o outro lhe atira que a questão não foi a da arma apontada mas a do reconhecimento do medo próprio. Daí por diante até serem confundidos por ladrões, serem alvejados e Cagney sentir culpa torrencial pelo sucedido, a reversão irá ser sempre brutalmente ligada à masculinidade mas também, e por ventura mais gravemente, à impotência de afastarem o medo antigo, lá de trás das sombras e das teias da infância, questão de amores filiais e desejos maculados, terra assombrada antes da luz. Cagney não terá coragem de pedir a mão em casamento à amada e será ela a pedir-lhe a ele – tão ao contrário como o peso Freudiano – e Derek mentirá e trairá cada vez mais fundo para compensar as coisas que o filme mantém ausentes não por inteligência elíptica mas porque não existem, coisas da idade dele e da natureza.

Depois, o momento grave, e agudo, fino até às ossadas, em que Cagney esventra Derek todo, pois se é tão necessitado como ele apesar de tudo já viu mais, ousou mais, teve a sorte de terem dado por ele o passo que se espera que o homem dê, e falando para o jovem fala ainda para ele mesmo antes que se torne velho demais; fala-lhe dos infinitos “normais” que na vida aguentam as pancadas constantes da existência sem choradinhos mas juntando as peças que se vão quebrando e caminhando de dentes cerrados; e fala-lhe dos outros, os que fogem com o rabinho entre as pernas de cada vez que a vida lhes troca as voltas, não aceitando que tudo não seja um mar de rosas, a free ride, referindo-se obviamente aos dois, um outro e o seu semelhante, iniciação, pais e filhos, run for cover; Cagney foi o homem que quis adoptar a toda a força a criança de Derek para ter uma segunda oportunidade de pai e de Homem mas não percebeu que clamava tanto como ele; e Ray a falar com o Rocky Balboa que em 2006 diria a mesma coisa ao seu filho num beco cheio de lixo e de fumos não maquiados pelo sabão do cinema - «You, me, or nobody is gonna hit as hard as life. But it ain't about how hard you hit. It's about how hard you can get hit and keep moving forward. How much you can take and keep moving forward. That's how winning is done!»
 
Dádiva sublime antes de mais traições inaceitáveis e de redenções no último suspiro. E assim não haverá possibilidade de redenção tão na hora da morte como a que vemos neste conto que é tão infantil – Cagney e Derek podem ser consideradas crianças inocentes e cruéis que ousaram assim permanecer para lá das horas – como crepuscular – foi preciso esperar o desenrolar do fio todo da vida para finalmente se tomar uma decisão, levar as coisas para a frente, agarrar a responsabilidade, e crescer. Nick, acreditas realmente que até no último esgar merecemos uma oportunidade reservada a cada qual e o resto é moral invertida, areia para os olhos e mecanismos arrasadores da sociedade? A resposta não está em nenhuma legenda final ou happy ending, nem mesmo nos efeitos cromáticos ou psicológicos de género, mas na luz constante de todo o filme. Seja no romantismo mais ténue ou na tinta mais carregada, na nascença do amor ao entardecer como nesse terrível movimento de câmara que revela o corte físico e corte sexual de Derek, a luz é como que azulada, clara, translúcida... da mesma gama, da mesma mistura e espectro dos diáfanos céus renascentistas ou do azul de Sistina, das auroras de Borzage ou dos querubins virginais. Da cor indefinível das estrelas que não se deixam fixar, para lá delas, por essa câmara que olhando as questões mais negras conserva a pureza que não julga nem condena porque assim manda a lei. Ray a ver que até no paraíso se deixou de tudo e nele haverá luz e treva como na sujidade de um “In a Lonely Place”.
 
Em cada tempo de guerra onde o que vale é a imposição e o tamanho, o primeiro lugar e o branco e preto bem definidos, toda a complexidade num só tom infinito. Ou seja, toda a aflição e generosidade.
 
 

sábado, 19 de agosto de 2017


"The Fearmakers", Jacques Tourneur, 1958


Agora em vez de se informar as pessoas, inventam-se factos. Fabrica-se de tal forma o medo que se pode vender a paz a qualquer preço. Isto são sínteses do veterano de guerra Dana Andrews na segunda lavagem ao cérebro agora no seu país natal. Logo depois de regressar e de o médico lhe dizer que não percebe as causas do seu mal-estar alguém lhe atira com o sono que encerra a emaranhada porta da inquietude por Shakespeare. O seu homem é o homem solitário de que não vemos réstia de passado, de lar ou de recordação e que assim vê melhor o contracampo do infame campo de batalha do outro lado do mundo. Alguém que não percebe a sua condição de solitário nem a aceita nem perdoa tal. A civilização e o mundo tecnológico que tudo escrutina e antecipa a que regressou como quem redescobre o que desconfiou é o resultado e o móbil da aberração visceral das bombas e dos corpos estraçalhados.

