quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O REGRESSO DE BUDD BOETTICHER, por Bill Krohn

 

CARTA DE HOLLYWOOD:

O REGRESSO DE BUDD BOETTICHER

Por Bill Krohn[i]

Cahiers du cinéma – nº 401, Novembro de 1987




Oscar Boetticher Junior, mais conhecido por Budd Boetticher, é um cineasta familiar aos cinéfilos que aprenderam a amar o cinema através dos géneros: B.B. foi um dos mestres do western, juntamente com o seu actor fetiche, Randolph Scott. A vida agitada de Boetticher e o seu amor sem limites por cavalos e por touradas afastaram-no de Hollywood durante muitos anos. Preferindo a natureza e os animais, viveu durante muitos anos no seu rancho, não muito longe da fronteira mexicana. Alguns conhecem um dos seus mais belos filmes, Homens na Arena (“Bullfighter and the Lady”, 1951), poucos viram Arruza (1971), rodado em 1967, sobre a vida do famoso toureiro, que era seu amigo. Mas ninguém em França viu ainda o último filme de B.B.: O meu reino por um… (“My Kingdom For...”), que encerra a sua trilogia tauromáquica. O festival de Amiens prestará homenagem a Budd Boetticher de 12 a 22 de Novembro, com a presença do realizador. Uma oportunidade ideal para reencontrar um dos cineastas mais cativantes do cinema americano.

 

 

Com a conclusão do seu último filme, O meu reino por um…, que lhe levou nove anos a realizar, e o restauro do seu primeiro grande filme, Homens na Arena – reduzido a 87 minutos por John Ford antes da sua estreia em 1951, agora reconstituído para a sua duração original de 2 horas e 20 minutos por David Shepard, do Sindicato dos Realizadores da América[ii] – fechou-se finalmente um círculo na carreira de Budd Boetticher.

 

 

UMA TRILOGIA TAUROMÁQUICA

 

O meu reino por um… é o último de uma trilogia de filmes tauromáquicos que pontuou a carreira de Boetticher a um ritmo lento de um a cada dezassete anos – Homens na Arena (1951), Arruza (1968) e O meu reino por um… (1985). [Boetticher não conta O Magnífico Matador (“The Magnificent Matador”, 1955), que ele diz ter feito apenas para provar que Anthony Quinn conseguia suster um grande filme com apenas a sua presença]. Estes filmes são o lado oculto de uma obra que os espectadores conheceram sobretudo através de um punhado de obras-primas: seis westerns com Randolph Scott [Boetticher não conta Luta sem Tréguas (“Westbound”, 1959)] e o seu filme de despedida dos estúdios, The Rise and Fall of Legs Diamond (1960) – todos realizados num período incrivelmente curto de quatro anos, de 1957 a 1960; Muitos consideram este período como o crepúsculo do que hoje, em retrospectiva, se designa por cinema “clássico”.

 

Recordemos brevemente a história destes três filmes e as circunstâncias muito variadas em que foram produzidos. 1951: Oscar Boetticher Júnior, cavalheiro toureiro e realizador de filmes de baixo orçamento para produtoras como a Republic e a Eagle Lion, aventura-se num projecto ambicioso. Sob a égide do seu amigo John Wayne, o produtor do filme, realiza uma versão ficcionada das suas aventuras de juventude, o tempo em que aprendeu a tourear no México. Robert Stack, no seu primeiro papel importante, e Gilbert Roland são os actores principais deste filme, a equipa é essencialmente mexicana e alguns dos toureiros mais conhecidos do México colaboram no filme. O filme mal tinha sido terminado e foi logo sepultado pelo estúdio, até que Boetticher procurou a ajuda de John Ford, um realizador que admirava mas que nunca tinha conhecido, que viu o filme, gostou dele e concordou em intervir se conseguisse cortar «40 minutos de merda sentimental». Montado por Ford, o filme foi lançado e nomeado para um Óscar de Melhor Argumento Original. A carreira de realizador de Boetticher estava lançada.

 

1957: Depois de uma série de filmes interessantes feitos para a Universal, alguns dos quais dignos de nota, Boetticher realiza outro filme produzido por John Wayne, 7 Homens Para Matar (“Seven Men from Now”, 1956), o primeiro dos westerns com Randolph Scott, e aceita mesmo fazer vários em série, porque, como cada um dos filmes tinha de ser rodado em dezoito dias, tem liberdade para fazer viagens ao México no seu tempo livre, durante as quais começa, com o seu operador de câmara, o grande Lucien Ballard, a filmar o maior toureiro do México, Carlos Arruza, nessa altura no apogeu de uma segunda carreira triunfante como rejoneador[iii]. Finalmente, em 1960, desgostoso com a tremenda «falta de profissionalismo» com que se deparou durante a realização de The Rise and the Fall of Legs Diamond, Boetticher pega nas 8 bobinas de filme que já tinha editado e, com a sua mulher Debra Paget, mete-se num Rolls Royce branco e parte para o México para terminar Arruza. Isto levou dez anos, ao longo dos quais ele se separou de Debra Paget, enfrentou uma greve que paralisou a indústria cinematográfica mexicana, perdeu todo o seu dinheiro, foi parar a uma prisão federal e até foi internado num manicómio pelo seu próprio agente, que tentou forçá-lo a regressar a Hollywood para fazer Os Comancheros (“The Comancheros”, 1961). Concluído em 1968, após a morte de Arruza num acidente de carro, Arruza foi vendido à Embassy Pictures, que sabotou a sua distribuição.

