quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

for Sly





As sequências tonitruantes, a mata-cavalos, praticamente indistintas cinematograficamente que abrem Rambo: Last Blood e que também parecem feitas para comprovarmos e comprarmos a revolução do sistema sonoro Atmos que propaga as ondas quebradas e requebradas sem limitação espacial, são apenas uma rampa de lançamento justificativa do contrato com os shoppings que permitiram a sua produção; mas a rapidez com que deixámos o caos audiovisual e começamos a entrar no território do rosto de Sylvester Stallone e assim no território do cinema é praticamente Hawksiana e funcional, despachando sem pestanejar todo o supérfluo rumo à pastoral americana que virá como um sopro limpar o dispensável e a mácula; pastoral lenta, elegíaca e elementar quando importa, comprometida com o meio e com o espaço, com o que existe e igualmente com as almas; com os vivos e com os mortos e com o rasto impossível de apagar de tudo o que habitou esta terra.
Assim que John Rambo volta mais uma vez a casa, enquadrado pelo caminho de terra batida e pela caixa de correio anacrónica, tudo pode entrar em sentido novamente, embates particulares incluídos; a desordem da solidão exterior ao seu lar (toda a política do medo em fora de campo, de Trump às catástrofes naturais) volve-se imediatamente ordem de comunhão a procurar, valendo a comunicação entre todos os elementos desse mundo dentro do outro mundo perdido, à maneira de John Ford. Os homens falam com os cavalos, têm café na mesa depois da hecatombe, a companhia incomensurável de uma Maria de bom coração que aquece mais do que qualquer bebida quente, e um recolhimento que mesmo na convulsão, salva.
Tudo muito lento na outra comunhão, a da câmara de filmar com o mover e o estado do corpo e do espírito do protagonista; mesmo em planos aéreos, feitos com drones ou assentes em velhas gruas mecânicas, o ritmo é o da observação, da contemplação pura, óptica, o da fusão, máquina e humano: John Rambo com o seu cavalo em paz com os anjos no picadeiro é uma pastoral puramente Cormackiana, ou seja, imbuída dos bons sentimentos mesmo no vendaval e no acto irracional e destrutivo sempre à espreita.
«Antes que o potro se pudesse erguer, John Grady agachou-se-lhe sobre o pescoço e puxou-lhe a cabeça para o alto e para o lado e prendeu o animal pelo focinho, com a cabeça comprida e ossuda apertada contra o peito e o fôlego quente e adocicado do cavalo a brotar dos poços escuros das narinas e a banhar-lhe o rosto e o pescoço como novas de um outro mundo. Não cheiravam a cavalos, aqueles animais. Cheiravam àquilo que eram, a animais selvagens. Ele segurou a face do cavalo contra o peito e sentiu, ao longo do interior das coxas, o sangue a pulsar através das artérias e sentiu o cheiro do medo e pôs a mão em concha sobre os olhos do cavalo e afagou-lhos e nem por um momento deixou de falar com ele, articulando as palavras em voz baixa e firme e explicando-lhe tudo o que tencionava fazer e cobrindo os olhos do animal e afagando-os para expulsar o terror».