Este Dana Andrews que passa o filme a desmaiar, a ser furado por pesadelos e por uma nova espécie de horror abstracto que é o rosto e motor de todos os genocídios e totalitarismos do último século, é o morto-vivo mais temerário da obra de Jacques Tourneur. Morto para a felicidade e para a vida corrente pela grande máquina, vivo porque não perdoa o espelho que essa morte lhe devolve. Evidentemente que “The Fearmakers” é presente para sempre puro e tem como personagens centrais e mabuseanas Donald Trump, os ataques terroristas diários ou os incêndios portugueses; o grande medo que nos fazem suportar para comprarmos a pequena paz ao preço que nos fizerem. Assim a cena final em que os monstros dão meia-volta em face de Abraham Lincoln e onde se constata que a lavagem não vai parar e que inclusive se tem de enganar alguns que não mereciam para vencer, é a união da elevação moral torturada passada a gesta épica e clássica com a inocência dessa pura menina que foi ter com ele simplesmente com o olhar.

Tourneur, que nunca fez as coisas parecerem piores do que são pela manipulação cinematográfica, apenas precisou em “The Fearmakers” da realidade para isso, do estado das coisas e do nexo enviesado, da chamada evolução necessária como necessário é o medo renovado; os choques entre luz e sombra e as possuídas aparições, panteras e leopardos da sua “imagem de marca”, soltaram-se integralmente quando se fixou num lugar específico e num tempo concreto. Ultrapassados ou unidos os abismos da fantasia e do realismo, do verismo e da loucura, vem ao de cima tão clara como o negro que representa essa noite na alma que é a causa de Tourneur. Aquilo em que somos capazes de nos transformar para apagar essa noite toda. A luz e o medo.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

"Wichita", Jacques Tourneur, 1955


Esta história contada por Jacques Tourneur em 1955 remetendo para o velho oeste americano na aurora da industrialização e do lucro cego, este tablóide ordinário, esta lengalenga cansada, vem na capa do jornal de hoje, onde quem manda numa aldeia, numa vila, numa cidade ou no mundo não se importa de ver incontáveis homens e mulheres seus próximos morrerem desde que seja vendida a carga necessária. Mas Tourneur mostrou-a no máximo da depuração possível em cinema, aproveitando as formas e linhas planas e harmónicas dos vales e dos montes, a sua semelhança com os íntimos corpos humanos e com os grandes órgãos vitais da natureza cósmica, para ver também assim na degradante cidade, atingindo a arte das imagens e dos sons relacionados a plenitude vingativa pela incomensurável lupa – quem é bom é bom, quem é mau não tem escape, de onde as palavras dos argumentistas cingem-se ao evidente e à poesia do quotidiano, ao nível das paisagens belas e uteis.

O momento mais bonito do filme, tão bonito e justo como o cair-do-sol da despedida onde o casal ruma em direcção à justiça última em consonância com o amor e encaixe destinados, é um vulgar travelling de acompanhamento entre o comum Wyatt Earp do certo Joel McCrea e o ajudante do editor do jornal - editor que é mais um genial Mark Twain no cinema americano: tudo sabe pelos sentimentos primários e não-ditos, percebe logo a vocação de cada um e de cada coisa, a dádiva de cada qual – travelling funcional onde o jovem aprendiz Bat Masterson vacila um pouco depois de ter feito o que é correcto, depois de ter “crescido” para o arrivista de serviço, deixando o grande medo picar por instantes; mas quem tem o mito aliviado de Earp ao lado ou o melhor amigo tem tudo e este afirma-lhe que não podia ter procedido de outra maneira... pois não? E ri-se, e o jovem ri-se com ele.

“Wichita” é sobre esses grandes temas do telejornal das vinte horas mas é sobretudo um filme sobre o nada essencial. O nada das planícies luzentes... do vento nas ervas rentes...do sol a desaparecer por detrás dos altos... do inescapável dom que já vem com o cordão umbilical e que não se corta nem se vende. O dom que Twain não para de apregoar e que tem obviamente escrito morte. Vida e morte. Toda a entrega ao rumor interior e ao gesto absoluto é o sagrado, a assunção e o calvário. Tourneur ligou as questões mais antigas aos termos mais simples e à equação mais complexa.

Não fazendo sentido egocentrismos profissionais, pressão de autor, brilhos mediáticos do ouro banal ou molde festivaleiro. Tourneur foi o cineasta simples e fascinado que baseou toda a sua obra nas historinhas que a mãe lhe contava mesmo antes de adormecer e entrar noutro mundo. Da luz e do segredo. A brilhar na caixa de música da infância. Sem ninguém em volta ou com o melhor amigo.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017




“The Appaloosa”, Sidney J. Furie, 1966


Sidney J. Furie, depois realizador da série “Iron Eagle” ou de uma continuação do “Superman”da era Christopher Reeve, ainda em actividade e já uma carta fora do baralho faz muito tempo, fora de qualquer conversa “séria” e jamais proposto para retrospectiva mesmo que parcial. Mas se não formos a mais lado algum existe o ano de 1966, e existe “The Appaloosa”, feito cinco anos depois do Rimbauniano “One-Eyed Jacks” e sete anos antes dos calvários e das fidelidades de “Pat Garrett & Billy the Kid”. Furie abre a caminhada de mais um homem que regressou de longe demais e que tem todos os passados e massacres e tempos cravados no rosto, no corpo e no fogo interior, de forma serena, chã, espalhando o vento a sua ternura pela paisagem que tanto irá ser magnificada pelo recorte horizontal. E o andamento, a candura, essa doçura ao mesmo tempo crepuscular e iniciática poderia durar para sempre. E Furie já estaria ao lado dos grandes. Tal como o sublime de molde único realizado por Brando iremos ter momentos e momentos esfregados a lua, estrelas e pós diáfanos.

