segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
sábado, 27 de dezembro de 2014
"Panic in the Streets" está carregado e condenado com bufos, canalhas, delinquentes, vadios, espertos, párias, etc. Com uma peste que não é só a clínica que despoleta a intriga. Mas também se pode sentir que em tanto caso não é só maldade mas também desamparo, sem-saída eminente, desilusão; sentir que alguns desses imorais são bem mais honestos do que a inteligência autorizada. O vulto vertical, a estátua arrebatada do Clinton de Richard Widmark, imparabilidade que não pode adormecer ou morre - e quando adormece em fade para uma elipse sonhada é quando tudo se decide na encruzilhada da sua casa que o faz mover fora dela, num momento de uma pureza Borzagiana que reconhece grandeza e amor sublimado ao outro - vai correr cada cara de uma cidade inteira para resolver as coisas como devem ser e não com a mentira da publicidade e da evasão fácil. Num redemoinho onde todos são conservados dentro das bordas da perdição, é no momento mais lúcido e surpreendentemente pungente que o tal doutor descobre que ela (a danada perdição) é interior e todos a conhecemos. Num filme (num filme mundo) onde sem metafísicas ninguém consegue fugir, ninguém encontra portos seguros longínquos ou amanhãs de recomeços, o sentido de comunidade é estendido a toda a terra. Toda a terra. Assim, cortantemente, a moral: as coisas resolvem-se onde se têm de resolver, dentro das portas e sem as fugas e fúrias da cobardia (alguma da farinha do Spencer Tracy de "The Sea of Grass" já fazia parte deste odorífero e sufocante saco; e repare-se como começa Dana Andrews a acreditar no condenado de "Boomerang!", isto é, antes da investigação a ferros tirada, antes da salomónica clandestinidade). É um kazan de 1950, quatro antes de "On the Waterfront", e se o medo é capaz de vergar o mais inquebrantável, a permanência, o olhar convicto e a descida aos infernos do turbilhão pessoal vislumbram a revelação. Estes nunca se aninharam, jamais se fizeram fáceis pródigos ou espertos com causa. Em placas plangentes se torceram e estalaram, nas misérias e nos lodos bateram mais forte e se inteiraram até à casa arrumada final da cabeça levantada e do coração estripado. Pulsão da incompletude destinada e a luta com a claridade efémera. Luta... luta...
sexta-feira, 26 de dezembro de 2014
Em "Pinky" começa por ser a pele e a carne que ordena, a instituição, o mito. Depois, pela persistência e pelo ajuste de contas mais antigo e sanguinolento do que o supracitado testamento, tudo começa a retroceder até à nudez, ao pó e osso. Passa-se a olhar para os vazios, plana-se no etéreo suplicante, atinge-se o espírito amainado. Impõe-se, à força de vencer a morte, a eternidade. Olhar nenhures, suprimir o nada, chegar ao absoluto sintético da crença. E todos os seres, lugares, ideologias ou politicas ficam sem referente. Cinema é imprimir toda a vida no mesmo rolo - recuperar as coisas perdidas e impossíveis, apreensão divagante e precisa: a criança tão cansada aos ombros heróicos do pai, o colo primordial do seio, redenção do derradeiro abraço sem aviso, as olhadelas para o leito seguro, os olhares e revirares das vigílias e dos sonos vigiados, diálogos sem palavras, salvação mútua, a ascensão sempre nova do astro matricial como os declinares em sombras nas marcas gravadas na parede e na recordação; tudo o que o tempo diz que não é suposto possuir duas vezes. Uma última olhadela, só mais uma, e a eternidade. Elia Kazan recupera tudo isto e o seu movimento, a sua duração, quimérica - apelidado lirismo. Mas não, não é o lirismo forçado e escrito, sim aquele que rasga e resgata da treva arrumada. Kazan precisou do "long shot" de John Ford para apelar e conservar o sacral, aquilo que fica depois da passagem permitida. Aos grandes, pois desamarrados da época que só nela escavaram, foi-lhes permitido isso. Explodindo a tremedura exterior que larga do interior insondável. Deve ser esse o "método" fundamental dele e dos seus outros.
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
sábado, 29 de novembro de 2014
“The Missouri Breaks” abre com planos esclarecedores, o que, logo se vai perceber pelas motivações e pela atmosfera geral, completamente opacos. Planícies ondulantes e escarpas afiadas, mas veladas por um lirismo desconhecido, desconsolado, arrastado, destituído de promessas além da dor. Estações chamuscadas onde o enforcamento fica suspenso nas incertezas transitórias. Luz mais dilacerada do que coada, entre o insalubre e o desenxabido. Uma bruteza latente e na superfície, um excesso ao retardador, um organismo singular num corpo próximo da consumição. Entranhas do universo desgraçadas. Mesmo assim talvez Arthur Penn ainda tenha feito um Western, mas o que se passa naquelas bandas sem qualquer tipo de valor seguro vai muito mais além e muito mais ao para trás da codificação do cinema. Visto agora, apresenta-se totalmente liberto dos ganchos do seu tempo, onde as ironias, o cinismo e a poluição advêm dos ideais sujos e corruptos que instalaram (ou desinstalaram) o civismo por oposição à ampla natureza, a lei do mais forte, essa chamada selvajaria das fundações e das conquistas. Mesmo o suposto descontrole e cabotinismo da suprema criação (vislumbre) de Marlon Brando estava à frente da época, e só pode ser visto agora como a figura acabada da aplicação cega e aleatória da multa e da limpeza, tais abutres que escarafuncham os passeios e o íntimo. O conto é simples e até bem alicerçado no arquétipo mais prático, mas a desorientação tudo vacila e inflige às formas e ao mundo um mal-estar que se vai agudizando até à reciclagem. O bando de Jack Nicholson, o seu eclectismo diverso e oposto ao de Hawks, numa fractura e eliminação que a montagem persegue para lá de toda a concisão clássica, trabalhando do mesmo modo que o zoom da lupa de Brando ou dos acordes ribombantes, a câmara colocada ao nível das águas em afogamentos calados ou os desfoques românticos (em suma, todo um experimentalismo liberto e consumado que posteriormente os mtv decidiram caricaturar) só escancara o óbvio – já não há lugar para a comunidade briosa e a junção até à morte. Temos o par e o anseio, ainda temos e sempre teremos, mas é a mulher que quebra o jogo de sedução e se oferece antecipadamente e feiamente, é o supermacho que se esborracha de vergonha, tal como o intolerável da quebra das regras do duelo. Mas pior, qualquer destes casos pode ser reversível de um momento para o outro sem causa, sem razão e sem moral, de onde os homens e as vidas planam sem assentarem, até odes ao niilismo e ritualização do massacre. Penn, mais do que um dos mestres e andarilho pelo transitório, é um poeta do irrecuperável, e o que ele encena aqui tem raízes na violação do éden e expande-se até ao apocalipse. Dito isto, os seus maiores gritos sem raiva, silenciosos, tornar-se-ão cada vez mais agudos, insuportáveis, à medida que a ampulheta esvazia. O humor Shakespeariano que perpassa subtilmente ou cortantemente pela ossatura ri-se de ridículas ambições, do absurdo que não admite que tudo concorre e cavalga para uma fatalidade, então vai-se chacinar o ladrão e a lebre com a mesma crueldade e espectacularidade; de onde o tal bando parece a coisa mais inofensiva (lembremo-nos que é composto por estas personas: Randy Quaid, Frederic Forrest, Harry Dean Stanton, entre outras distinções). O final, o homem para um lado e a mulher para o outro, as promessas desacreditadas, o desamparo frio e o esbatimento até ao negro, são a severidade que só pode apelar ao castigo do mal – mais desamparado ainda do que o olhar final de “Alice's Restaurant”, mais funério do que as funéreas alvas capelas daquele, mais suplicante a que a reviravolta se dê. Penn aprisiona o mal na estética, faz ver e pensar, numa orientação mais clarividente do que pessimista. Daí, só uma nova resolução e um abate sem meias medidas ao irremediável. Um poeta do desejo. Esse desejo que se pode encontrar adormecido ou esquecido no olhar de Nicholson (que parece reunir num só toda a desilusão que acumulou em si no passado, dos percalços de uma carreira arrancada a ferros e dos percursos com Rafelson e Ashby; além disso, um trabalhador obstinado e que ainda traça tangentes ao certo e ao errado, que parece andar na pistolaria e no gamanço pelo arrasto da fossa progressista), casualidade que noutro contexto e hora poderia deixar brotar livremente a semente que o faz brilhar tão fugazmente que quase não se nota, esses sorrisos envergonhados como as tolices de criança com a menina que lhe piscou o olho. Num filme perfeitamente realista, e só por isso ainda liricamente desconhecido, mas que realidade…