Outro John, John Grady, o protagonista de All the Pretty Horses de Cormac MacCarthy, é, como nos diz o tradutor do livro para português, Paulo Faria, genuinamente bom, mas também, como se verá na sua epopeia, um selvagem que se interessa por tudo, por muitas coisas e polos diferentes. Está com um pé no seu Éden nostálgico e palpável, e com outro no infernal lado negro que não desdenha, por justiça com a criação. Também Rambo tem os seus túneis e as suas escavações miseráveis, também fala com o seu cavalo, ensina-o e aprende, troca confidências, puramente humanos; e também tem o seu altar dentro de casa, o seu quarto verde de Truffaut, onde pulsa energia vital. Está no reino dos céus, onde não quer acreditar que sabe que voltará a sujar-se, lá fora. O reino dos céus, semelhante ao homem que semeou a boa semente no seu campo, dizem as escrituras, e por onde John Rambo plana a cavalo com uma sua filha, antes das misérias e dos pecados do mundo. Onde deparam com uma árvore inviolavelmente paradisíaca e Kiarostamiana, ali, onde os sete e os setenta estão ao mesmo nível. Enquanto os homens dormiam, veio o inimigo dele, semeou o joio no meio do trigo e retirou-se, continuam as escrituras.
A partir daí Stallone não vai quebrar promessas sagradas nem meter em cheque a sua ética original e inescapável e Rambo: Last Blood não se tornará maniqueísta, politico por politico, muito menos Republicano ou partidário, palavras proibidas e abjectas nesta transcendente morfologia complexa. Porrada por porrada, action for action, dente por dente; o momento do apagamento da sua pequena amada é dos mais sublimes do cinema nestes tempos anti-emotivos e calculados, quase cinema mudo, quase Dreyer do velho Oeste, a falar com a literatura e a pintura veladamente ultra romântica – conceito no qual o clamoroso paradoxo é a chave.
«Mas sabes tu o que é um homem de coração despedaçado e morto! Se fala, as suas palavras são terríveis e confusas como seriam as de um espectro. Se olha, o seu olhar tem centelhas de fogo que fazem aquecer as faces virgens como as da tua amante. Se respira, o seu hálito importuna e enjoa como a exalação de um cadáver!» vociferou Camilo Castelo Branco, tal como escreveu com outros ferros em brasa William Faulkner, Balzac ou Pascoaes. Preces românticas e vinganças românticas, concedidas pelo terror do ultra real.
Sob a platina de um luar que lhes recorta as silhuetas vacilantes (e sem que o color grading dos blockbusters americanos ou dos blockbusters festivaleiros de prestígio tome conta do campo todo), John Rambo pede à sua filha amada que mantenha os olhos abertos e faça frente à lenta consumição programada lá fora, fala-lhe da sua infância prodigiosa, de como ela consegue sempre tudo e conseguirá, de todas as conquistas ainda possíveis… e conta-lhe talvez o que nunca lhe tinha contado, nem a ninguém: que quando regressou a casa das guerras era um homem perdido e ela mostrou-lhe algo que nunca tinha visto.
A luz incompreensível e a última lágrima em câmara lenta de milésimos de segundo, enleados em harpas de anjos da prodigiosa partitura de Brian Tyler, e também estamos nos altares sacros do renascentismo lírico e imediatamente do seu suicídio. Tudo obscurece ainda mais, John adquire o coração despedaçado, a fala, os olhos e a respiração Camiliana, pisa no acelerador, quebra literalmente a fronteira e a politica, a árvore de Kiorastami incendeia-se, e volve-se um John Wayne e um Clint Eastwood, redimidos no boomerang da violência acumulada devolvida fatalmente à grande violência americana e aleatória.
Bastaria essa sequência para Sly estar entre os maiores, mas quando no final arranca a ferro frio o coração do violador, até o Lautréamont (ou Barbey d'Aurevilly) bem compreendidos e não só aceites pelo lado satânico e picaresco entram na equação, e já não compreendemos nada, como diz Eastwood no termo de A Perfect World, perfeita epigrafe neste capitulo final. Um homem que nunca conseguiu regressar a casa mas que nela ficará a conservar os seus fantasmas e as suas memórias até ao fim.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