Mas o homem como que aterra novamente na civilização e começam os ângulos subjectivos, barrocos, demenciais e desconfiados, desenquadrados como aleatórios; e vai ser sempre esta a guerra formal do filme, entre a serenidade um dia vista e almejada, e o olhar e a pele arrepiada de quem como o homem de Brando já matou muitos outros homens semelhantes e de muitas mulheres abusou. Entre este ano de 1966 que é também o apogeu de Sergio Leone e as Sete Mulheres de John Ford vai-se escancarar um abismo, uma bocarra medonha de negro, que é a viagem de perneio desta obra forçosamente não concisa. Por isso a perseguição do cão seguida da entrada desequilibrada na igreja, o confronto mudo com o simbolismo apátrida e ferido de Emilio Fernández e o desejo ligado com a traição e o pecado e a libertação no encontro com a mais misteriosa das mulheres é a representação narrativa e espacial dessa batalha que também é entre a postura clássica e vertical com a cobardice e o niilismo degradante.

Appaloosa é o nome do cavalo que despoleta o conflito, mas logo depois da breve estadia em casa com os seus – tão breve como em “The Searchers” e mil vezes humilhante – no ponteiro agudo em que se abre e reprime diante da mulher pura e proibida que terá sempre o expoente do seu amor, Brando confessa-lhe que vai voltar à guerra não pela vingança ou pela respeitabilidade mas porque certo dia um estranho pegou nele, levou-o para uma casa, amou-o e purificou-o e acreditou sempre nesse menino mesmo nas misérias mais baixas e nos golpes mais profundos. Brando troca o idílico e a paz de fim de tarde pela memória e por tudo o que não vemos, e é o acreditar e a frontalidade a imporem alguma ordem no caos da falta de valores e na falta de tudo.

E a viagem vai piando fino, como no primeiro encontro com um Moisés retirado que o afaga e o limpa mais um bocadinho da lama da cantina anterior. E da fina e cortante música da solidão passamos à tristeza mais lancinante onde todos, muito velhos e muitos jovens, não se importam de morrer por morrer. O chefe da quadrilha de sangue envenenado como os duros e nocturnos escorpiões que lhe basta a pança cheia de tequilha e só a carne da mulher e não o espírito para puder morrer de qualquer jeito; a mulher deste que vai traindo Brando e se entregando incondicionalmente em movimentos e soluções estonteantes de vida ou de morte; e o Moisés que julgávamos imperturbável, afirmando sem receios que um dia se cansará e que lhe bastará descer uns passos para o seu túmulo pronto. Moisés que entre brumas longínquas e antiquíssimas oferece o túmulo ao par com os pés para a cova, fazendo-o renascer nesse fundo, sem nada querer em troca - Go down Moses, e a salvação. E a luz.

Então só poderia ser no sacro enterro do velho que a mão do destino começa a sua rotação sem travagem, com a testemunha dos céus grávidos e da terra seca. Daí tudo vira, o fundamental e os fundamentos começam a entrar em concordância e em eixos sólidos; para o duelo final ser tão à distância e a perder de vista como as incomensuráveis paisagens que regressarão abraçadas com os sonhos interiores. A imagem final, estática, frontal, eterna, para os altos, é o forçar da comunidade, catedral da salvação, e mesmo que dure só até ao The End, comporta o peso do tudo. E das raças todas, sem fronteiras, sem credos. 

domingo, 13 de agosto de 2017

"Sayonara", Joshua Logan, 1957


“Sayonara”, que quer dizer Adeus, foi transformado num princípio em 1957 por Marlon Brando, Miiko Taka e Joshua Logan; e mais ainda pelo casal que enlaça no final branco e primordial de “Os Amantes Crucificados” de Kenji Mizoguchi, amantes vividos por Red Buttons e Miyoshi Umeki terrenamente até à cena virginal e doce em que Brando os encontra já para lá da sempre redutora beleza terrestre; alguns ou muitos de nós não chegarão a conhecer tal passagem, pois que com ou sem metafísica nunca se deram assim; nunca passaram certa fronteira... e “fronteira” é a palavra e cerne deste filme que é uma empreitada por amor à humanidade e ao básico.

“Sayonara” deveria ser projectado num ecrã tão grande e simples e evidente que abarcasse todos os continentes para uma união óbvia.

Tudo neste filme é belo pois derruba com a beleza mais simples as correntes das leis mais avançadas; é Brando a começar a bater com a sua cabeça e com o seu corpo em tudo o que é décor e forma (e espírito) Japonês; é a sua única amada a cair na poça da cultura e da herança (e da bruteza); e, devagarinho, lentamente, como as águas onde se lavam os panos sem fim ou como o vento que bate nas flores de cerejeira etéreas, ele começa a dominar o espaço e a perceber o tempo alheio, a saber que os meios e o caminho podem ser tão ou mais importante do que os fins; e ela, surgindo tão impassível e zen como a imagem mais acabada do sol nascente, torna-se lacónica, cuspe verdades, quase ou até selvática sem conta, rompe e explode.