 

1976: Boetticher e a sua nova mulher, Mary, confortavelmente instalados no rancho onde criavam cavalos, não muito longe da fronteira mexicana, preparam uma espécie de sequela de Arruza, filmada em 16mm por Lucien Ballard, protagonizada pelos Boetticher e pela sua discípula Gloria Ayling, uma rapariga de catorze anos a quem ensinam a arte do rejoneo. O projecto morre quando a família de Gloria se muda para o Oregon, mas é reavivado sete anos mais tarde quando conseguem uma nova jovem discípula, Alison Campbell. Adaptando o enredo à mudança de pessoa, Boetticher muda também de meio: quando o seu novo operador de câmara, Gary Graver, demorado numa filmagem com Orson Welles, não aparece com a equipa no dia de uma actuação a ser filmada para o filme, Boetticher obriga um visitante do rancho, equipado com uma câmara de vídeo, a cobrir o evento. Depois transfere para vídeo o que já tinha sido filmado em película e edita tudo com um videogravador no seu quarto. Com exibição prevista na televisão nos Estados Unidos e em salas de cinema no estrangeiro, O meu reino por um… é uma obra híbrida que também recorre a recortes de jornais e fotografias para evocar diferentes fases da vida de Boetticher, bem como a quadros fotografados pelos Boetticher em museus por toda a Europa, de forma a mostrar a importância dos cavalos ao longo da História. Robert Stack e a sua mulher Rosemary fazem de si mesmos, visitando o El Cortijo Lusitano[iv] e assistindo à importante mostra em que Alison é apresentada ao público pela primeira vez, juntamente com outro representante da nova geração, Carlos Arruza Júnior. O filme começa com excertos de Homens na Arena e Arruza, e termina com um sonho em que Alison se vê a estrear-se como rejoneadora.

 

Muitos continuarão a preferir os seus filmes de género, mas é na sua trilogia tauromáquica que Boetticher cumpre as suas verdadeiras ambições artísticas. Isso já era visível em Arruza, cujas afinidades com a pintura impressionista não podem deixar de ser notadas, e, na sua forma completa, Homens na Arena revela-se uma obra de altíssimo calibre, pelo tom sóbrio e discreto das cenas dramáticas, pela partitura lírica de Victor Young e pelo ritmo majestoso, maravilhosamente controlado, que alterna as sequências diurnas e nocturnas, jogando com a rica paleta de tons que caracterizou o último grande período do preto e branco em Hollywood. (É significativo que Boetticher tenha lutado com a Columbia por poder usar novamente o preto e branco, nove anos mais tarde, em The Rise and Fall of Legs Diamond, no qual ecoa o lado sardónico de Homens na Arena). Quanto a O meu reino por um…, com a sua mistura de técnicas, as complexas estratégias narrativas, o seu uso espontâneo do simbolismo e a discreta utilização de técnicas modernas (nomeadamente o freeze frame, que aqui serve para substituir as transições), é, dos filmes tauromáquicos, aquele que menos hesita em seguir um viés estético – talvez porque expõe sem ambiguidade o grande tema nas entrelinhas da trilogia: a pulsão estética e as suas raízes na agressão e na luta pelo território.

 

 

O MEU REINO POR UM…

 

Com a emergência deste tema, O meu reino por um… traz uma inovação considerável em relação aos filmes anteriores. O que os une, no entanto, são os dois elementos que unificam a trilogia: um tema declarado, a tourada, e uma forma de a filmar, essencialmente documental – pois mesmo Homens na Arena inclui sequências inteiras de touradas filmadas em estilo documental, que Ford tinha optado por eliminar. O problema-chave, a forma de filmar as touradas, parece ter sido rapidamente resolvido. O que impressiona logo, quando se vê a trilogia como um todo, é a medida em que Boetticher se manteve fiel a si próprio, mudando de técnica, de época e de sistema de produção, utilizando literalmente todos os meios à sua disposição para avançar com o seu projecto. É surpreendente, por exemplo, que em 1951 já utilizasse a câmara lenta (32 fotogramas por segundo, como nas reportagens mexicanas sobre touradas) para fins didácticos e estéticos, como faz ao longo de O meu reino por um…, com a ajuda da moderna tecnologia de vídeo.

 

Há uma passagem em O meu reino por um… em que a fidelidade de Boetticher ao seu estilo proporciona um delicioso efeito de rima neste filme cheio de ressonâncias nostálgicas: durante a última actuação, mostra-nos Carlos Arruza Júnior a executar um a dos manos contra o tourino, uma máquina com rodas e chifres usada em todas as demonstrações de rejoneo no rancho El Cortijo Lusitano; depois, enquanto murmura uma observação sobre “memórias”, insere uma imagem de Carlos Arruza-pai, a fazer a mesma manobra contra um touro vivo, filmado exactamente do mesmo ângulo. «Em Guadalajara», explica Boetticher, «Carlos empregou o seu par de banderillas como nunca, e eu tinha a câmara na melhor posição para o filmar: sendo eu próprio um toureiro e rejoneador, sabia quando ia acontecer, porque tinha visto que o touro tinha uma querencia[v]. Automaticamente, coloquei a câmara na mesma posição quando o Carlitos espetou as suas banderillas no touro falso. Ao ver parte do filme aqui no meu quarto, pensei: ‘Meu Deus, fiz este mesmo plano há 36 anos!’ Foi aí que começou este filme. Quando se conhece bem o tema, acaba-se sempre por tratá-lo de uma certa forma, não se consegue aperfeiçoá-la mais.»

 

Mas nenhum destes filmes é um documentário no sentido estrito, mesmo que todos viessem alargar o conhecimento do público para um desporto controverso, sobre o qual pouco se sabe fora do círculo de aficionados. De facto, Boetticher parece também ter resolvido desde o início o problema de combinar ficção e documentário, sem alienar o público, dando-lhe abertamente lições: Homens na Arena foi o primeiro filme em que o toureiro não era espanhol – era americano. «Não se pode imaginar Tyrone Power em Sangue e Arena[vi] virar-se para John Carradine, que cresceu em Sevilha com ele, tendo ambos lutado com touros desde que tinham idade para andar, e dizer: ‘Esse é um touro de lide’. O outro diria: ’Não me digas, isso sei eu!’ Mas quando Robert Stack diz a Gilbert Roland: ‘Manolo, como é que sabes se o touro vai ser bravo?’ Roland pode explicar-lhe, e assim quem está a ver o filme começa a saber umas coisas sobre touradas».