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
Na recente e revolucionária apresentação - uma
velocidade, clareza e retaliação sem lugar para equívocos - que Abel Ferrara
fez do seu último trabalho, o profético e guerrilheiro “Pasolini”, este fez
saber que tinha acabado de assistir ao Messias de Rossellini, e que considerava
tal realizador tão maluco como aquele sobre o qual fizera um filme. Mais ainda,
segundo Ferrara, Pasolini achava o mesmo. Pode-se, para efeitos de constatação,
evocar o período com Ingrid Bergman e os diversos milagres para alguns,
patetices ou banalidades para outros. Entrar por aqui seria dividir o mundo
entre os chamados conscienciosos e bem pensantes – logo os que fazem da boa
imagem o credo capital – e os inocentes ou tontinhos que perante o terror da
realidade bruta se abrem à fulminação de todas as possibilidades. Aqueles que
já viram tudo e leram tudo e compreenderam tudo e os que estão permanentemente
com sede e nada sabem. Aconteceu que numa guinada de última hora a Cinemateca Portuguesa
trocou a “Viagem a Itália” por “Francesco, giullare di Dio”. Esse mesmo
protagonizado por um grupo de benfeitores que idolatram a pureza de Francesco e
o seguem até aos confins das suas descobertas e constantes ajustes, grupo que
tanto está próximo do divino sublime como das macacadas circenses. Entre a
terra e o céu, pela força do livre e belo fogo que urge atiçar, envoltos nos
flocos de neve da inexplicável alvura, vão comunicar com os passarinhos, bailar
mais leves que o próprio ar puríssimo dos ermitões, ser joguetes de gigantes
infantes trogloditas e perdoar sempre; mas igualmente roubam pernas de porco
para consolar estômagos profanos, beijam leprosos sem os limpar como os
limparia Deus, excitam-se perante a aproximação feminina. Mas o tempo e a pregoada
modernidade ainda não expurgaram tudo, mais de sessenta anos depois, muitos
ainda bateram com a porta da Félix Ribeiro por tamanha beatice ou por tamanha,
reforço, patetice; outros deixaram-se levar na tal maluquice que Rossellini e
Pasolini por boa ventura comungaram, não presos a princípios oficiosos da
religião ou da etiqueta mas sim, sem freios, na perene loucura e contradição
que consiste entregar-se à infinidade de possibilidades e combinações da
existência para tocar o essencial. Entre o credo e o desejo, vale a acção,
protegida pelo amor, medida de todas as coisas, finalidade de toda a
insurreição silente de Roberto Rossellini. A forma é pura, o conteúdo
resvalante.
“I always contradict myself” chegou pela noite e
é grito que só pode ser percebido na assustadora dimensão do escuro, pelas tais
horas propícias a questões soturnas. “João Bénard da Costa: Outros amarão as
coisas que eu amei” é mais uma invenção de Manuel Mozos, sem género e sem amparo,
que tanto se aproxima do fantasmático “Ruínas” como dele se desvia por completo
em dimensão ao retorno e à matéria. Um todo sem princípio nem fim, de corpo
presente. A operação é delicada mas é levada até às últimas consequências, sem
remorsos ou suplícios existenciais, e consiste em chamar JBC do outro mundo que
ele tantas vezes vislumbrou ou quis entrever para este nosso. Elidir as regras
e as fórmulas mortais, deixar circular a morte como único tema possível,
assomar o amor como o seu par e a sua superação, para tudo convergir e se fazer
uno no único centro inexorável – o tempo. Esse centro que nos cerca, nos devora
e nos devolve, como nos diz um ou mais filmes de fidelidade e desassombro que
por lá passam e aglutinam irremediavelmente toda a contradição; esse tempo a
que nós não perdoámos, escreveu JBC. Mais do que gestação, vida, morte e
ressurreição, trata-se de sair dessa imemorial e curta ciência para se entregar
à eternidade. E Manuel Mozos, generoso e radical como sempre, mete-se
literalmente dentro, até ao fundo, até ao fim da fita que a moviola desenrola
organicamente. Em frente às imagens moventes e aos sons transcendentes de meia
dúzia de filmes que chegam para tudo, pelas tintas e frescos só à primeira
visão fixos de todos os pontos cardeais, nas luzes e nas sombras das palavras e
das suas ligações subterrâneas e límpidas, do fulgor de Verdi ao fulgor de Minnelli,
em paisagens de moradas e de afectos, Mozos olha o que JBC olhou, colhe,
disponibiliza-se, tenta perceber, amar muito do que ele amou. Jamais pose de
egocentrismo mas sim de humildade e continuação, ilumina-se pela luz que JBC
escolheu para o moldar, ao seu interior e ao seu exterior como nos ditos de
Jorge Luis Borges que escutámos, luz essa que nos pode iluminar a nós do outro
lado do ecrã para lá da vicissitude e das aparências. Memória, dádiva, vida,
será o movimento essencial e o apelo à importância de cada um, de cada ser, de
cada herança. Relativização da hierarquia balofa a favor da natureza convulsa,
abertura ao que nos ultrapassa ao invés do ridículo da imposição. O sagrado do
conhecimento, essa poesia que nos chega de algures ou nenhures de outro tempo, finalmente,
a beleza que importa e que aqui inunda. Numa montagem que em infinitas
correspondências secretas e consanguinidades ineludíveis liga a tempestade do
deserto de Nicholas Ray às ondas da Arrábida, que funde para sempre a
Cinemateca Portuguesa aos fantasmas e às carnes de quem nela soube habitar e
dar a ver, nunca por nunca estamos à beira da cinefilia barata – essa ordenação
da vida por filmes ou essa falta de ambição – mas antes se escava desde os
escombros mais sensuais do que funéreos, ou sensuais porque aceite a condição
funérea, das latas de película ou dos altares dos mortos até à imensa
panorâmica final em que o etéreo e o vazio são preenchidos por Sophia de Melo
Breyner, por essa certeza de que os amanhãs permanecerão cantantes. Forma que
aceita todas as expressões, conteúdo seguro de si por toda a prova.
Entre Rossellini, Pasolini e Abel, João Bénard da
Costa e o Manel, muito nos salvámos, reconhecendo o bem e a beleza e toda a
outra ponta, não descurando nada disso e atirando-nos ao turbilhão. Demasiado humanos,
é o que importa, dizem-nos eles. Façam-se vontades dessas, se assim se entender.
domingo, 2 de novembro de 2014
Em "Hombre" os comboios e o dito civismo estão prestes a rasgar o Oeste do Western selvático, no último encontro que Martin Ritt teve com Paul Newman no papel mais fantasmagórico e estranho deste. Intriga mil vezes contada da caravana assaltada, dos brancos e dos índios aos tiros, do consequente jogo do gato e do rato com direito a duelo final. Ainda por cima baseada numa novela saída da pena de Elmore Leonard, tantas das vezes associado ou tratado em modo pulp ou pop. Então: nada de pós-modernismo ou revisionismo de género, nem mesmo o expressionismo e o brilho do "3:10 to Yuma" que importa. Nada de nada disso que referem as sinopses, antes todo o contrário, um entorpecimento e um desinteresse que lembra o que Monte Hellman faria pouco tempo depois em "Two-Lane Blacktop" ou o que Michelangelo Antonioni tanto nos meteu pelos olhos e orelhas adentro e à subtil força. Nada de nada das girândolas e dos foguetes de fim de um tempo que por estes anos e nos próximos marcariam um lado na chamada "nova Hollywood". A violência é seca, ao retardador, inesperada, por vezes perfeitamente arbitrária, sem uma lógica de causa e efeito traçada pela previsão da caneta de um argumentista catedrático. A metafísica e o arty que tanto projecto análogo destruiu e insuflou de orgulho, estão calcinados e reduzidos a cinzas pelo peso da concretização e prática em grau pleno. O lirismo, brisas ou chamas, brota encravado, preso, calcetado.