Brando admira e chora pelas rochas amantes e torna-se Japonês. Miiko Taka percebe desde os primeiros olhares envergonhados de namoradinhos de escola que até yankees podem ter toda a plenitude solar, e torna-se Americana. Mas chegar só a esta conclusão é alinhar no que “Sayonara” derruba, que é aquilo que eles confessam tão simplesmente, tão basicamente, tão preto no branco e sem margem para dúvidas, envergonhando a Sociedade com S maiúsculo imposto a sangue: cada um é um mesmo de onde Família e Tradição e Esperado e País terá de se renovar constantemente pela verdade, pelo amor, pela justeza, pelo olhar inocente de namoradinhos do pátio proibido da infância.

E no final formam um com a individualidade intacta, a revolução e o regresso à fonte inaugural. “Sayonara” está num acreditar e num limbo para lá ou para cá de todas as convenções; do actors studio feito para cada qual e sem marca até ao ritualismo sem império; simplismo - fatalismo (o belo simplismo, a bela irresponsabilidade), como Ford ou Kazan a dialogar abertamente com Mizoguchi ou Ozu. No ocaso, sayonara, adeus, tudo de novo.

quinta-feira, 6 de julho de 2017


"Island in the Sun", Robert Rossen, 1957


“Island in the Sun” escancara e condensa o facto de Robert Rossen ser um dos grandes mestres do enquadramento americano. Estamos perante um mosaico, em que as corridas eleitorais ou mesmo os crimes e castigos literais ou simbólicos escritos no presente puro são parte lamentavelmente acessória de uma grande engrenagem encetada pelos imemoriais anos, talvez quando se inventou que o remédio para a solidão era dividir o mundo entre preto e branco, ricos e pobres, esquerdas e direitas, femininos e masculinos e por aí fora. Rossen acredita, como um Losey ou um Kazan mas com um nervo que se magnetiza aos olhos e à postura da carne e logo ao interior e não tanto à relação com a profundidade espacial – mesmo que aqui ela (a profundidade) também escancare e até comente – que toda a tensão do drama e do choque é questão de linhas e de tempo, de aguentar o máximo de crispação e de conflito num ponto-de-vista único e inquestionável. Basta a cena entre James Mason e a esposa ao espelho para se perceber que haverá tragédia – que até é mais significativa por estar em picado do que a cena da violação conjugal em campo de flores idílico; ou o momento penoso em que o mesmo Mason é desafiado a “tomar conta da ilha” pelo homem que irá trucidar e o extraordinário Harry Belafonte de rompante ocupa o lado contrário do quadro e tudo se vai desequilibrando, equilibrando, num balanço realmente precário e grave que rebenta com qualquer medida ou fórmula – e a maneira como não se corta abruptamente mas com o tempo preciso e indecifrável para o negro e a loira que serão a chave final e irresolúvel de tudo é a imagem acabada deste tipo de casta. No cantinho insignificante do recorte pode estar o fundamental ou a humanidade completa, o ser e a paisagem centrados.
 
Da abertura em que ficamos a saber tudo daquela ilha queimada pelo combustível transcendental do Sol – e ficamos a saber mesmo tudo, da pesca às canas, como depois iremos ver a pedra a ser trabalhada parecendo já outro continente, as típicas bananas ou os rituais maquiavélicos da alegria e irrisão carnavalesca – e onde a música de embalo e que tem coisas a dizer ao invés de apagar a rugosidade só a amplia – escutamos o vento nas ervas e os riscos na pele, sabemos que o perigo espreita em cada esquina ou sombra do espaço, vindo de qualquer hora; não perigos grandiosos, explosões ou a Épica, mas a enervante pulsão incontrolável do rumor, trovoada do inesperado, o animal dentro de cada ser por mais sossegado que seja – Zola ou Frank Norris também estão aqui mas a um nível disseminado, sem preparação ou suspeita – como um filho a travar a bofetada da Mãe devolvendo pelo gesto e olhar um crime em potência, a velocidade do carro do mesmo Mason a clamar genocídios, culminando na tal morte que é um instante de inocência para lá do concebido.
 
O "criminoso" naquela ilha que funciona como um poço do inferno que seria juntar todas as raças e credos para uma análise é algo abstracto, endémico e alastrador como as pestes que Rossen persegue com a força vingadora e justiceira das formas mais básicas e mais potentes – a fixidez de um olhar, quanto tempo se aguenta olhar para o busílis, para o sol, a matemática ou a harmonia menos analítica e completamente pulsional, estilhaçada, corpo-a-corpo com a matéria que colhe. Não temos personagens principais mas uma gesta emoldurada onde alguém sai por uns momentos breves ou eternos mas volta – dá para nos esquecermos da situação anterior – para o enquadramento que parece também ter as suas razões recônditas, como um deus, mas um deus humano, pulsante e mesmo parcial, lembrando o berço universal aonde se volta sempre no “Intolerance” de Griffith. «Há um momento da vida em que deixamos de ser muitas coisas para sermos só uma. Cobardes», diz Gary Cooper, noutro dos filmes máximos de Rossen, “They Came to Cordura”, e é o que se passa na energia das formas que envolvem “The Hustler” ou o conto já no outro mundo chamado “Lilith”, formas que se vão decidindo, concentrando, apurando; todos os choques, embates, contrários, faíscas, cores, credos, lados, lutas gigantescas entre a representação dos actores e a sua verdade – a psicose de Mason é gémea da de “Bigger than Life” -são travados igualmente com o cinema, a distância, a medida da verdade. Uma cena em Rossen começa com todas as possibilidades e termina num big-bang que tudo denúncia.
 