 

Como se esta metodologia não fosse suficiente para exorcizar o demónio do didactismo, a transição do documentário para ficção é encenada no próprio filme. Homens na Arena começa com cenas de touradas enquanto um narrador (Ward Bond, omitido nos créditos) fala das touradas como um jogo com a morte, e apresenta Manolo Estrada (Roland) e os seus colegas, expondo o ponto de vista omnisciente do narrador em off, simbolizado pelo ângulo da câmara da arena, um ângulo muito elevado. De repente, intervém uma nova voz, na qual irrompe o sarcasmo: «Oh, tu e o teu dicionário de espanhol... os lugares mais caros! O que tu gostas é de 'muy alto', Liz?». A mudança é um pouco desconcertante, porque não nos apercebemos imediatamente de que um comentador substituiu o outro e temos a impressão de que o sarcasmo se dirige a quem está a ver, até que um plano oposto nos revela que a nova voz e o ângulo de câmara elevado são os da personagem do filme, Barney Flood (John Hubbard), um produtor de teatro americano de visita ao México com a sua mulher Liz (Virginia Grey) e o seu jovem sócio John Regan (Robert Stack). Compreendemos em retrospectiva o que aconteceu: a voz do narrador foi substituída pela de um turista infeliz, cuja falta de espanhol da mulher o levou ao pior lugar da arena – um lugar vertiginoso a partir do qual é impossível ver o espectáculo, e que oferece uma perspectiva que, alguns segundos antes, tínhamos confundido com a de um deus. Sobreposto às imagens da acção que se desenrola em baixo está o contorno de uns binóculos. São os binóculos através dos quais Flood e Regan observam o admirável domínio que Estrada exibe. Na cena seguinte, Regan pede a Estrada que lhe ensine a arte de tourear.

 

Nesta sequência, Boetticher manifesta a sua aversão ao uso convencional e didáctico da voz-off de um comentador, preferindo o ponto de vista do leigo, daquele que nada sabe (Flood, depois Regan, o seu companheiro vivaz), porque é um substituto conveniente para o público e porque a sua personagem serve de ponto de partida para a ficção. Sabendo isto, ficamos inicialmente surpreendidos ao ouvir, em Arruza, a voz-off de Anthony Quinn a comentar, a explicar, e mesmo a falar no lugar dos verdadeiros protagonistas, cujas vozes nunca ouvimos. Mas neste filme, Boetticher usa a convenção do comentário em voz-off contra si próprio, um pouco como Godard quando “baixa o volume” em Aqui e Algures[vii]: «O público aprende o que é o rejoneo, Quinn explica-o enquanto Carlos aprende a montar. Mas quando chegamos à última tourada, há meia hora sem uma única palavra: assistimos a uma tourada»

 

Em O meu reino por um…, Boetticher usa Robert Stack exactamente como fez em Homens na Arena. Ele conta a história de Gloria e Alison, através de flashbacks, a Stack, que fica assim a compreender o espectáculo equestre a que vai assistir no dia seguinte (este ocupa um lugar equivalente ao da tourada no final de Arruza): «Precisava de alguém que não percebesse nada, que me fizesse perguntas para eu lhe dar explicações. Por isso, fui buscar o antigo coro grego – Robert Stack. Portanto, não me dirijo ao público. O público nunca quer ouvir quando nos dirigimos directamente a ele.»

 

O meu reino por um… começa também como um documentário: a voz de Stack (não identificado) profere a epígrafe do filme, retirada de “Da equitação”, de Xenofonte. Mas quando a voz que narra se torna mais concreta (falando na primeira pessoa, recordando encontros passados com Boetticher, recordando também a primeira experiência de Stack como toureiro, representada no ecrã por um excerto de Homens na Arena), o que esta comenta é intercalada com imagens sem comentários que mostram a descida de um avião privado que se prepara para aterrar no aeroporto de San Diego. Ali, impassível, Carlos Arruza Júnior (não identificado) aguarda o avião. A identificação progressiva da voz-off e a descida do avião, que traz o comentador para o campo do filme, retirando-o do espaço imaginário a partir do qual até então fazia os seus comentários, constituem dois movimentos paralelos. Terminam ao mesmo tempo, no momento em que o avião pára, quando Arruza Júnior abre a porta e pergunta ao casal que está lá dentro: «Sr. e Sra. Stack?» E assim é revelado o nome do passageiro principal. A partir deste momento, Stack deixa de ser um narrador e passa a ser uma personagem no ponto de ser ensinada.

 

Mesmo que a diferença entre o actor e a personagem que interpreta pareça extremamente ténue, uma vez que o actor se interpreta a si próprio, a primeira cena em que Stack aparece, aquela em que sai do avião, é puramente ficcional: não reconhecendo Carlos Arruza Júnior, que não vê desde a infância, Stack não aprecia o facto de Boetticher ter enviado o seu motorista ao aeroporto em vez de ir pessoalmente. É só depois de ser conduzido aos estábulos de Boetticher, onde o seu malicioso anfitrião está a escrever um texto de boas-vindas, que ele se apercebe da piada.

 

Esta piada permite a apresentação de Arruza Júnior, mas é também uma indirecta a Stack, que tardou sete anos a visitar o El Cortijo. As fotografias que vemos na cena seguinte, fixadas na parede da sala de arreios, representam todos os amigos que visitaram Boetticher desde que ele começou uma nova vida em Ramona. A piada tem também a mesma função que os binóculos em Homens na Arena: introduz a dúvida quanto à omnisciência do narrador interpretado por Stack, sugerindo que, enquanto turista que chegou um pouco tarde, nem sempre é capaz de ver para além das aparências. Mas que aparências? Voltemos atrás no tempo (o cinema presta-se a isso): antes de o avião começar a descer, durante a primeira sequência após os créditos iniciais, vemos Boetticher e o seu famoso garanhão espanhol, Sultan, em plena mostra no “Airs Above the Ground”[viii], e depois vemos Boetticher a montar o seu amado garanhão Califa. Tudo isto se passa perante os espectadores do El Cortijo Lusitano. Inicialmente sozinho, Boetticher surge depois acompanhado pela sua mulher Mary, uma exímia cavaleira, enquanto a voz de Stack nos conta a decisão do realizador deixar Hollywood. Num tom de admiração, a sua voz fala da vida “pitoresca” do realizador e do seu gosto pela “emoção” e pelo “perigo”. (Estas palavras lembram o início do comentário de Anthony Quinn em Arruza).