Os mortos, mortos estão, é o que diz o Hombre Newman (colagem de contradições ou inteireza libertária) à mulher que sempre o vai tentar devorar. Respondendo-lhe ela que isso é o que ele pensa também dos vivos. Mais para a frente vai-se colocar tudo em causa, de Deus aos céus, da infância ao fim, acabando por se vacilar nas questões e experimentos dos infernos. Em terreno onde se percebe claramente a falta de moral e de medida, de humanidade, o único molde de sobrevivência é adaptar-se a essa violência inaudita. Naquele grupo que parece uma amostra acabada do universo, comportando do mercenário político ao casal sem saída, vai-se lentamente percebendo, muito lentamente e a ferro e sangue frio, que só respondendo com dobros e pela circunstância se poderá avançar alguma coisa que seja. No fio da navalha e na transição, só se pode forçar o plano. Estranheza, categoria capital, pois é um finalizar das entranhas e das caves escaldantes de outro genial Delmer Daves, "The Last Wagon", até no paroxismo que vai de Richard Widmark a Newman; e um encontro com o Manoel de Oliveira pelos bastidores que conduzem a "Benilde ou a Virgem Mãe". O completo descascamento até à essência de cada enquadramento, onde cada ângulo, cada tempo, suspensão, composição, geometria, linha e poeira, sonoridade concêntrica, a abrupta distância entre o muito perto e o muito longe da lente, fazem coro silencioso com os corpos que na viragem reiniciam. Princípio de mundo, como a fusão final ao para trás.
sábado, 1 de novembro de 2014
"Nada à vista, e a longa, longa duração da vida natural de um homem. Setenta anos a arrastar um corpo obstinado por esse mundo fora e a iludir as suas constantes exigências. Setenta, como na Bíblia. Setenta anos. E ele só tinha vinte e seis. Pouco mais de um terço disso. Bolas." Passagem de "Sartoris" que entra sem meias medidas numa das questões primordiais de Faulkner e que ilumina a soturna ambiguidade do fabuloso "The Long, Hot Summer". A obsessão pelo tempo, pela herança, pela continuidade da raça, a imortalidade. E a longa e penosa caminhada das acções e das decisões que tanto peso adquire no "E ele só tinha vinte e seis". Oposição de sempre que na fustigante duração e respiração da estação do filme se concentra nas figuras de Paul Newman e de Orson Welles, na sua distância e partilha. Confronto e joguete de Deuses a que o olhar colado e penetrante do primeiro e a cólera do segundo traçam a dimensão e as marcas da ambição. Nesse condado concêntrico de clamor de sexo, de predadores soltos e de cheiros inebriantes, animalada em cio, batimento sexuado e assexuado, oferendas proibidas e cruzamentos sanguíneos e genéticos; espaço onde a moral e o código é o do mais forte e obstinado, a aritmética vai cair e a aprendizagem (calejamento, visita da morte, desassombro) vai levar a dizer uma das faces da moeda que deseja viver eternamente em alegria.
"Wanter Man", como diz a música que galga da Califórnia ao ol' Cheyenne. Paul Newman, o último topo de gama da família Quick, sangue na guelra e personalidade meu dito meu feito. Vamo-nos encontrar com ele da maneira como costumam acabar as suas demandas, a fugir. Corre e navega Mississípi adentro e estaciona onde lhe parece bem e virgem. E é chegar, ver e vencer. Orson Welles é o patriarca dos Varner, e não tendo mais dinheiro ou terra para palmar, só pensa na descendência. E aqui entra o vértice fundamental, Joanne Woodward, Clara de graça e aura, que nos seus vinte e poucos anos só pensou em livros, copos de leite, e género másculo que nada mais lhe pode oferecer do que ela já conhece. Entre o torso despido de Quick e o universo em que se fechou, utiliza o desprezo e a dissimulação para apagar fogos que a devoram. De volta desta ocorrência e problemática, todo o pecado e devassidão que atiça catarses e fúrias. E filhos arruinados e lançados às feras como no livro sagrado. Viúvas e viúvos sedentos e já sem o sacramental do juízo. O Povo com um olho no burro e outro no cigano. Lavagem de roupa pestilenta em praça pública. Pecados mortos e soterrados a respirarem incandescentemente. Para o atamento se encontrar na infância. Do Sul não mitificado em museu de cera, pois Ritt consegue casar o génio estético de Minnelli com a aspereza de Rossellini, e basta a sequência do desembarque para queimar manuais, o olhar da confissão ou ida ao fundo do baú do ser acontece quando Quick a Clara se despe sem sacar as vestes. O vagabundo que pegava fogo a palheiros revela-se naturalmente falho e completo na recordação e ressurgimento da figura paterna, centro de tudo isto. Do Sul, dizia, para aquilo que certo dia Agustina-Bessa Luís escreveu sobre um poeta nosso: "Vê-se-lhe nos olhos que obedecem a um prognóstico perigoso, o prognóstico da infância perdida. (...) Ele não pode viver como um homem, não tem lugar no mundo, nem carreira, nem amor para com nada, é um espectro de si próprio, um espelho sem reflexo nenhum. É um Dorian Gray por dentro." E depois de remexido e desempoeirado o cofre, pode começar uma nova história.
Lembro-me de alguém próximo me dizer dizer que só quem pegou em pavimento às costas durante um dia inteiro ou barras pesadas do género poderá perceber a arte (de artesão, doutor da vida) de Martin Ritt. Que é uma arte trabalhosa e simples que se vai erguendo peça a peça, com paciência mas em sentido, sabido e vigilante, até algo se poder dar como acabado satisfatoriamente. É assim aqueles que investem a fundo e sem grandes dúvidas desviantes. Que mantêm a cabeça a funcionar numa missão. Orson Welles e a contenda por um movimento total e impossível. Paul Newman e uma modernidade outra que ferve por dentro. O que apara as lágrimas numa feérie cegante e o que as expõe de modo lancinante. E tal conjugação comporta e cria estes quadros maravilhosos de uma posta em cena que paradoxalmente tantas vezes parece dispensar as palavras, lembrança da poética e do poder de síntese do mudo, quadros líricos e densos, essa pintura das paixões; com o elo estilhaçado que não quebra o peso da unidade mas que antes percorre, semeia, destrói e constrói por dentro. Empreendimento firme como os credos dos maiorais e tremente como a hesitação da juventude, "The Long, Hot Summer" agarra as duas pontas e sustem-se nos eternos retornos e nos ciclos. Para nos deixar com o lar da continuação nossa e da luz ainda rara que vai matar a escuridão. E para voltar ao início: Ritt e os seus comuns apanham e dão a ver a brevidade e flutuação disto tudo e o momento sem tempo, a perfeição. Incomensurável medida.
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
Pessoas estupendas que perdem a cabeça... trocam a vida fácil por uma bem pior. Como os que falam, falam e falam, expulsam tudo cá para fora e são felizes... e aqueles que guardam o que importa e o que pensam não importar dentro de si, e sofrem. Alguns, no acaso. "Sleep, My Love" é Douglas Sirk já inteirado na América e ainda conservando um perfume letal e letárgico que se pode provar apuradíssimo no soporífico "La Habanera". Existe neste de 1948 uma fúria e um afogueamento que já adivinha aberturas para "Written on the Wind" e familiares próximos - e o primeiro plano do comboio contra a câmara define logo o ritmo e a sanguinidade - bem como uma demência Hitchcockiana que está nos pactos, trocas e perdição carnal, o que não impede uma fluição venenosa que tanto larga das ambições podres dos protagonistas que armam o cerco como de um meio feito de electricidade domada, reflexos manietados e clarões cúmplices. Uma infame claridade que mina a natural escuridão necessária, que a marca para uma convocação de perigos indizíveis, reflexos sem espelho, violação do inviolável. Na cena mais prodigiosa do filme - que é um dos momentos altos das vicissitudes do cinematógrafo e dos perigos que este pode chamar - Claudette Colbert sai do sono para uma vigília suicidiária, e volvendo-se fantasmagoria põe-se pronta para saltar dos agudos píncaros sem rede, guiada pela voz e mente que tudo orquestra. Toda a dura sombra da maquinação começa a abanar, as leves vestes brancas tremem, a faustosa casa que é personagem fulcral como em "Rebecca" agiganta-se monstruosamente. O imóvel torna-se vivo e a salvação no instante final volta a acender uma realidade admissível e sabida. E é a imagem que devora todo o filme e que o irá reconstituir na conclusão.