“Island in the Sun”, que poderia ser um remake de “Light in August”, é um dos mais Faulknarianos filmes da história. Existe aquele paraíso etéreo do musical que faz o todo planar e partir-se ainda mais – Belafonte a cantar e a comungar com os seus – miscigenação indestrinçável, sangue e sémen desterrados, segredos mortos e enterrados a clamarem dum tumulo longínquo e vivo, lirismo terminal da manifestação e impassibilidade da natura em torno do desespero dos apaixonados que tentam sondar a grande resposta; e o começo do éden a imiscuir-se no inferno; Faulknariano de um modo menos doentio e tétrico do que a parte aterradora de “Today We Live” e mais a apontar para a solidão do plano derradeiro, onde um homem caminha em direcção ao nada e envolvido e fazendo corpo presente num laranja fogo de um crepúsculo, pacificado na sua completa divisão. Depois de tudo ter acabado, passados os degredos ou sempre chafurdando neles, ainda o Homem. Mais uma vez e depois de Rossen nos ter mostrado que aguentava todo o peso do cosmos, do pecado e da luz nos seus ombros que são os de cada um.

Glauber Rocha num aeroporto a ver alguém numa livraria com “The Wild Palms” em punho e reconhecendo Robert Rossen (contou-me Bruno Andrade depois de lhe ter contado Carlão Reichenbach que o soube pelo próprio Glauber). Pela casta e pela garra os homens reconhecem-se. Até à última rocha inútil suspensa sem ordem na última noite vermelha e moribunda.

quarta-feira, 7 de junho de 2017


"The Sunchaser", Michael Cimino, 1996


«Watch out for the Judas, man!» grita o condenado de Jon Seda prestes a salvar-se para o raptado Woody Harrelson pouco depois deste lhe ter agradecido outro tipo de resgate. Nesse topo do mundo, pertíssimo dos céus e dos deuses que dizem existir de maneiras diversas, à beira dos lagos das montanhas mágicas e envoltos nos espíritos e nas formas transcendentais da natureza, não se esquece o que se viu lá em baixo, nas urbes viciadas demais que são as maquinações dos infernos possíveis. Nos segundos de respiração derradeira, visto o outro mundo, tocada a pureza, Seda, Harrelson e Cimino agradecem às montanhas e às nuvens mas ainda não perdoam às polícias e às restantes amordaças enfatuadas.

É este o percurso sideral que o filme atravessa cadentemente e une, tentando desfazer o primeiro mundo no último paraíso, a construção na abstracção, à imagem do mergulho final do “doente” prestes a limpar-se. Numa lancinante claridade, “The Sunchaser”, filme de juventude e de sangue na guelra e filme de velhíssimo curandeiro que tudo observou pasmado e impassível, pronto para colher acalmias e tempestades, mostra-nos, à medida e altura do voo da águia e dos helicópteros que por lá planam (a máquina e o “antes de nós”), como nos comportamos e o que criámos através da técnica e da ciência do cinema como lupa e espelho; que tendo sabido da deambulação romanesca da literatura ou da féerie da pintura, percebido a música ou falando com a modelação comum, nos permite sentir o interior e analisar perfeitamente a superfície só com o subjectivo de cada um – cúmulo da cosmologia e transfiguração do Cinema Americano e exemplo supremo da fusão do presente com a eternidade.

Na primeira parte Cimino cola a câmara aos passeios sujos e às chapas amolgadas, aos canos de escape tunados e à combustão carnívora no planeta de concreto; faz com que o cheiro da borracha queimada e dos cadáveres dos gangues negros e demais da California dos anos 90 seja só aquilo mas desperte barulhentas e arruínadas Romas e ressuscite Herodes (palácios ou berços, sempre o poder - «Então cumpriu-se o que foi dito pelo profeta Jeremias: Ouviu-se um clamor em Ramá, Choro e grande lamento; Era Raquel chorando a seus filhos, E não querendo ser consolada, porque eles já não existem», Mateus 2:16-17, citando Jeremias 31:15 - que diferença para os infanticídios dos 2Pac ou Biggie e as mães desprotegidas sabendo que o choro imediato é apenas a menor das catastrofes?); graffita o genérico a cores e temperaturas berrantes e mete em pé de guerra a consciência terminal de um cancro com o espectáculo pueril e perigoso da moda e das aparências (a respeitabilidade e o brilho falso que Seda arrancará a Harrelson), metendo o rap em feat com o clássico “What a Difference a Day Makes”, os engravatados na mesma carreira dos dreads, a arquitectura pós-moderna a ser engolida pelo deserto e pelas reservas originais e o fogo das metralhadores a calarem-se no silêncio cósmico; depois de tanta festa e tanta cor o medo e o temor do desconhecido... Assim, faiscando no presente tenso até entrar em campo a fabulosa personagem da Fordiana Anne Bancroft e de se ordenar em prespectiva e relação irresolúvel a medicina, a mitologia e Tupac Shakur - They Got Money For Wars But Can't Feed The Poor (adeus escória, prefiro o outro mundo). E falando de Massacre dos Inocentes, Cimino estará assim tão afastado de Rubens ou é mais uma sequela?