 

O que vemos, reforçado pela voz-off de Stack, é a imagem do homem que fez Emboscada Fatal[ix]: um homem a cavalo, feito para o perigo, primeiro sozinho e depois na companhia de uma bela mulher que, com o seu olhar marcante e as suas roupas justas, faz lembrar a heroína de vários dos westerns filmados com Scott. Os comentários de Stack e um flashback que mostra a cena extremamente pujante em que Carlos Arruza se degladeia na Plaza México[x] recordam-nos que Boetticher é também o homem que realizou Arruza. O paralelismo é novamente óbvio: tal como Boetticher, Arruza tornou-se criador de touros e rejoneador depois de se reformar. A sua mulher também se chamava Mari, e até tinha um garanhão chamado Califa. Hoje podemos ter a impressão de que Boetticher se tornou no homem que vemos nos seus filmes, quando foi ele quem começou a filmar a sua história. No flashback seguinte, um dos pontos altos de Homens na Arena, também filmado na Plaza México, a voz de Stack informa-nos que o filme se baseia nas aventuras de juventude do realizador. O homem encaixa-se perfeitamente nos seus filmes. Já vimos os seus filmes, agora vemos o homem.

 

Mas este cariz “supostamente biográfico”, apoiado no comentário romântico de Stack, não resiste a um exame minucioso. As semelhanças entre Boetticher e os seus heróis não são tão óbvias como parecem à primeira vista. Além disso, os excertos utilizados para os flashbacks estão, em particular e curiosamente, contaminados pela ficção.

 

A sequência retirada de Homens na Arena mostra Regan (Stack) entrando na Plaza México e a preparar-se para se degladiar com um touro para expiar a morte de Estrada (Roland), causada por ele. Entretanto, Stack, o narrador, explica-nos que o material do filme é, na realidade, a vida de Boetticher. Ele fala-nos do medo que sentiu na própria pele quando, durante as filmagens desta sequência, se viu frente a frente com um touro pela primeira vez na sua vida. Assim apresentada, a sequência é triplamente ficcional. Em primeiro lugar, Stack encontrou-se cara a cara com um touro durante a filmagem da tienta[xi], que precedeu a sequência do flashback. Segundo, Boetticher nunca causou a morte de ninguém numa arena. Terceiro, ele nunca lutou na Plaza México no início da sua carreira (a Plaza ainda não existia). De facto, há apenas um elemento nesta magnífica cena que se baseia na experiência de uma pessoa. É a reacção de Regan quando os seus companheiros matadores rezam as suas orações ao entrarem na arena: olhando para a esquerda e para a direita, vê-os a fazerem o sinal da cruz e olha para o céu. («Mantive essa sequência porque era o melhor plano, mas também porque se enquadrava no que eu sentia sempre que me debatia – estava sempre rodeado de católicos!»)

 

Quanto à sequência cortada de Arruza, é quádrupla ficção, apesar de vermos Carlos Arruza a arriscar a sua vida numa das maiores exibições de matador alguma vez filmadas. Primeiro, Arruza estava a lutar pelas câmaras de Boetticher, como Stack nos recorda («Eu estava lá... Ouvi o grande matador dizer: ‘Diz-me lá então onde queres que eu vá morrer pela tua maldita câmara!’ No momento culminante, na sequência da Plaza México que não vemos aqui, Arruza olha para a câmara antes de matar o touro para se certificar de que está na posição correcta»). Em segundo lugar, Arruza voltou à Plaza México para lutar a cavalo apenas por instigação de Boetticher e apesar de todas as suas objecções virulentas – na verdade, fez Boetticher esperar nove anos. Em terceiro lugar, a sequência é composta por actuações que tiveram lugar em dois Domingos sucessivos, porque Boetticher, que não estava satisfeito com o final da sequência, chamou Arruza de volta e obrigou-o a fazê-la novamente. Em quarto lugar, estas duas exibições, que correspondiam ao ponto alto da carreira de Arruza, tinham sido, muito conscientemente, imaginadas pelo realizador como um eco da cena suprema de Homens na Arena, que tinha sido, como vimos, uma invenção.

 

O mito que Boetticher encarna naquilo a que poderíamos chamar o filme de Stack – e, sem dúvida, aos olhos do próprio Stack, que simbolizam os amigos de Boetticher em Hollywood e os seus admiradores em todo o mundo – é o do machismo, e O meu reino por um… contraria esse mito, pela própria natureza da história que conta, que está mais próxima da Disney do que daquilo que Hollywood ou os admiradores de Boetticher esperariam dele: «O que me agrada em O meu reino por um… é o facto de ser um filme muito gentil, e nunca me foi permitido fazer um filme gentil em Hollywood. Era tudo sangue, tomates, tripas, porque é assim que me vêem. Não se conquista uma mulher como a Mary sendo apenas um durão». Ainda mais surpreendente, se pensarmos no papel limitado das mulheres nos westerns de Scott, O meu reino por um… é um filme sobre a transmissão da tradição, em que a geração mais nova é essencialmente representada por duas raparigas adolescentes. («Tenho a certeza de que alguém vai escrever uma tese a explicar que isto representa o empoderamento feminino, ou algo do género, mas não é. Só significa que as raparigas jovens são mais apaixonadas por cavalos do que os rapazes.»)