Um pé no expressionismo e outro na maciça matéria com que a raiva luta. O antes e o depois de Sirk em confronto. Terminando com um plano ao para as estrelas onde o par certo se encontra abraçado com promessas de mundo novo. O confluir e o somar de tudo isso é mesmo capaz de ir para lá desses delírios a que depois chamaram de melodrama. "Sleep, My Love" vai ainda mais longe e fala do sono e do sonho da lógica contra a realidade escancarada. Dos que pedem para outros irem ao nosso cerne e nem notam o chamamento tão real que não se acredita. Por isso me fez algures lembrar o derradeiro Stanley kubrick de "Eyes Wide Shut", nesses prolongamentos entre consciência e inconsciência, nesses cruzamentos e finalmente na amálgama. Novalis escreveu: "Toda a descida em nós - todo o olhar para o interior - é, ao mesmo tempo, ascenção-assunção e olhar para a verdadeira realidade exterior", tudo isto já seria aqui credo ou ousadia. É o dia e a noite que se penetram e interpenetram, como os corpos tão desejosos do mal e do bem. Só ficam perguntas e caminhos cheios de estilhaços, para uma assunção pela ousadia. Quando se perde o medo de olhar o medo. É Sirk ao ouvido.
Obrigado ao amigo PR.
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
Existem alguns realizadores, como algumas pessoas e como tanto na vida, os quais não importa saber a sua exacta dimensão ou categoria. Robert Mulligan é um dos casos mais mal resolvidos de todo o cinema americano, pois basta sentir a silenciosa progressão e o afloramento filme a filme para estar entre os preciosos. Sidney Lumet pode ter um percurso desigual mas criou uma intransigente fortaleza moral que o protegeu em cada fase. E o que me traz por agora, destes três aquele que sempre se disse mais ligado à televisão e às suas técnicas e narração. Chama-se Alan J. Pakula, e bastava ter conseguido manter "All the President's Men" em sussurro no seu alcance desmedido para merecer ser revisto na intimidade.
Revisão e intimidade, foi o que me aconteceu com "The Parallax View". Exemplo cimeiro (embora na categoria secundária) nos compêndios da americana da década de setenta, representante da paranóia, da difusão e da escuridão ideológica e social desse fluxo e paralisia (primeiro e fundo paradoxo) de tantas revoltas e ressacas, foi de tal maneira esculpido e depurado pelo tempo que pode agora ser visto como jornada de procura e perdição de um homem por aí, neste tanto que assusta. É do mesmo ano do tão triste como e impressionante "The Conversation", e todo o arrepio de Gene Hackman nesse Coppola pode ser o de Warren Beaty - o homem acossado, a ter que mexer-se, sem saber bem o como o porquê e o resto, sem nenhuma metafísica que não essa. A estagnação em movimento, sem ser preciso recorrer às câmaras lentas e aos obturadores manhosos dos topos contemporâneos.
Se basicamente este Joseph Frady é uma antecipação (ou seguimento, se não ficarmos pelo cinema) do John Reed de "Reds", o ser humano antes do profissional que tem um demónio no corpo que o atrai sempre para abismos e guerras, estamos perante uma sombra que já se acomodou a ela mesmo, um alguém pregado na fatalidade do presente. Apanhado numa teia galáctica, tensa e suja como podem ser as da era moderna, essas geopolíticas e ditas aglutinadoras, Frady já há muito se desfez de toda a chamada vida familiar ou privada, da mulher no canto do olho ou do desejo que não o da morte em trabalhos e pelo estômago a moer. Deixa-se ir na corrente, esquece o bom senso que se nota o habitou, joga o jogo, e perde todas a certezas pedidas à redenção. Podíamos ter conhecido melhor este tipo e acontecer uma relação bendita, mas já não se foi a tempo. Um outro nível e profundeza de uma solidão altamente maquinada e diabólica. O estouro de luz final em surdina aflitiva é a violência intolerável, indesculpável, que tanta inteligência abstracta aplicou. A arma abandonada, o olhar de terror e a execução meio aleatória enunciam todas as hipóteses - do anjo ao assassino.
Para lá de bons e maus e moral conforme. Para lá dos arranha-céus e da paz dos rios e dos campos, da horta ou das estufas, das velhinhas oposições e dialécticas entre sombra e luz, umbrais negros e luminoso lar, a treva acabada é mesmo a confusão de todos os valores e promessas. Assim Abraham Lincoln irá assombrar e ser fragmentado em espalhafato e marcha, banal peça num circo rafeiro onde toda a iluminação e acordo se encontram jogados na má definição, sem sorte, pelas arestas e no grão que Gordon Willis não faz mecanicamente mas sim organicamente. Veracidade incómoda. Chegam a irromper os cânticos Fordianos, é verdade, mas já nada exalta ou aquece.
O resto, que é outro tudo, são os olhos e as olheiras de Frady, o seu vivo e o seu morto, as refeições na penumbra, os convidados inesperados que o congratulam pela tragédia, relações condenadas, pele deslavada a lixívia dos cadáveres e luz tetricamente sobrexposta, cegueira geral, a saída do abismo e regresso constante a ele que é o movimento prometido desta era. Esse mal-estar, essa falta de posição na cadeira ou na cama ou no centro, respiração que não sai bem, entre o vegetal e o sonâmbulo. A lei de Pakula finalmente liberta do espartilho da linguagem e da formatação, constantemente à procura do ângulo que ainda se safe. Mesmo que tosco, que pobre na grande linhagem. A intimidade do perto e a repulsa. O vasto paradoxo final.
terça-feira, 28 de outubro de 2014
O lar onde a morte se hospeda. A vida suspensa numa longa noite de cura. Sono de entre este e o dia de amanhã. Assim encontrámos Barbara Stanwyck no debate com o seu médico em "The Other Love", talvez ainda sem saber do lume da paixão que os aquecerá no fechamento do filme. Mas tão bom comportamento e saúde dessa cansa. Aparece Richard Conte num acidente e só acidentes e proibições lhe promete sem saber que não deve. Faz saber e redescobrir à pianista famosa que quanto mais rápido e perigoso se viver, melhor. Fogem. E ela entrega-se a ele, ao vício e à musica numa consumição sem horizonte. O vórtice vai-se torcendo e ela descobre que não anda a escutar o coração mas antes o apelo do risco. E volta para os altos Suíços onde o tal protector feito por David Niven se faz uno com ela. E de muitas possibilidades, uma ou duas em que acredito: ou a amizade com a doença à maneira de "A Montanha Mágica"; uma união tamanha que acredita toda a esperança para lá do resguardo puro - por isso o piano toca sem freios. Ou já a morte e o visionarismo do cinema no campo da plenitude sem nome ou estado - Dreyer e a absoluta fonte do Borzage "Song o' My Heart", ou do "Smilin' Through" que se encontra com "The Ghost and Mrs. Muir" algures a planar.
Numa construção que expulsa qualquer fundido de montagem - o hoje cross dissolve ou vulgo "preservativo" - mas antes procura sempre uma correspondência entre os elementos - as cortinas bailantes com as sombras fugidias, os discos partidos com a dança da tentação ou o som do teclado com a aflição e o nervo - o que está em causa é algo tão velho como a consciência - o viver o agora sem pensar nos resultados, ou apelar a algo como a eternidade. Em todo o caso, o engano e a utopia, a mágoa e o zénite. Questão grave que o movimento deambulatório acentua em perdição. Ou salvação. Sem respostas.