Partida essa barreira entra também em cena Monument Valley e definitivamente o sagrado que tudo aceita. Mas em resistência ao transcendental continuam as lutas e mais lutas dos dois ainda condenados, tentam-se novos regressos aos cheiros insustentáveis dos hospitais, experimentam-se os degredos e tentações do meio do caminho... começando algures, sem óbvio plot de argumentista, a advir em filigrana e na paz dos anjos o entendimento, a constatação do próximo, o encontro dos contrários, o semelhante diferenciado, a reciclagem e os recomeços, o prometido no preto & branco dos sonhos, a Natureza. Como escreveram e cantam Mundo Segundo e Sam the kid, agora:

«Também faz parte
Pensei num péssimo e disse inicio
Pra vir encarar á pressa ou começa no sacrifício
Em cada fim há um ínicio, em cada ínicio uma história
É hipótese duma nova trajetória, porque a glória


Também faz parte»


O cometa vai pressentindo a terra prometida e o thriller que também foi policial e filme-negro chega fatalmente ao western, e volta a encontrar um novo mundo, já triste demais em comparação com o cinema clássico ou apenas lógico na mescla de motores, gasolina, índios, cavalos e tecnocratas invasores, mas com tudo intacto a explorar para além do que a vista alcança. «Apenas um monte de pedras e neve. E tristeza. Uma grande tristeza. Mas para os Navajos, ali é onde habitam os espíritos. A forma que a terra encontra para contar histórias», avisa uma super-mulher no centro do centro do nada que tudo comporta, indicando a direcção para todos os lugares e todas as horas. Do primitivo e directo anjo e demónio Tupac para o simbolismo e subtileza de Andrew Wyeth ou Hopper, Americanos por excelência. Até que todo o ecrã e toda a profundidade são abarcados pelo ser primitivo que percebeu Dibe' Ni'tsaa e as lyrics dos genocídios de bairro, ouvindo as orações e os escarros úteis de linguagem com o mesmo interesse – essa personagem monumental e indecifrável, de beleza, singeleza e imponência devastadoras é o homem Michael Cimino, muito antes do artista. Tal como tinha sido vândalo ou águia, gangsta ou Bancroft, aí, funde-se no absoluto - «I wrote a song 'bout every damned thing I've seen» cantou no seu livro “Big Jane” ou reinventou e levou a elevado lume Marta Ramos a partir de mais essa viagem a todo o rumor inexplorado.

O mergulho, salvação e ilusão finais comentam pacíficos os suicídios inaugurais e provam que estamos perante um cineasta tão panteísta e de alcance infinito como alguém plantado no seu tempo, investigador e personagem activo no teatro que o acolheu, um realista lúcido e atento, torturado e enternecido mas que não dá tréguas, imiscuindo-se nos pântanos do Mal para só daí tentar alcançar as águas de Deus, os Édens e a forma elementar. Cimino que amou Jackson Pollock e Rembrandt, o estilhaço e o composto, as tripas e o cristalino azul do oceano, o semelhante e o longínquo. Cimino que no meio dessa década explosiva fez a obra definitiva sobre os boyz n the hood (respect to Singleton and Ice Cube), da raivosa música ao bailado chamado basquetebol, da intolerância à justiça poética, estando toda a carne e toda a alma, toda a iconografia e mito, representados no seminal Jon Seda que lá no cúmulo também canta como sorri «Flying like an eagle through rainbows (...) the outlaw and the Indian flew (...) roll big chief roll...» do citado romance. “The Sunchaser” é o mais puro canto, porque panorâmico e com todos os tons e harmonias, do findar de milénio. Tudo nos convoca e oferece e todos os traçados e atalhos nos propõe. Que muitos não tenham querido ver, não pudessem ver cegos de tanta publicidade, ou tenham participado no apagamento tal como apagaram Cimino; que outros tivessem visto e arriscado e que mais ainda possam ir a tempo, é parte e todo da dádiva. O lago inesgotável.

É Bob Dylan, o romântico baladeiro e o selvagem, o místico assilvestrado e andarilho sem moda, que certo dia como Cimino percebeu que o hip-hop não era só antro de milhões e de pussys mas no essencial uma cultura e movimentação primitiva, original, autóctone, enfim, pertencente à terra e nascida nela, pioneiros com causa, cientistas, sedentos, escrevendo assim:

«Danny perguntou-me o que é que eu tinha andado a ouvir e disse-lhe o Ice-T. Ficou espantado mas não devia ter ficado. Uns anos antes, Kurtis Blow, um rapper de Brooklin que teve um êxito chamado “The Breaks”, convidou-me para entrar num dos discos dele, e familiarizou-me com aquela coisa. Ice-T, Public Enemy, N.W.A., Run – D.M.C. Aqueles tipos não estavam mesmo para aguentar tretas. Andavam a bater nos tambores, a partir tudo, a dar cabo do sistema. Eram poetas e sabiam bem o que estava na berra. Mais cedo ou mais tarde, estava destinado a aparecer alguém diferente que conhecesse aquele mundo, que tivesse nascido e sido criado nele... ser tudo aquilo e mais qualquer coisa. Alguém com uma cabeça talhada para ser o melhor da paróquia e com poder na comunidade. Ele seria capaz de se equilibrar só numa perna numa corda bamba esticada pelo universo e seria reconhecido quando chegasse – não há ninguém igual a ele. O público seguiria aquela tendência, e eu não os censurava. O tipo de música que eu e o Danny estávamos a fazer era arcaica. Não lhe disse isso, mas honestamente era o que sentia. Com o Ice-T e os Public Enemy a abrir caminho, um novo interprete estava destinado a aparecer, e nada como o Elvis. Não iria abanar as ancas e ficar a olhar para as rapariguinhas. Utilizaria palavras duras e trabalharia dezoito horas por dia.»