 

E, vistas as coisas, a história contada nos longos flashbacks refina a imagem de mestria que Boetticher encarna no início do filme, sublinhando a sua vulnerabilidade: quando Gloria, a primeira discípula, se vai embora, Budd e Mary ficam tão sensibilizados que juram nunca mais o fazer, até que, finalmente, fraquejam e aceitam Alison, a pedido dela. É só depois de o trio ter ultrapassado uma crise, quando o capão favorito de Mary, Gitano, fica gravemente ferido, que se arriscam a adoptar Mary. Boetticher fala destas coisas, como de tudo o resto relacionado com o seu filme, em jeito de mise en scène: «A nova discípula é um bom elemento para o enredo. É assim que se escrevem os bons argumentos: um rapaz conhece uma rapariga, a rapariga apanha uma pneumonia, o rapaz torna-se médico, cura a rapariga, casam-se, têm um filho, o bebé apanha uma pneumonia... Há altos e baixos, e é isso que mantém o interesse.». Mas o filme tem a marca pungente da dor e da raiva que a partida de Gloria lhe causa: ele retirou a maior parte das filmagens com ela – é difícil imaginar outro realizador a fazê-lo, considerando que tudo foi filmado por Lucien Ballard.

 

O “filme de Stack” é, de facto, o filme de Boetticher, claro. E Stack, o actor, está apenas a ler um texto escrito para ele por Boetticher quando desenha o retrato romântico do homem a cavalo, mas Boetticher explica esta contradição referindo-se novamente à sua concepção de realização: «Lembrem-se disto: eu sou um homem do espectáculo e as pessoas que me vêem no espectáculo vêem-me como eu quero aparecer. Por outro lado, não é por ser esse tipo de homem que tive tanto sucesso, durante toda a minha vida, com mulheres bonitas. Eu choro, sou muito sensível, interesso-me pelas pessoas, gosto de miúdos porreiros, detesto outros, e adoro os meus amigos. Ninguém sabe quem eu sou, no fundo, excepto aqueles que me conhecem muito bem. Sou um homem do espectáculo, e quando estou em frente à câmara, sou o que quero ser – mas, por amor de Deus, eu não sou nada assim!»

 

Nada disto surpreenderá aqueles que conhecem Boetticher através dos seus filmes e não através dos estereótipos difundidos pela crítica. Não é certamente a primeira vez que um herói de Boetticher volta a viver, contra a sua vontade, o amor cuja perda o traumatizou, mas é a primeira vez que esta repetição conduz a um final feliz ambíguo.

 

 

O SONHO DE ALISON

 

Machismo como puro espectáculo: Boetticher desenvolve implicitamente esta ideia no breve relato que faz a Stack sobre a história do rejoneo. Embora afirme que ele e Mary praticam a única arte medieval ainda existente exactamente como era na Idade Média, a tradição foi completamente revista nas actuações no El Cortijo Lusitano, uma vez que o touro é substituído pela máquina com rodas normalmente utilizada apenas para exercícios – ele foi levado a fazer isto por uma mistura de motivos pessoais e profissionais: «É a única forma de mostrar às pessoas deste país o que fazem os cavalos de toureio. Permite-lhes observar os cavalos e a arte de os dominar, sem uma gota de sangue. Pessoalmente, teria preferido tourear com touros vivos, mas a minha mulher não quis e as miúdas também não. Foi muito difícil fazer com que a Mary espetasse as banderillas na máquina, porque cada vez que ela malhava naquela maldita coisa, sentia que estava a magoar um animal! É mesmo assim a Mary, é por isso que a adoro».

 

A substituição do touro por uma máquina representa uma mudança tão radical no ritual da tourada que os espectadores desprevenidos podem, à primeira vista, ficar impressionados com a imbecilidade da ideia, mas a inovação de Boetticher é apenas o passo mais recente na evolução do rejoneo, um jogo de guerra concebido pelos cavaleiros medievais portugueses para manter os seus cavalos em forma, que evoluiu para uma forma de arte que antecede em três séculos a tourada ao estilo espanhol, que é mais conhecida. A trilogia mostra as três fases desta evolução, a última das quais é o rejoneo à maneira de Boetticher – embora seja improvável que a tradição que Boetticher reiventou venha a tornar-se norma: «Não pode ser o próximo passo, porque eles estão preocupados com a honra, a morte e tudo isso. É a sua forma de machismo».

 

Ao longo de toda a trilogia, a tauromaquia é retratada como uma forma de arte, a par da música e da pintura, e cada filme termina da mesma forma, com um espectáculo em que a dimensão estética desta arte é revelada na sua totalidade – em parte, pelo menos, porque a outra forma de arte que Boetticher ama assim o exige: «É assim que se fazem filmes. Hoje em dia, não se pode fechar um filme. Os filmes nunca têm um final. Lembram-se do Mickey Rooney e da Judy Garland, com todos os seus amiguinhos, o filme a acabar com um grande espectáculo no celeiro, certo? – Já nos esquecemos disso. O que fazem é sentar-se à volta de uma mesa e discutir o final e acabam por estragar tudo. Lançaram um filme que tem três finais diferentes...» Em O meu reino por um…, o final é puro espectáculo: enquanto as grandes cenas de touradas que servem de clímax a Homens na Arena e Arruza eram precedidas de sequências dramáticas que enfatizavam o confronto existencial com a morte que se aproximava, o final de O meu reino por um… surge depois de uma sequência em que vemos todo o elenco, subitamente muito mais numeroso, a decorar a arena com bandeiras e cartazes, a tratar dos cavalos, a preparar os adereços e os figurinos, numa atmosfera próxima da de um circo: «Não fazem ideia do que é necessário para preparar um espectáculo: é preciso gente em todo o lado. É como estar no cenário de uma grande produção cinematográfica».

 

Mas não devemos esquecer o que resta de um drama existencial, e que distingue os espectáculos de Boetticher dos treinos, que as demonstrações no El Cortijo Lusitano também incluem. «Removemos o sangue e a morte e mantivemos o bailado a cavalo, mas não removemos o perigo que o cavaleiro corre. Porque ao fazer alguns destes movimentos pode-se cair e partir o pescoço. O que fazemos é muito perigoso e é isso que as pessoas gostam neste espectáculo. Num espectáculo de Lipizzans[xii], eles fazem todo o tipo de malabarismos e saltam muito alto, é tudo espectacular, mas ninguém se vai magoar. A Mary e eu podemos matar-nos. De facto, para este filme, a Mary ficou com um braço e um dedo do pé partidos. Eu tive seis costelas partidas, uma hérnia, uma hérnia dupla, e uma vértebra deslocada no pescoço. Se vos contasse tudo, nem iam acreditar!»