Dos altos, do frio e dos sanatórios para as poeiras e as fúrias incendiárias das podres sementes do ódio que tudo querem envolver em "Ramrod". André De Toth utiliza a câmara para desvendar meticulosamente a partilha do homem com o meio e logo o poder que dá voltas na tripa, demorando-se em contemplações (mesmo que frenéticas e desfocadas) que parecem querer compreender o incompreensível. Da faca e esquadro duro dos policiais de outras andanças, uma esquadria mais resvalante mas tão concreta como aguentada por um olhar que insiste, que nunca dissimula ou descansa na metáfora. Joel McCrea, demasiado terno em palco viscoso, logo vamos saber, entregou-se ao álcool e à desgraça por perder os seus, e tudo o que quer saber é se o deus da terra em que vagueia tem razões para tal. Em torno, a mulher víbora que lhe lança do veneno feiticeiro que sabemos, o amigo de infância (Bill, génio de sorrisos e lágrimas misturadas que só poderia morrer com o cobarde tiro pelas costas) que jamais consegue assentar mas que não lhe vira as costas, o xerife convicto como o granito imperturbável ou os cavalos fieis, e a mulher alva que do primeiro sorriso lançado a McCrea e logo a ela devolvido nos dá a provar do que está certo e errado. Todos esses resistentes assomarão na clareza da moral derradeira.
Corpos não param de tombar e de implorar junção. Dança ofegante entre o dia que parece revelar demais e a noite cava que preside à grande ruptura. Ramificações turvas em perseguição do recto. Para se chegar ao ponto limite onde toda a lei tem de ser ultrapassada pelo sentimento e pela justiça a sangue conquistada. O aço, o gelo e a imobilidade ecoante nos confins do tempo explodem no plano de preparação do tiro capital e na execução. Volta e reviravolta onde fica claro, na eterna escuridão da velha questão, o perigo da mistura de deuses e homens no nada. De onde o milagre, o além e as transmutações assentam por inteiro nas vontades e nas matérias. E o regresso a casa que se contrapõe ao outro filme de 1947 que De Toth parece fechar da mesma forma sendo tudo diferente. Entre os altos e os rasteiros, todos os embates.
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
Há
nuvens negras que se deslocam apressadamente para o sul
há
filas de canas que oscilam e fazem ao vento a elegante reverência da vassalagem.
ou
pelo menos da boa educação tudo se anima vibra soa na noite
O
vento vai vencendo obstáculos dispõe cada vez de maior espaço
anexa
pela violência territórios que ainda há pouco lhe opunham certa resistência
ensaia
agora a sua vastíssima valsa na ampla sala da noite
canta
uiva produz esse inimitável som impossível de procurar nas páginas dos
dicionários
afina
a voz para as mais agudas notas do seu canto dilacerador e íntimo
Virá
o dia muitos corpos afastarão finalmente da fronte os últimos véus do sono
muitos
olhos procurarão a luz sentirei mais minhas as pontas dos pés
o
canto quezilento e quebradiço dos pássaros no pátio nas árvores nos beirais
disputará
o lugar à voz do vento nos meus ouvidos
Voltarão
primeiro um por um depois em bandos os cuidados
as
pontas dos cabelos compridos de mulheres jovens entrar-me-ão para a boca
mas
é provável é mesmo muito provável que algures nalguma parte profunda e
perdida
do meu corpo
continue
vazia arejada e arrumada com o pó limpo uma sala exclusivamente reservada à
única pessoa verdadeiramente importante
até
que um dia eu para sempre me veja disperso no vento e não passe
talvez
de um secundaríssimo instrumento na complexa e simples orquestra do
vento
RB
RB
Comedy-drama about life on a not particularly important ship of the US Navy during WW2. A sinopse do imdb ao "Mister Roberts" de Ford, Henry Fonda, Joshua Logan, Thomas Heggen, Frank S. Nugent ainda, e obviamente Mervyn LeRoy, é perfeita. O barco da lavagem de roupa suja, da espera e do tédio, das mulheres ao largo, da prisão, da má fama. Uns que não pensam nisso tais como aqueles que não pensam na vida e na importância dela, e os que dentro dela, como dentro da guerra que neste filme nunca vemos, se pelam por tocar. Fonda sonha e tem visões de si no campo de batalha desde o príncipio, não por medalhas ou heroísmo, mas pelo fogo dentro dele, incêndio junto com solidão que o verga e desvitaliza. Está inaceitavelmente triste e dividido na pasmaceira mas ao lado dos jovens que cedem ao maior dos tiranos por cima deles, a escabrosa personagem de James Cagney. Os ferimentos e questionamentos do seu lugar ligam-no bastante ao Wayne de "Rio grande" - há uns dois planos dele como lobo descarnado junto da amurada que só Ford pode ter filmado - mas na cena crucial em que ele cospe verdades à cara de Cagney (que só foi desenhado assim para a cena e o exemplo ter mais sentido) sobre carreirismos e orgulhos bélicos, revelando que o maior mercenário pode estar atrás de uma secretária, expondo-o ao ridículo em rima com o pano de fundo em que vivem ou trabalham, é a catarse e a validação - tal negociação da liberdade dos homens do lixo tornou-o ali o terno guerreiro. Depois ainda se perde, literaliza o ódio ao chefe, imola-se mesmo perante o destino irreversível. Mas o seu espírito abraça tudo e a atitude final de Jack Lemmon faz parte da herança dos grandes.
Fonda queria tudo como na peça original, essa verdade, os Homens e o Meio como tinha visto e feito no teatro. Ford só queria saber da potência e beleza da luz, das piadas baixas com enfermeiras e bebedeiras, do supostamente secundário. E o verniz estalou, caiu molho entre os dois, nunca mais se falaram. O filme mais problemático de cada um. Não vou dizer que não importa o que LeRoy filmou pois é tudo Fordiano, como não me estenderei sobre o genial "Young Cassidy" que ele nem cheirou e que é um topus da sua obra. "Mister Roberts" faz jus ao título, e o que importa é o momento agudo e fino em que esse coração grande e despedaçado escuta o célebre discurso depois da tempestade - as pontadas, o calor e o frio, a contradição e a grande farsa a falarem ao íntimo. Poucas vezes se senteu tamanha desamparo, tamanha profundidade da desilusão, e a transfiguração. A precipitação seguinte, a tempestade derradeira e a moral brotam da ferida da inadaptação. Inaceitável estado perene da raça, círculo sem saída, que as supostas manobras de diversão de JF apenas tornam humana demais, contrapondo ao habitual choro e enlevo oficial a força do olhar de frente e do sorriso. Entre o rosto magoado demais da cena nuclear e a bandalheira que ninguém quis, tudo cabe. As utópicas serpentinas da abertura, e a ressurreição final. Evidentemente que o seu filme seguinte devastaria o resto.
sexta-feira, 10 de outubro de 2014
Assim como "Anatomy of a Murder" era segundo Serge Daney o périplo de um parvo (carinhoso) que entre duas de pesca e o regresso à barra do tribunal reaprendia a amar; ou "The Big Steal" a odisseia de outro apressado que não consegue cortar o cabelo na tamanha vicissitude do ofício; "Gideon's Day" trata da Autoridade e da Desautoridade que até aos confins da noite não satisfaz a mulher com o salmão tão desejado. E, nestes casos como tanto em John Ford por este período, as pequenas coisas da vida chegam às grandes e umas e outras já são a mesma coisa no novelo geral. A côdea a saber tão bem como o miolo. As altercações entre Lee Marvin e John Wayne na Taberna Irlandesa como o episódio de Dodge city em "Cheyenne Autumn", não esquecendo descabelamentos à maneira do pedido de casamento marítimo no "Submarine Patrol", comportam o essencial. Desvios da grande engrenagem e da grande história. Estradas secundárias piores que carreiros. Um valente prego no pão na tasca desafamada.
Esquecendo os topos, as irrisões, os escapes, talvez fosse de bom proveito ver as cores de Gideon's em relação às cores de "What Price Glory"; o classicismo à frentex e Shakespeariano de Joseph MacDonald / a guinada do Inglês Freddie Young, companheiro de David Lean e da sua paciência que aqui mais parece um revolucionário operador free cinema em sabotagens camufladas. Para lá, ou cá, nunca o saberemos, da leveza, dos tais episódios sem grande importância ou gravidade, dos peixes fora de água (já não falo só do salmão) ou das lições exemplares, um emaranhado que destapa a rotina, cede posse ao inesperado, troca os eventos e a sua ordem capital; suspende o fluimento e privilegia um ângulo, uma questão e uma sombra alheia em relação ao que vai ganhando peso; enfim, num relativismo que não nos diz que isto não é assim tão mau ou que o sentido é não ter sentido, antes que no meio deste caos à sempre lugar para o quadro em que o empenhado Inspector acaricia e recupera instantaneamente nos braços da sua amada. O beijo da salvação. Manto das redenções. Aparição da tal luz inextinguível da confiança e do amor.