A Arte de Amar


Recordação de um bocado de uma tarde bem passada com o Mário (que meteu a "bucha" do Buñuel), a Rita (que desbloqueou o francês e a conversa, com classe) e o gigantesco Jean Douchet.
Jean Douchet, o homem que tinha visto tantas vezes nas telas e em fotografias ao lado de um dos meus ídolos da cinefilia e logo da destruição da cinefilia, outro Jean, o Eustache.
Mas Douchet é a cinefilia.
Tão bigger than life, tão intimidador, e tão generoso.
O meu agradecimento pelo privilégio.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Walt Whitman...



Talvez seja pela beleza do swing de Joe Dimmagio ou pela beleza plástica de qualquer movimento de Ted Williams ("The Kid") - beleza que me espantou como qualquer sublime obra de arte - descoberta no monumental documentário de Ken Burns dedicado ao Baseball, que me interesso tanto por esse tão estranho desporto, estranho para nós futeboleiros.
Ou por causa de filmes do Ford, do Naruse ou até dos fundos de certos planos do Altman, entre milhares... mas o mais certo é o culpado se chamar John Fante.
Ou então serão os retratos do Francis Leroy Stewart (com este aqui em baixo) ou da Dorothea Lange.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Manuel Mozos no LUCKY STAR - Cineclube de Braga


Caros amigos,

Os nossos próximos meses vão ser dedicados a uma das figuras mais fascinantes e singulares das últimas décadas do cinema português: Manuel Mozos. Produto da escola Superior de Teatro e Cinema da Lisboa dos anos 80, teve como professores homens da cepa de João Bénard da Costa, António Reis, Luís Miguel Cintra ou Paulo Rocha; dessas gerações de estudantes fazem parte nomes hoje muito conhecidos e de basta obra como Pedro Costa ou Teresa Vilaverde, bem como realizadores de uma só oportunidade ou quase, os esquecidos Daniel Del Negro, João Guerra, entre outros, para não falarmos dos desistentes. Muito influenciado por esses “mestres”, muito influenciado pelo Fernando Lopes de Belarmino, pelo cinema clássico americano e por modernos italianos como Valerio Zurlinni, propomos mostrar todas as facetas de um percurso que passou por períodos acidentados mas que, analisado hoje, foi e continua a ser bastante produtivo, heterogéneo e inclassificável, prometendo uma aventura extraordinária pela matéria principal que constitui o seu tema: a vida, a vida pulsante ela mesma.

De início pensamos chamar ao ciclo “Integral Manuel Mozos e mais além”, isto pois desafiámos Mozos a desempoeirar as suas arcas soterradas e a forçar os seus relicários sagrados ou profanos onde utopias transmutadas dos sonhos e dos pesadelos do celulóide jazem noutros formatos como o VHS ou o DVD, para os projetar assim mesmo, sem restauros nem manipulações outras, na nossa sala de cinema. Depois de um longo processo de perseguição e de mapeamento dos materiais, tal não será possível na totalidade, mas a um nível bastante completo, permitindo-nos anunciar a mais completa retrospetiva de Mozos realizada até hoje. Teremos, por exemplo, o director's cut de uma obra maior como Xavier, documentários muito pouco vistos, destacando-se essa homenagem a Amália Rodrigues a que o autor chamou Diva: Simplesmente Uma Homenagem, entre vários momentos e episódios da sua entrega fulgurante à historiografia do cinema português, começando pelos Os Tristes Anos (1945-1960), ou mesmo surpresas escondidas que só revelaremos na hora.

Deste modo, iremos mais ao fundo de uma potência vital e romanesca raras vezes assim trabalhada no nosso cinema, bem como a um interesse documental pelo que está prestes a desaparecer e pelos anacronismos mais diversos. E constataremos mais nitidamente como as ficções nos permitirão conhecer daqui a muitos anos os usos e costumes do que foi uma certa sociedade e um certo tempo português, tanto como os documentários ou as suas montagens (a partir de filmes, de atualidades ou de registos anónimos) estão possuídos de indomável féerie e da mais pura invenção. Também um modo de comoção pelo que o cinema normalmente deixa de lado por não ser espetacular, das personagens solitárias aos espaços fantasmáticos, ou um modo de contrabando e de pirataria de imagens e de sons desprezados que justifica que muitas das cópias que apresentaremos não estejam nas condições perfeitas, visto que algumas delas são apenas possibilidades ou alternativas de montagens que acabaram por não vingar, e outras a única oportunidade de mostrarmos autênticas raridades.

Mas o próprio Manuel Mozos estará connosco numa das sessões vindouras para nos explicar tudo isto e para conversar sobre os seus filmes. O nosso muito obrigado a ele. Vamos aproveitar.

(JO)

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Vitalina Varela




O medo também entra no céu, proclama Ventura aos fiéis e aos espectros, aterrado como o fantasma de John Carradine no The Grapes of Wrath de John Ford, protegido pela palavra de deus do suicida Antero.