 

Todos os elementos do espectáculo boetticheriano estão condensados na sequência que se segue à última actuação. É o sonho de Alison: depois de todos terem partido, Alison entra na arena vazia, segurando o seu garanhão favorito, Gladiator, pelo arreio. Ouve música ao longe e todos os pormenores do espectáculo reaparecem diante dos seus olhos: as bandeiras e os cartazes, as banderillas a balançar ao vento, o touro-máquina. De repente, está montada no Gladiador, vestida com a casaca preta portuguesa do século XIX, que Boetticher tinha mostrado a Stack anteriormente, um presente de Carlos Arruza. Também de repente, Boetticher aparece atrás do touro-máquina, vestido de preto, com um ar bravo; vemo-lo em grande plano a balançar a cabeça como um touro que se prepara para atacar. Alison faz uma careta e abana a cabeça como quem diz “Não”; Boetticher desaparece, substituído por Mary, vestida com calças justas pretas, sorrindo amigavelmente. Depois de um aceno de cabeça, Alison começa uma demonstração de rejoneo, acompanhada de música e aplausos. Quando termina, ouve a multidão invisível a aplaudi-la e um plano oposto mostra-nos Robert e Rosemarie Stack a aplaudir, de pé, entre outros espectadores impressionados. Alison agradece-lhes com um pequeno aceno de cabeça. A imagem pára no seu sorriso radiante.

 

O cineasta é consciente das implicações psicológicas desta sequência: «Estávamos de preto porque éramos o touro dela. O único touro que ela tinha enfrentado era eu, e ela não o aceitava de forma alguma. De repente, a Mary está lá, é um touro amigável e gentil, e a Alison aceita o combate». Mas esta ideia de substitutos do touro também ilustra a noção bizarra e democrática de espectáculo de Boetticher: «Ela olha para mim e aparece um grande plano meu. Sou um filho da mãe pavoroso que a aterrorizou, que a acossou quando ela estava com o Califa até ela quase perder a cabeça, e, de repente, ela surge vestida como desejaria, e o sonho é dela. Eu estou lá, mas ela não aceita nada do que eu represento. Por isso, livra-se rapidamente de mim, o que eu acho muito engraçado». Recebi o mesmo tipo de resposta quando perguntei sobre um pormenor de maquilhagem. A pergunta foi: «Porque é que os lábios da Alison estão tão maquilhados na cena em que ela está a ver as fotografias na sala de arreios?» A resposta: «A Alison tem quinze anos. E em vez de a fazer parecer a rapariga de quinze anos que imaginamos, ela é um pouco louca, aparece vestida como quer. Hoje em dia, os miúdos têm esse aspecto muito mais do que quereríamos. Ela usava aqueles brincos horríveis na última cena do filme. Mas deixámo-la usá-los, porque é assim que os miúdos se vestem». Cada um é o seu próprio realizador, livre de criar uma imagem de si próprio à luz da sua imaginação: isto poderia aplicar-se igualmente às personagens das obras puramente imaginárias de Boetticher, e particularmente aos vilões, embora neste filme a ideia assuma um efeito “documental”. E mesmo que todas as personagens do sonho estejam de preto, não é a primeira vez que um filme de Boetticher, reconhecendo os limites do poder de criar mitos – que é todo o mérito do espectáculo – termina alegremente com um olhar de esguelha para a morte (Craig Stevens para Peter Whitney no final de Fibra de Herói[xiii]: «Não fiques aí parado Amos, pega numa pá!»).

 

– B.K.


(Originalmente escrito em inglês e traduzido para francês por Francine Arakelian e Lydie Eschasseriaux; o manuscrito original em inglês foi perdido e este texto foi retraduzido para inglês por Andy Retor; tradução para português por H.M.S. Pereira)



[i] N. do T.: Autor e crítico americano, Bill Krohn é, desde 1978, correspondente em Hollywood da incontornável revista francesa sobre cinema Cahiers du Cinéma.

 

[ii] N. do T.: Directors Guild of America.

 

[iii] N. do T.: Chama-se “Rejoneador” ao toureiro que monta a cavalo.

 

[iv] N. do T.: Rancho de Budd e Mary Boetticher na região de San Diego Country Estates, perto de Ramona, na Califórnia.

 

[v] N. do T.: Chama-se querencia, em espanhol, ao local da praça de touros onde o touro vai frequentemente, onde ele gosta de estar.

 

[vi] N. do T.: “Blood and Sand”, 1941.

 

[vii] N. do T.: “Ici et ailleurs”, 1976.

 

[viii] N. do T.: Mostra de movimentos de dressage clássico de nível superior, em que o cavalo se eleva do chão.

 

[ix] N. do T.: “Comanche Station”, 1960.

 

[x] N. do T.: A maior praça de touros do mundo, localizada na Cidade do México.

 

[xi] N. do T.: A “tienta” é um dos testes mais importantes efectuados no gado para medir a sua resistência e bravura.

 

[xii] N. do T.: raça de cavalos que surgiu no século XVII, na Andaluzia, caracterizada pelo adestramento de alto controle.

 

[xiii] N. do T.: “Buchanan Rides Alone”, 1958.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

The Bikeriders, de Jeff Nichols




Jeff Nichols quis fazer do trabalho fotográfico de Danny Lyon um filme cool. The Bikeriders é um filme cool. Demasiado. E talvez por isso, por querer captar uma atmosfera demasiado vaga, demasiado mistificada, com uma aureola viciada, seja o filme menos puro de Nichols. E como Nichols é um cineasta puro, um contador infantil único, um miúdo do risco, é pouco o que conseguiu. A estrutura fragmentada e semi-documental é demasiado óbvia (lembramo-nos logo de outros filmes e séries que a usam melhor) e enfraquece a possível voltagem, a ebulição e a altercação. As figuras de estilo roubadas – dos sobressaltos e dos êxtases scorsesianos (e revistos pelos seus ídolos)ou o uso convencional da música – viciam uma sensibilidade que em obras genuínas como Mud ou Take Shelter florescia sem proteção de estilo. Mud – a sua obra-prima – é o Mark Twain de Tom Sawyer e Huckleberry Finn vividos, recontados e aventurados por Nichols e pelos seus actores e equipa em pleno campo. Milagre e terror de um único ser e de milhões deles. Os olhos e o coração do ser em formação das ecografias obstétricas a fazer o balanço de alguns anos de luz… 