Blue como Cimino. O descomunal índio e a descomunal magia. Percurso sideral por essa música e profecia e liderança. Do sonho ao possível. Do fascinante ao absoluto. Da carne e da gravidade ao voo livre das almas. Para lá disso tudo. Do conhecido. Quem acredita, verá, tão velho e tão novo quanto isso.

Watch out for the Judas, man!

terça-feira, 30 de maio de 2017

Encontros com Tonacci

Para a Cristina Amaral


Eram finais de Março de 2015, o Andrea Tonacci e a Cristina Amaral chegaram com o Sérgio Alpendre de madrugada ao aeroporto de Lisboa onde os fomos buscar. Depois da habitual espera, os três aparecem e é o Tonacci que repara  no acenar do Zé e chama atenção para o Sérgio olhar na nossa direcção para nos identificar. Logo no primeiro contacto, a delicadeza de Tonacci e a simpatia da sua companheira cativaram-nos. Face ao cansaço patente, visto não terem dormido nada durante a longa jornada, propusemos que descansassem na casa da Marta, pedindo desculpa pelos muitos degraus que teriam de subir para lá chegar. Eles acederam sem reservas e “cochilaram” lá até perto do meio dia. Depois do merecido descanso, ao pequeno almoço a conversa versou sobre o silêncio de Lisboa (!?) em comparação com a cidade de São Paulo e alguns projectos futuros do Tonacci. Estávamos perante um jovem realizador.

O almoço estava marcado para minutos depois na cinemateca e por isso falámos mais do que comemos nessa segunda refeição. Apressadamente dirigimo-nos para o Fundão, com o resto dos convidados e alguns amigos que aproveitaram a boleia entre os quais Manuel Mozos e Vítor Gonçalves. Outro dos encontros mais bonitos deu-se na estação de serviço  a meio da A23, quando Tonacci, Cristina e Vítor entabularam a primeira conversa dando inicio a uma amizade que os levaria na semana seguinte a um passeio junto ao Tejo e a comer pasteis de Belém.

A cova da beira com as serras da Gardunha e da Estrela, assim como o ambiente bucólico da cidade do Fundão, conquistaram desde logo os nossos convidados do Brasil e nem o frio lhes estragou o entusiasmo. Os seus comentários e apreciações ao longo destes dias levavam-nos a olhar as coisas de outra forma, a ouvir e ver mais atentamente.

O bloco Andrea Tonacci estava programado para essa mesma noite e o filme escolhido era o inédito em Portugal Já Visto Jamais Visto que recupera material nunca usado com uma montagem “intemporal” da Cristina Amaral. Lentamente nos é revelada a dimensão intimista e as relações afectivas do realizador, especialmente para com o filho, culminando num dos planos mais bonitos do filme em que o mesmo aparece, ainda pequeno, empunhando uma arma no topo de uma montanha num crepúsculo incendiado.

Bastante surpreendente foi a escolha do filme de acompanhamento, Tatakox – Aldeia Vila Nova, um trabalho de uma tribo de Índios da Amazónia que, com Tonacci, descobriu um novo mundo nas possibilidades de ver registados os seus rituais ancestrais.   

A experiência foi bastante impressionante e até macabra, para nós espetadores protegidos pela cinefilia, visto tratar-se de um olhar virgem sobre uma realidade distante.

Pena que nesta ocasião não houvesse oportunidade para ver todos os filmes de Tonacci, principalmente os que testemunham a forte relação com os Indígenas. A luta pelos seus direitos levou-o literalmente a viver na selva com eles partilhando as suas dificuldades e colocando a sua própria vida em risco nessa demanda. Tonacci chegou a eles humilde e foi aceite como um dos seus.

A complexidade dos seus filmes neste contexto, expondo tanto as forças e grandezas como as vulnerabilidades e misérias destas comunidades, sem julgamentos nem santificações, é também uma imagem deste homem cuja personalidade revela mais a humanidade de um olhar que a militância de uma causa. Longe de qualquer antropologia forçada, a sua condição talvez corresponda mais às constantes deambulações de Carapirú no Serras da Desordem. Alguém sempre à procura de relações de pertença e de identidade mas com um sentimento permanente de insatisfação e uma sede de liberdade sem amarras.

Inesquecíveis para todos, foram as histórias que ele contou da convivência com os índios que parece ter sido tão importante para a sua visão das coisas. O apuramento dos sentidos necessário para a sobrevivência na selva culminou em êxtases místicos, praticamente alucinogénios, onde, na suspensão de uma cama de rede e perdido o chão, vislumbrou, no céu estrelado, uma paleta de sons e perspetivas densas de perdição no coração das trevas.