Se existe amor, a coisa tem de ir para a frente, sentencia Vitalina Varela, indestrutível centelha anunciadora, fonte redentora de todas as nossas trevas.

Outra vez, Pedro Costa criou pacientemente o mais belo filme do mundo, sacro e celeste como um Bresson, sacro e companheiro como um Ford.

Estreia hoje, e tal como Chaplin, é para todos os povos de todas as idades.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Ad Astra, de James Gray, 2019



O instante de Ad Astra em que o Filho corta o cordão umbilical que o prende ao Pai, tendo por testemunhas o silêncio do cosmos e o anel de poeiras de Saturno, é a capela perfeita da religiosidade e da mitologia do cinema de James Gray.

Mesmo que a filosofia e o fundo de base confluam na complexa matriz Conradiana, tudo nesse momento difere dos sentimentos e dos destinos de Heart of Darkness, numa aceitação das trevas e do nada que transporta o filho ao amor puro com que fica no final.

Mas as crenças incondicionais já estão espalhadas ao longo de todo o conto, conto muito antigo nas suas parábolas e razões, agora num futuro estelar e sem fronteiras, sendo os problemas da inadaptação do humano ao seu meio de rotação e ao convívio múto matematicamente os mesmos do tiro de partida dado pela entidade de comando do Big Bang.

A habitante da lua que só em pequena conheceu brevemente a terra embrenha-se em claros confrontos palacianos; os problemas da família McBride, passados muitos anos do estilhaçar dos laços e do abandono, têm que ver com solidão, individualismos e o incontrolável animalesco que nos aproxima da selvajaria, de igual para igual com os símios por nós embrutecidos. Esse homem que viu para lá do que qualquer semelhante imaginou, para lá das estrelas e do opaco comprovado, continua a recalcitrar ódios puramente humanos e terráqueos, de onde a transcendência de Deus ou não procede ou procede em vias lácteas indecifráveis.

Ainda a hipocrisia dos maiorais, a frieza dos que podiam ser companheiros de viagem mas dependem do mecanismo contribuinte, o mundo clínico aninhado ao mundo político como nas grandes eras fascistas - tudo enlaça na dramaturgia clássica e nas angústias existenciais. Nada a ver com os profetas tecnocratas de uma nova raça que anunciam o chip cerebral inserido ao feto para se cumprir um destino robótico, anódino e higiénico.

A crença, o medo, o infinito. Deus a pairar sobre tudo o que pode ser beleza, uma beleza infinita que só rima com a tristeza infinita do pleno mistério, ambas puras e caladas, olhadas sem demais por uma câmara encantada por isso, com naturalidade; tal como as superfícies divinas que o Pai experimentou distanciado até à loucura do encantamento sem nunca lhe ser permitido tocar na matéria do invisível que lhe revelaria as outras formas de vida.

O sublime em Ad Astra é geometricamente proporcional à dúvida mítica de Tomé em relação à Ressurreição. Não foi por essa dúvida que o filho avançou pelo coração das trevas agora em sentido absoluto, mas antes para confirmar a sua semelhança no Pai, aceitar e libertar-se, uno. James Gray abre assim todo o terreno para todos os westerns possíveis e inscreve a Bíblia sagrada nas esfinges cósmicas. A fidelidade e a inadaptação, a crença e a camisa de forças cósmica, a beleza total e o Zero, sombras e luzes indissociáveis na entesourada e côncava antimatéria com que são tecidos os sonhos que nos teletransportam. Visto o nada e Deus, a cura.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Era Uma Vez em... Hollywood