The Bikeriders tem um Tom Hardy que nos oferece todo o peso de uma alma no fardo de um corpo já corrupto demais para redenções prontas-a-servir – e lembra-nos os homens assim tão puros, porque viciados sem cálculo, que fomos conhecendo e amando calados – estilhaços de outras almas assim errantes que produzem o movimento inverso de uma explosão cósmica ao se concentrarem no corpo de um magnifico actor; e uma Jodie Comer que é uma surpresa de comoção magoada pelos brilhos fugazes que entreviu mas não amarrou e que se pergunta constantemente se a culpa foi sua. As melhores cenas dela são com Hardy, almas gémeas simétricas que se perfazem. Austin Butler, infelizmente, é um mito vazio e sem brilho, mera silhueta a que a ternura de Nichols não chega (porque longe das persistências anteriores da memória, dos sonhos e dos pesadelos de todos os seus filmes irrepetíveis?).

E por Hardy e Corner The Bikeriders merece visões e revisões.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O Mestre Jardineiro (folha de sala Cineclube Gardunha)

 


Sob o signo do cineasta e pensador francês Robert Bresson e sobretudo do seu O Diário de um Pároco de Aldeia, baseado no romance de Georges Bernanos, assim têm sido os últimos filmes de Paul Schrader, mimetizando planos e silêncios. Um “homem sentado à mesa”, assim definiu o género dos seus últimos três filmes o cineasta americano. Depois de No Coração da Escuridão e The Card Counter: O Jogador (que vimos neste Cineclube vai fazer dois anos) chega-nos agora este O Mestre Jardineiro, concluindo então uma fase que muitos consideram terminal. Se no primeiro tomo da trilogia temos o espírito e a matéria numa digladiação crística - um padre a lutar com a sua crença frente aos demónios de um novo mundo, de uma nova idade das luzes e das trevas (ecologia e corrupção) - no segundo a matéria e as luzes de um mundo vicioso e pegajoso tratam de conter uma pulsão destrutiva de outra ordem, aparentemente mais profana. Ambos, padre e jogador, ocultam a propensão destrutiva e mercenária das guerras onde estiveram e para as quais foram meticulosamente preparados, e logo todas as perdas íntimas correlativas. 

O jardineiro do seu filme mais recente domina todas as fachadas dos protagonistas anteriores, uma questão de ordem e de repetição que permite controlar a altercação e a sempre possível escalada de violência. Bem como as marcas do passado literalmente impressas no corpo, expandidas neste tomo, a aritmética que divide o tempo e o nutre, ampliada ao paroxismo e epitomada, e um culto que permite um vórtice demencial num vocabulário, terminologias e História que requer constante interação; enfim, e aqui algo de recente que recupera a regeneração do plano final de The Card Counter: O Jogador - decalcado do final de O Carteirista de Bresson – um método maníaco que não se basta em se consumir no puro presente mas que lança ainda uma crença no futuro.

Regeneração, precisamente, um dos grandes temas de toda a história do cinema americano, que rima com redenção. Schrader, que cultiva a austeridade de Bresson, de Carl Theodor Dreyer e de Yasujiro Ozu (dedicou-lhes o livro de uma vida: Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer) jamais conseguiu escapar das forças morais e das placas tectónicas da violência puramente americana, da sua nascença, da sua construção, constatação, da sua constante destruição e regeneração. Assim, o espírito transcendental que Schrader encontra nesses cineastas de nações e culturas díspares – o interior dos seres, o invisível, a alma e a vida escondidas, a fazerem-se matéria plena, palpável e rarefeita, e as formas cinematográficas a comungarem dessa austeridade e desse enlevo – rebenta algures no caminho devido à inevitabilidade de escape originário, um determinismo que se vê bem na personagem de Ethan Edwards no The Searchers de John Ford, e que é a bíblia outra de Schrader, mesmo que a não tivesse reconhecido. Forças aparentemente opostas e impossíveis de comungarem numa cósmica busca existencialista que tem ainda os pergaminhos de Albert Camus e de Jean-Paul Sartre a dialogarem com o individualismo e o laconismo americanos.

E o que produz o poder cinemático, o suspense cortante e a tensão presentes no filme de hoje? E logo a ambiguidade? No fogo lento com que Schrader faz avançar a narrativa, as germinações e os peões em causa, com toda a detalhada e maníaca exposição do modo de vida do jardineiro e da vida e dos segredos das espécies cultivadas, do que ele aprendeu, do que quer passar aos aprendizes, e de uma constante recriação, exploração e pesquisa, que permite renomear e renovar quotidianamente o seus cosmos, o que subjaz é uma complexidade do julgamento das superfícies, um paradoxo latente: torna-se evidente que toda a contenção e postura correta e elegante de Narvel Roth aprisiona a violência e a possível obscenidade, isto é, alguém que a cada instante da sua existência renega e esmaga o seu fogo interior original, uterino, enganando-se. E que a liberdade, e em última ou primeira instância a verdade, reaparece nos momentos de pura violência e justiça em que ele devolve à vida a jovem aprendiz Maya, encontrando-se. Assim, a decência pode ser abjeta e a violência pura. É esta a importância, a esfinge e o pasmo do cinema de Schrader no seu melhor.