Após a vivência de algum tempo na selva o regresso a São Paulo era sempre difícil e a imagem que nos deu de uma parede branca olhada depois dessa experiência, descortinava uma data de tons e detalhes nessa superfície que no quotidiano de uma cidade passa completamente despercebida.

À saída da sala, e depois de se ter falado da incursão do Tonacci nas reservas índias nos Estados Unidos, onde John Ford imprimiu a sua lenda, o Zé falou-lhe de um sonho antigo de percorrer esse território, mas que ainda lhe faltava coragem, ao que Tonacci, de um modo firme e quase severo, respondeu que, muitas vezes, é preciso sermos irresponsáveis para cumprirmos os nossos objetivos.

Vivida a saga do Fundão, o casal planeava um ida ao Porto em parte motivada pela possibilidade de reencontrar Manoel de Oliveira, mas dado o estado de saúde do cineasta português, ficaram-se pelo passeio.

Uns dias depois voltámos a estar com eles na Cinemateca Portuguesa, onde fomos conduzidos pelos interiores neo-arabes do edifício numa visita guiada e acompanhada por José Manuel Costa. Nessa noite iniciou-se um pequeno ciclo que incluía os filmes já referidos sobre os Índios, entre outros da sua dispersa mas intensa filmografia.

No dia seguinte, a Cristina e o Tonacci voltaram a subir os quatro andares da casa da Marta para um almoço quase familiar a que se juntaram, entre outros, o Bruno e a irmã da Marta que muito conversou com a Cristina sobre educação e ensino dos dois países irmãos.

Nas conversas que iam e vinham entre a sala de estar e a cozinha alguém afirma que fazer um “filme a sério” é bem mais complicado do que aquilo que se supõe, visto que há que construir um argumento, filmar, montar, fazer a banda-sonora, limar as arestas, etc., etc. Ao que Tonacci, sempre disposto a ensinar como a aprender, a falar como a escutar, sugere que pode não ser bem assim, que tudo nasce organicamente do envolvimento afectivo e emocional com as pessoas e as coisas, inclusive a feitura de um filme... ou seja, das salas escuras para a luminosidade Lisboeta, é a repetição da leitura de O Desprezo de Alberto Moravia em Já Visto Jamais Visto, que só nos diz que há mil maneiras de fazer um filme como há mil maneiras de viver.

Aproveitando um momento mais intimista nessa tarde depois do almoço, o Zé mostrou-lhes os vídeos musicais que temos feito, e o Tonacci expressando o seu agrado por o que apelidou de “filmes de amor” aconselhou a não ter receio de tentar o grande plano, filmar o rosto mais de perto.

Nessa altura, cada encontro com eles já tinha o sabor de uma longa amizade, como se já nos conhecêssemos há muito mas ainda tivéssemos toda a vida a nossa frente. E era sempre o Tonacci que nos reavivava esse sentimento com uma data de planos para voltar a Portugal, para trabalhar naquele projecto de pesquisa sobre os índios europeus. Chegou mesmo a encontrar-se com historiadores e deve ter conhecido todos os alfarrabistas de Lisboa para arranjar bibliografia... os “sebos” lisboetas ganharam fama entre os amigos brasileiros. O Sérgio Alpendre cada vez que cá vem, deve livrar-se de roupa para poder levar livros.

Despedimo-nos com a promessa do regresso deles ou de uma ida nossa ao Brasil, mas com a possibilidade de ainda nos vermos no dia seguinte, pois eles voltariam à Cinemateca para mais pesquisa  antes da partida. E como foi precioso termos lá voltado para a derradeira despedida!!

«Sempre apareceram» - disse o Tonacci com aquele sorriso de criança, quando nos viu.

E seguimos com eles para a baixa para mais uma incursão “alfarrabistica” deles e nós na direcção do concerto da Marta em que o “Acaso” se ia estrear. Parámos no S. Jorge para um café na esplanada e foi aí, com o vento nas árvores da avenida, que a Marta lhes cantou o Espelho Quebrado:

Com o seu chicote o vento, quebra o espelho do lago
em mim foi mais violento, o estrago
porque o vento ao passar murmurava o teu nome 
depois de o murmurar deixou-me (...)

«Pena não termos gravado este momento» lamentou a Cristina a Tonacci depois de tudo terem escutado com a máxima atenção, concluindo rapidamente que foi bom não terem utilizado a câmara pois assim levariam tudo no coração. Já na avenida, antes dos beijos e abraços ficou no ar o seu regresso para continuarem as pesquisas, e a promessa de que os ajudaríamos a encontrar uma casa quando decidissem voltar.

Chegados a esta edição dos Encontros em que veremos Olho por Olho, Blábláblá e Bang Bang, filmes de inicio de carreira onde irrompe uma tal violência aleatória e irracional e comparando com  a doçura e a serenidade deste príncipe de modos simples e naturais que tivemos o privilégio de conhecer há dois anos, supomos que tenha talvez sido o tempo, a vida e a sede de conhecimento e de aproximação ao outro que conjugou tudo isso. A marca da sua calma, coragem e pulsão de vida simultaneamente será indelével em nós. Obrigado Tonacci.


Marta Ramos e José Oliveira
Maio 2017

[*texto publicado originalmente no Jornal dos Encontros Cinematográficos 2017]