Que saia a correr novamente e que o final rime com os princípios e os meios na tal aceitação do "que remédio", que o peixe na última da hora vá ser comido por outra boca... a cavalgada prossegue, as caravanas continuam a rumar a Oestes novos, os quartos e o amor sempre no contra-campo que será sempre o centro do campo. Ford a mandar às urtigas os arqui-inimigos? Não juro por nada, mas já em 1958 e fora do seu terreno e da sua lenda, ultrapassava a afinação do thriller contemporâneo, o humor macabro do seriado, a manipulação narrativa dos masterminds (continuo a falar de JF e não de Hitchcok). No ano a seguir regressou aos lados e à poeira da Califórnia para filmar como se filmam politicas e junto ao desassombro do Irlandês-Americano de Spencer Tracy. As voltas...
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
Minor ou Major, mas ressalvando já que o acho espantosamente à altura de tudo o resto, "Mary of Scotland" é uma das viagens mais indómitas e delirantes da obra de Ford, que continua a escapar aos chamados Fordianos por aparentes desvios incontroláveis, daí muita da sua rejeição. A romântica e acossada Hepburn imprime o seu carácter e a sua vontade à forma, ao ritmo e ao tom incandescente como irredutível de um todo sôfrego mas imponentemente erigido. A marcha vai da surpresa inicial e da paz podre, sempre com a inquietação ontológica a acariciar o repouso (anunciada nos grandes-planos nunca tão grandes), cavalga para a vetusta inveja e para o desafio ao fanatismo vestido de profecia moderna, liberta-se e desfaz-se em enganadores acordos e nas pagas fatais; para antes da abismal e pacificadora - é este paradoxo a chave - ascensão aos céus, ter o seu momento absolutamente perfeito do instante fugaz. Momento que complementa em êxtase e eternidade com o filho arrancado dos escritos. Estrelas negras, cadentes, brilhantes, ofuscantes, talvez propícias, recantos sombrios da infância e do segredo do berço convocados para pincelar o que nunca vemos e já só nos chega pela palavra e pelo rosto indomáveis; são esses mistérios universais que tecem e ordenam as sombras, que obscurecem os quadros em vertiginosas composições numa consonância com o tremente presente, são elas ainda que desafiam destinos. Vinte dias de amor a valer a plenitude, esses que jamais se trocariam por séculos de Reinação. E o amor e a morte para lá da lógica comum, numa irracionalidade que quebra todas as barreiras dos tempos e dos espaços, toda a física, resiste e ultrapassa a prova do toque da carne e da posse do corpo, atravessa e devora raios, trovões, árvores e firmamentos caídos, mares e rezas em suplicio final. Êxtase dos sentidos e dos fundos. Romantismo anárquico (mas com foco bem claro) e aniquilador (o que não mata endurece) da mesma fibra de Ethan Edwards, em limites e deslimites que anunciam toda a pancada de um futuro François Truffaut (é comparar a "L'histoire d'Adèle H.") ou que para trás falam a Barnet ou Murnau. Camilo. Schubert. Inarrumável. Pulsante.
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
Culminando a espantosa colheita iniciada em "The Shamrock Handicap", continuada com "3 Bad Man" - e terá de se contar sempre com "The Blue Eagle" que só por si convoca o terreno mais ferido e complexo de Ford - "Upstream", numa mascarada triste como poucas por tão clara exposição, fecha o círculo das vontades e dos humores humanos tão incisivo como. Um mundo dentro de um mundo onde o surreal opera subterraneamente como que advindo da cena do hospital que em Shamrock tudo fazia planar para outros níveis; e no qual a ânsia de poder jorra com um brilho mais letal do que a pólvora de Bad. Finalmente, já a aparência se tornou infinitamente mais importante do que a convulsão. O galã já esmagou Hamlet. E as câmaras só apanham o sorriso ensaiado e o gesto composto, abrindo todos os campos para as monstruosidades e deformações de "The Last Hurrah". Por isso há que abrir os olhos para o estupefacto Ely Reynolds, ver onde ele se posiciona, o que revela, escancara, do que foge, e o dito tão enigmático que solta pouco antes de se esfumar. You´ve done lost me, secreto mas tão significativo e orgânico como os vírus do seu outro filme com Ford. O mesmo vírus.
domingo, 5 de outubro de 2014
(lembrança de treze meses)
Aquele homem que está ali, tanto ano no estrangeiro, e não pára...podia gozar a reformazita descansado... valha-o Deus, mas também...se pára, morre. Tantas vezes escutei disto sobre o homem da enxada que nem aos domingos a arrumava, como sobre o habilidoso das ferramentas que tinha a garagem aberta dia e noite, que se tornou fácil reconhecer esses Homens de Vida. Em "E Agora? Lembra-me" reconheço pelo menos dois dessa estirpe, que não são somente os feitores (bricoladores) do filme, mas na mesma medida bombeiros, cientistas, amigos, músicos, homens da câmara de filmar, pioneiros, sábios de barbas, já muito antigos e de sorriso infantil. Que não se entre pelos romantismos mais pueris adentro, não se trata de depender de fazer filmes para viver, mas sim no confronto com a danada da morte que dizem a certa altura não estar longe, continuar a fazer o que na longa vida sempre se fez, igual a si mesmo, subir rio acima com o dedo partido. Muito longe da sumptuosa curtição da convalescença à Benjamin ou Walser e afins, sempre a dar-lhes trabalho. Aquando da morte de João César Monteiro de chofre - trata-se de um bloco sem tempo - em vez de exaltações costumeiras e reverenciais, corta-se para o máximo de barulho e de raiva, à violência assim responde-se com outro tipo de violência, interior, e atinge-se o sagrado.
Ruy Belo, instantâneos caseiros, Francisco de Holanda, Santo Agostinho, GoPro última geração, dslr ou reflex, 360º esvoaçante ou plano fixo, um segundo e um minuto, anatomia terminal, Serge Daney, fórmulas nucleares e esmiuçamento cerebral, jardinagem, montagem sonora e escapadelas à cinemateca, memórias fugidias, presente severo, alegrias convulsivas, misérias, manual de instrução e anarquia, aritméticas com crenças, o mal do remédio e o remédio do mal, íntimo e público sem falso pudor, mil e uma voltas numa respiração e movimento cósmico que afasta qualquer estratégia deliberadamente intelectual, é assim pois é o que se tem à mão no momento como que oferecido dos altos, o que se adivinha em comunhão com o que se filma e junta, o primado do instinto e do selvagem. Como o da garagem que arranja o escavacado relógio e humilha o MacGyver ou o Tio Manel que rega as batatas de forma inaudita.
Se quiser aproximação, e acobardando-me com o sacramental Cinema, já nada se via e ouvia assim desde Robert Kramer, desses poucos que podem utilizar a tecnologia de ponta da alta definição para compor harmonicamente e sacar do telemóvel ou do bloco de notas (ou contentam-se em "filmar com os olhos", tão bela expressão, tão bela atitude) no instante decisivo para salvação, penitência, vingança, ou porque só isso mesmo pode ser. Sabem e tal, como os riscadores das cavernas, os cultores dos borrões ou os mestres do claro-escuro, que a questão nunca esteve na ferramenta, neste caso na resolução da máquina ou na categoria da lente, mas sim na emoção, verdade à prova de crítica. Por isso, trema o quadro, esteja a exposição mal feita ou note-se o salto do profissional para o amador - assim como Ford em "The Searchers" depois do mais belo plano do mundo com Wayne a pegar Wood ao colo em direcção aos céus corta para um rabo escandaloso a ser picado - estarão sempre certos, só o coração comanda. "E Agora? Lembra-me", como tudo o resto destes profissionais da vida, vive no impacto do presente e na regeneração perpétua, olhando todas as coisas e retribuindo.
sábado, 4 de outubro de 2014
A beleza desamarrada. Puritanas destapadas, erótica animalística, chicote na carne, pulsão violadora. O gótico em Stroheim, como o horror e o inconcebível da apoteose final do leito da morte e do nojo em boda, irrompe da constituição e fatalidade nossa dentro deste palco. Sem precisar de recorrer às prateleiras do exotérico, aos simbolismos poeirentos, ao tacão falso de autor. . . Nem o para além do bem e do mal justifica. Tão certo como respirar.
sexta-feira, 3 de outubro de 2014
"The Shamrock Handicap", 1926. Jamais alterar a personalidade conforme a circunstância. A certeza de Sean Thornton. A dureza de Ethan Edwards. O calor de Rutledge. O espanto do real. A grande caminhada e a ternura na cozinha. Todo o arco a decorrer naturalmente.