Então, e a liturgia do futuro, a utopia e os sonhos metidos numa ampulheta científica, resumida no incrível monólogo interior: «A jardinagem é uma crença no futuro. Uma crença de que as coisas vão acontecer de acordo com o plano. Essa mudança virá no seu devido tempo.»? É a infinita complexificação, tal como são infinitas as multiplicidades de formas e de geometrias, dos tons e das matizes, de estilos e de técnicas de jardinagem expostas. Entre a perfeição de linhas e a selvageria, o milagre do tempo (também meteorológico) e da hora e as omnívoras metamorfoses possíveis, percebe-se que o futuro será jogado tanto pela assunção do deslumbramento e do raciocínio como pelo aceitamento e pelo irracional. O espezinhamento da personalidade será sempre a forma de violência inaceitável. Portanto, a troca da mulher mais velha pela mais nova, a troca de uma contenção outra pela liberdade e jovialidade, torna-se lógica no jogo de forças e dependências em causa.

Daí o final ao mesmo tempo lógico e imprevisível, uma dança que tanto evoca a do juiz Holden no Meridiano de Sangue de Cormac McCarthy como a do personagem de Tommy Lee Jones no subestimado The Homesman - Uma Dívida de Honra. Passadas as panorâmicas e os travellings gizados a regra e esquadro, a planificação Bressoniana que impede qualquer tipo de brecha formal, constituindo um mundo de autonomias e regras perfeitas, passados os flashbacks fétidos, toda a descompostura cai. E pelo menos esse futuro, esse instante, regenera-se para sempre.

José Oliveira


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Entrevista ao realizador do filme "O Cordeiro de Deus" rodado na Soalheira

 Por José Oliveira


Rodado na vila da Soalheira o filme "O Cordeiro de Deus", traz-nos, lentamente, «as festas da vila misturadas com sensualidade e violência, num enigmático retrato de uma íntima família», segundo a sinopse. Superstições, crenças antiquíssimas, ritos indecifráveis, numa complexa mas delicada cosmogonia que fez parte da competição das curtas do festival de Cannes de 2020. Já na próxima terça-feira, dia 20, pelas 21h30, na Moagem. 

Curta-metragem que antecede mais um filme da genial e recentemente redescoberta cineasta japonesa Kinuyo Tanaka, cujo Senhora Ogin, em prodigiosas cores, acompanha a paixão entre a Senhora Ogin (que dá título ao filme) e o samurai Ukon Takayama, um devoto cristão, nos finais do século XVI, quando o cristianismo vindo do Ocidente foi proscrito no Japão.  Uma tragédia de contornos shakespearianos que perfazerá, com certeza, uma sessão inesquecível. 



- O filme passa-se na vila da Soalheira, concelho do Fundão. Qual a tua ligação a esta região e por que decidiste lá filmar?

A minha ligação é a de que o meu pai é natural da Soalheira. Conheço-a apenas de férias de verão. Eu decidi lá filmar por ser um sítio que já conhecia um pouco, queria filmar numa aldeia do interior de Portugal e já ter algumas imagens na minha cabeça de memórias antigas facilitou. Mas os locais que são filmados são abstratos, ou seja, não têm local definido no filme.

- Essas festas de verão, as tradições, superstições, são bem próximas de quem vive ou viveu no mundo rural português. Como colheste essas histórias e ambiências que percebemos antigas, foste totalmente fiel ou existiu uma reinterpretação da tua parte?

Eu não recolhi testemunhos de ninguém sem ser do meu pai, e por isso mesmo essa recolha foi natural, ou seja, foi feita ao longo de muitos anos, desde que nasci. Ao imaginar este filme não lhe pedi que me contasse certas histórias outras vez, preferi usar as minhas memórias que tinham já elementos inventados por mim misturados. Gosto quando tornamos alguma coisa de outra pessoa nossa também, quando acrescentamos a nossa visão. Acho que é impossível ser fiel, é inevitável mudarmos e acrescentarmos uma história, mesmo que seja quando contamos a alguém a história de outra pessoa. 

- O filme abre precisamente com uma potência documental que vai mantendo em pormenores ao longo dos seus quatorze minutos, mas também progride para fantasmagorias e simbolismos mais opacos que vão desembocar no misterioso plano final. Interessou-te esse delicado equilíbrio de registos?

Eu gosto quando se passam coisas nos filmes que não foram bem planeadas ou que fogem ao nosso controlo, e se trabalharmos com animais ou crianças isso acontece inevitavelmente. São agentes independentes tão fortes que não conseguimos domar, e por isso mesmo dão-nos uma impressão de realidade e de mundo. De resto esses registos diferentes fazem simplesmente parte da minha forma de ver as coisas e de filmar um filme.

- Penso que misturas atores profissionais com não-atores. Utilizaste pessoas da região? Como foi esse trabalho?

Sim, entram no filme vários atores não profissionais, nem todos são da região. Os rapazes que trabalham na quinta e os atores que são crianças são. É um trabalho que eu adoro e nunca experimentei não ter não-atores. É só muito recompensador ter uma perspetiva sempre real e fresca e sem vícios, super genuína, e acho que toda a equipa gosta desse encontro.

- E como é levar a máquina de fabricar cinema a lugares que normalmente não são vistos por ele (o cinema)?

Teria de pensar mais sobre isso mas Portugal é um país que, como país europeu, não tem Hollywood e por isso qualquer sítio para lá de Lisboa, que tem imagens muito definidas, pode ser visto mas não é repetido. Ou seja, qualquer sítio onde filmes vai ser especial e vai ser especial conhecer pessoas e dar-lhes a ver o que fazes, como pode ser em qualquer outra coisa. Mas é um trabalho incrível, sobre o qual consegues conversar com quem quiseres e que acho que vai sempre despertar curiosidade, e nisso sinto uma sorte muito grande.

- Por último, podes falar-nos um pouco de referências cinematográficas ou puramente estéticas que sentes que estão presentes em O Cordeiro de Deus?

Quando quis fazer este filme queria muito aproximar-me do novo cinema argentino e em especial duma realizadora chamada Lucrecia Martel. As primeiras longas-metragens desses realizadores têm um estilo mais duro, mais real e usam pessoas que não parecem atores. Sem ser isso, dois fotógrafos a que eu e a diretora de fotografia voltámos várias vezes como inspiração foram o Bill Henson e a Sharon Lockhart.

in: https://www.jornaldofundao.pt/cinema/entrevista-ao-realizador-do-filme-o-cordeiro-de-deus-rodado-na-soalheira