Ou, por Jean-Claude Brisseau:
“A coisa que mais me toca no cinema de Ford, algo que desapareceu completamente no cinema, é o facto de os personagens serem confrontados à decepção e ao fracasso, serem obrigados a digerir uma humilhação – diríamos agora uma ferida narcísica – e continuarem a viver assim mesmo, sem chorar como pirralhos. Tenho o sentimento de que no cinema actual os personagens obedecem unicamente às leis dos sonhos. É inimaginável hoje conceber um filme como "They Were Expendable". Os personagens de Ford aguentam, continuam mantendo uma certa grandeza."
quinta-feira, 25 de setembro de 2014
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
"Ao mais sublimemente louco desses finlandeses - Peter von Bagh, de quem creio já ter falado nestas crónicas e de quem prometo falar mais de espaço um dia destes - devo a surpresa da semana, pois que é ele o director da tal revista "Filmihullu" (se julgo saber o que é "filmi", o que possa ser "hullu" escapa-me completamente). Diz-se - e eu confirmo - que é o maior historiador de cinema vivo (provavelmente morto também). O projecto - borgesiano ou averroisiano - de escrever uma vera história do cinema mundial (todos os tempos, todos os países) é dele e só podia ser dele. Já vai consideravelmente adiantado. Nos domínios da erudição cinéfila, é a única pessoa a quem eu reconheço o direito de me corrigir. Temos aliás, de há muito, um "private joke" muito nosso. Numa banal conversa sobre cinema perante estranhos, eu largo uma informação propositadamente incorrecta. Ai dele, se não ma corrige, como implacável professor a incerto aluno. O vice-versa é idêntico. Ninguém me acreditará se eu disser que, hoje, não vinha para falar dele."
João Bénard da Costa, Back to the 70's
João Bénard da Costa, Back to the 70's
quarta-feira, 20 de agosto de 2014
"Não é a primeira vez que alguém pega numa pena para escrever estas
palavras: os tempos mudaram". Esta obra fala da percepção da mudança dos
tempos. Pastores, homens de letras, poetas, entre outros são os
verdadeiros ternos guerreiros entre todos os seres. Homens que eram
actuais, modernos, que viviam na sua época e não apenas tinham nascido
nela. Homens que conheciam a actualidade e não obedeciam a hábitos,
razões e palavras obsoletas. "O papel do artista é o de reformar o mito
do impossível e o de criar a tragédia".
Agustina Bessa-Luís, início do prefácio de Ternos Guerreiros.
Agustina Bessa-Luís, início do prefácio de Ternos Guerreiros.
This Is the End: James Gray on 'Apocalypse Now'
August 11, 2014, Rolling Stone
August is upon us, which invariably means withering heat and a hell of a lot of bad cinema. Worn out by the time the dog days hit, the studios enter hibernation mode, concerned mostly with counting their early summer blockbuster returns (or licking their wounds). There's hope around the corner — the fall festivals loom — but that moment isn't here yet. The last month of summer is usually barren.
Except when it isn't.
It certainly wasn't 35 years ago — August 15, 1979, to be exact, when Francis Ford Coppola's Apocalypse Now premiered for American audiences. I was quite young at the time, but I still remember how high the stakes seemed. It had been five long years since Mr. Coppola had directed three monumental triumphs in a row: The Godfather, The Conversation, and The Godfather: Part II. He had made himself the King of the New Hollywood, and his talent and ambition appeared limitless. Naturally, many in the press couldn't wait for him to crash: "Apocalypse Never" repeatedly crowed one gossip columnist, and you can bet Coppola and his team at American Zoetrope heard all the snickering, loud and clear. It's easy for us now to forget the amount of shit Coppola had to take, but it was brutal. Rumors flew about how calamitously wrong the production had gone, and the unending editing process more than hinted at the possibility of artistic disaster. So when the lights came down inside the Ziegfeld Theatre in New York that August day, it's fair to say the moment was fraught.
And let's be honest here: The pre-release reviews were mixed. A slightly different version had screened the previous May at the Cannes Film Festival, and it had won the prestigious Palme d'Or prize. But controversy and doubt remained. Maybe it was the war — or should I say The War? Vietnam gave the movie a political charge, and people had their expectations. They hoped, perhaps, for some kind of explanation. They hoped for pat condemnations. They hoped for answers.
There were none. For Apocalypse Now poses questions without any attempt to provide definitive answers, and the film's profound ambiguities are integral to its enduring magic. In fact, the very sensuousness of the movie, its immersive and visceral impact, seduced me before I could recoil from its horrors. Think, for a moment, of that majestic opening: Initially, there is nothing but that strange, frabjous, now-famous, noise. Thuk thuk thuk thuk thuk… Next, the shot: palm trees, blue sky, orange smoke — and a helicopter, in slow motion, drifting wasp-like across the frame. Cue the music.; when Jim Morrison pronounced this to be "The End," an enormous explosion (bigger than any we'd seen before) lit up the theater. By the time the flames had settled, that shot had declared itself one of the greatest opening images in cinema history. Amazingly, the film that followed proved no less remarkable.
We went upriver with Captain Willard (Martin Sheen) as he pursued Colonel Kurtz (Marlon Brando), and somehow, we felt as if we were going along with him, deeper and deeper, so far that turning back would be impossible. The images were crepuscular, lush — IMAX before there was IMAX. Verdant greens, ferocious oranges, scum-bled blues, the darkest of blacks, all captured by the great cinematographer Vittorio Storaro with surpassing brilliance. How frightening it all was, how invigorating!
Yet the film is more than a visceral experience. Its core narrative idea, based on Joseph Conrad's novella Heart of Darkness, provided Coppola and co-screenwriter John Milius with a true dramatic spine. And setting the adaptation amidst the terrors of the Vietnam War allowed them to explore the idea that our civilization had pursued its own catastrophe. The film introduces us to American might in all its mechanized glory, then methodically reduces that power to nothing. Our violence had rebounded against us. Apocalypse Now, like so many national myths, showcases the intimate connection between the establishment of order and the violence upon which that order is founded.
The film is indeed self-consciously mythic, and with its transcendent imagery, it enters the cosmic realm. Captain Willard is an enigmatic hero, and we need the narration (written by Dispatches author Michael Herr) to help us know him. Surely the man has his dark side: he kills a wounded Vietnamese woman and hacks Colonel Kurtz to death. But by the end, Willard retains enough of his soul to protect the innocent, childlike Lance (Sam Bottoms), and here we see that the human connection endures. The film's experience expands in this moment, becoming vast and uncanny — yet familiar. Apocalypse Now does not alienate us or deconstruct itself. In fact, it welcomes us in. We all but participate in the strange water skiing and surfing obsessions and the hallucinatory Playboy Bunny show. We take macabre pleasure at witnessing the chaos at Do Long bridge. And of course, we are utterly thrilled by Colonel Kilgore (Robert Duvall) and his amoral attack on the village — a justly famous set-piece, scored to Wagner's "Ride of the Valkyries," that compels us even as we shrink from it. We become complicit in darkness, and this is perhaps the film's greatest coup.
The epic scale of the picture (pre-CGI, of course) does not cease to astound. That much, at least, was celebrated back in 1979, but to me this is damning with faint praise. Too often a logistical achievement is confused with artistic excellence. Great art doesn't demand great scale (A Woman Under the Influence, anyone?), but there's no denying that Apocalypse Now dreams big, and it matters. So when the last act came, some considered it a letdown.
Critics called the final 30 minutes, dedicated almost exclusively to Marlon Brando's improvised ruminations, pretentious and muddled. I don't agree. Coppola chose to show Kurtz as a god who has cast himself into the underworld, wrestling with the gravest of ethical dilemmas. Once again, we're in Willard's shoes, bearing witness to the Colonel's disintegration in the face of the tragic choices his country has made. Our torturous passage through Kurtz's struggle is precisely what makes us aware of our own complicity. True, the sequence risks exceeding the boundaries of traditional formal neatness, but I don't care. "Perfection" can be its own limitation, and sometimes a "flaw" may contribute mightily to a work's ultimate power. (A work without flaws is a work without ambition.) The Roman poet Horace often inserted lines in his poetry that stuck out like a sore thumbs, forcing the reader to confront the established pattern; Horace's aims were different, and more profound, than the reader initially thought they were. Apocalypse Now functions in the same way, its makers committed to a rare and glorious vision.
Take a look at the landscape since this film was released: How many have even tried something this monumental? It may well be the last of its breed, and for this reason, among many others, I regard Francis Ford Coppola as a national treasure. "There is no art without risk," he has said, and it's all we can do to hope that we follow this courageous ideal. I might well go to the jungle to make a movie soon, and I've often joked that given the difficulties of such an enterprise, any advice from Mr. Coppola likely would be a simple "don't go." But in truth, this is a dumb joke, because no one is more inspiring and encouraging in both word and deed. There are many pretenders. Francis Ford Coppola went out and did it. He gave us a work that lives and breathes still, its vitality an enduring force. And whenever we question our own reach, we need only look to this magnificent movie, in all its untidy and coruscating beauty, as the ultimate example.
August 11, 2014, Rolling Stone
August is upon us, which invariably means withering heat and a hell of a lot of bad cinema. Worn out by the time the dog days hit, the studios enter hibernation mode, concerned mostly with counting their early summer blockbuster returns (or licking their wounds). There's hope around the corner — the fall festivals loom — but that moment isn't here yet. The last month of summer is usually barren.
Except when it isn't.
It certainly wasn't 35 years ago — August 15, 1979, to be exact, when Francis Ford Coppola's Apocalypse Now premiered for American audiences. I was quite young at the time, but I still remember how high the stakes seemed. It had been five long years since Mr. Coppola had directed three monumental triumphs in a row: The Godfather, The Conversation, and The Godfather: Part II. He had made himself the King of the New Hollywood, and his talent and ambition appeared limitless. Naturally, many in the press couldn't wait for him to crash: "Apocalypse Never" repeatedly crowed one gossip columnist, and you can bet Coppola and his team at American Zoetrope heard all the snickering, loud and clear. It's easy for us now to forget the amount of shit Coppola had to take, but it was brutal. Rumors flew about how calamitously wrong the production had gone, and the unending editing process more than hinted at the possibility of artistic disaster. So when the lights came down inside the Ziegfeld Theatre in New York that August day, it's fair to say the moment was fraught.
And let's be honest here: The pre-release reviews were mixed. A slightly different version had screened the previous May at the Cannes Film Festival, and it had won the prestigious Palme d'Or prize. But controversy and doubt remained. Maybe it was the war — or should I say The War? Vietnam gave the movie a political charge, and people had their expectations. They hoped, perhaps, for some kind of explanation. They hoped for pat condemnations. They hoped for answers.
There were none. For Apocalypse Now poses questions without any attempt to provide definitive answers, and the film's profound ambiguities are integral to its enduring magic. In fact, the very sensuousness of the movie, its immersive and visceral impact, seduced me before I could recoil from its horrors. Think, for a moment, of that majestic opening: Initially, there is nothing but that strange, frabjous, now-famous, noise. Thuk thuk thuk thuk thuk… Next, the shot: palm trees, blue sky, orange smoke — and a helicopter, in slow motion, drifting wasp-like across the frame. Cue the music.; when Jim Morrison pronounced this to be "The End," an enormous explosion (bigger than any we'd seen before) lit up the theater. By the time the flames had settled, that shot had declared itself one of the greatest opening images in cinema history. Amazingly, the film that followed proved no less remarkable.
We went upriver with Captain Willard (Martin Sheen) as he pursued Colonel Kurtz (Marlon Brando), and somehow, we felt as if we were going along with him, deeper and deeper, so far that turning back would be impossible. The images were crepuscular, lush — IMAX before there was IMAX. Verdant greens, ferocious oranges, scum-bled blues, the darkest of blacks, all captured by the great cinematographer Vittorio Storaro with surpassing brilliance. How frightening it all was, how invigorating!
Yet the film is more than a visceral experience. Its core narrative idea, based on Joseph Conrad's novella Heart of Darkness, provided Coppola and co-screenwriter John Milius with a true dramatic spine. And setting the adaptation amidst the terrors of the Vietnam War allowed them to explore the idea that our civilization had pursued its own catastrophe. The film introduces us to American might in all its mechanized glory, then methodically reduces that power to nothing. Our violence had rebounded against us. Apocalypse Now, like so many national myths, showcases the intimate connection between the establishment of order and the violence upon which that order is founded.
The film is indeed self-consciously mythic, and with its transcendent imagery, it enters the cosmic realm. Captain Willard is an enigmatic hero, and we need the narration (written by Dispatches author Michael Herr) to help us know him. Surely the man has his dark side: he kills a wounded Vietnamese woman and hacks Colonel Kurtz to death. But by the end, Willard retains enough of his soul to protect the innocent, childlike Lance (Sam Bottoms), and here we see that the human connection endures. The film's experience expands in this moment, becoming vast and uncanny — yet familiar. Apocalypse Now does not alienate us or deconstruct itself. In fact, it welcomes us in. We all but participate in the strange water skiing and surfing obsessions and the hallucinatory Playboy Bunny show. We take macabre pleasure at witnessing the chaos at Do Long bridge. And of course, we are utterly thrilled by Colonel Kilgore (Robert Duvall) and his amoral attack on the village — a justly famous set-piece, scored to Wagner's "Ride of the Valkyries," that compels us even as we shrink from it. We become complicit in darkness, and this is perhaps the film's greatest coup.
The epic scale of the picture (pre-CGI, of course) does not cease to astound. That much, at least, was celebrated back in 1979, but to me this is damning with faint praise. Too often a logistical achievement is confused with artistic excellence. Great art doesn't demand great scale (A Woman Under the Influence, anyone?), but there's no denying that Apocalypse Now dreams big, and it matters. So when the last act came, some considered it a letdown.
Critics called the final 30 minutes, dedicated almost exclusively to Marlon Brando's improvised ruminations, pretentious and muddled. I don't agree. Coppola chose to show Kurtz as a god who has cast himself into the underworld, wrestling with the gravest of ethical dilemmas. Once again, we're in Willard's shoes, bearing witness to the Colonel's disintegration in the face of the tragic choices his country has made. Our torturous passage through Kurtz's struggle is precisely what makes us aware of our own complicity. True, the sequence risks exceeding the boundaries of traditional formal neatness, but I don't care. "Perfection" can be its own limitation, and sometimes a "flaw" may contribute mightily to a work's ultimate power. (A work without flaws is a work without ambition.) The Roman poet Horace often inserted lines in his poetry that stuck out like a sore thumbs, forcing the reader to confront the established pattern; Horace's aims were different, and more profound, than the reader initially thought they were. Apocalypse Now functions in the same way, its makers committed to a rare and glorious vision.
Take a look at the landscape since this film was released: How many have even tried something this monumental? It may well be the last of its breed, and for this reason, among many others, I regard Francis Ford Coppola as a national treasure. "There is no art without risk," he has said, and it's all we can do to hope that we follow this courageous ideal. I might well go to the jungle to make a movie soon, and I've often joked that given the difficulties of such an enterprise, any advice from Mr. Coppola likely would be a simple "don't go." But in truth, this is a dumb joke, because no one is more inspiring and encouraging in both word and deed. There are many pretenders. Francis Ford Coppola went out and did it. He gave us a work that lives and breathes still, its vitality an enduring force. And whenever we question our own reach, we need only look to this magnificent movie, in all its untidy and coruscating beauty, as the ultimate example.