Hollywood, 2019. O que importa da reconstituição de Quentin Tarantino em Once Upon a Time... in Hollywood acontece no rolar langoroso e irresistível do caddy de Brad Pitt pelas vias-rápidas ensolaradas de Los Angeles, nos seus bairros esconsos e achatados e em anacrónicos ranchos magicamente concessionados. Como se os espectros e os assombramentos de idades antigas de uma Mulholland Drive descessem à urbe maquinada e pairassem no betão e nas maquetas desmultiplicadas da meca do cinema. Um sentimento extasiante de ameaça e de pulsões vitais onde o cineasta plana e gere a seu bel prazer, e junto a isso os actores à beira do falhanço, os duplos, as estrelas caducadas e esquecidas, as inclassificáveis novas raças, enfim, aquilo para que nasceu, que tem que ver com os resquícios, a excepção e os detritos e não os grandes temas que tocou nos últimos filmes. A melhor definição do filme de QT lia-a de alguém a afirmar que parece um filme de Andy Wharol, e é perfeita pois nesses momentos onde nada se parece passar perpassa toda uma época, dos néons ao sexo. Se esse rolar e desenrolar perto do crepúsculo durasse para sempre, elidindo desse modo a catástrofe, isso sim era a maravilha última.

Hollywood, 1969. Joan Didion. Frank Perry. Anthony Perkins. E sobretudo, sobretudo, Tuesday Weld. O tempo deferido de Tarantino liberta uma nostalgia que tudo cobre e possivelmente amansa, e que está completamente ausente do tempo bruto e presente de Play It As It Lays. Desde Jackie Brown que não tínhamos no seu planeta personagens tão humanas e complexas, mas é impossível a Leonardo DiCaprio e ao seu anjo Brad Pitt escaparem da autoconsciência de uma época de perfeição, de transição e de tragédia. No filme de Frank Perry tudo está justo, frágil, documental, esquizofrénico, pois cada elemento conflui para esse espelho estilhaçado e para essa paisagem calcinada que é o mundo dos simulacros do berço aterrorizado do cinema em confronto consigo e com as suas crias. A vida chã e corriqueira num quotidiano que é ele mesmo um filme, o paradoxo, a normalização.

Tuesday Weld, no seu rosto belo e desamparado, estão as tentativas de suicídios precoces, as violações escondidas, a bebida e a droga trocadas pelo leite materno, o incesto praticado pela terra mãe. Anthony Perkins, que viu os cadáveres empalhados e os cadáveres ambulantes de carne e osso da Hollywood dourada de que fez parte Psycho, que vislumbrou e seguidamente tocou nas matérias proibidas dos quartos e dos motéis de segredos indecifráveis de visões insuportáveis, Hamlet estupefacto dos desertos americanos, essa casualidade de good looking boy atirado aos túmulos sem mapa da meca, casualidade não premeditada que admirava a monumentalidade e a errância de Orson Welles e que sofreu por não lhe ter dedicado um livro. Joan Didion, e a descrição abstracta e exacta das linhas cruzadas da cidade dos anjos. Frank Perry e a total exposição ao mundo e ao assunto, sem pensar no seu prestigio nem no legado dos tantos film on film.



A atracção entre Tuesday e Perkins datava dos desejos ilegais da infância e de afastamentos conscienciosos, e assim vai alastrar a toda a narrativa, culminando numa pietà ensonada e atordoada pelo desfasamento lento, muito lento, das expectativas e dos sonhos da indústria do cinema; e também poético, ao nível dos home-movies, desta vez fotografados pelo grande Jordan Cronenweth que futuramente aplicaria degradações de calibre idêntico ao tempo avançado mas também corrompido de Blade Runner; aquelas passeatas entre os dois à beira do mar, ao declinar do dia, dispensaram o século da máquina oleada das ilusões, para tudo ser intimamente muito mais ilusório na sua serenidade e plenitude provisórias.

Frank Perry, constantemente ignorado e enxovalhado pelos seus contemporâneos e pela História, usa todas as ferramentas exclusivas dos processos miríficos e hipnóticos do cinema original – a voz-off deste ou do outro lado do espelho, a montagem paralela e inatingível, as perfurações várias, a parábola, a possível confluência de todos os tempos, o estrangulamento cronológico e espacial, o desfasamento entre a imagem, o som, os sentidos e os significados, os ralos narrativos e literais – para aglutinar e confluir a serpente bíblica (e as serpentes bem terrenas que dão festas em mansões) que tenta Eva ou que é o demónio ele mesmo, e os tiros que essa Eva moderna ou essa cowgirl drogada pela espera do sucesso dispara ao calhas no terreno árido das odisseias de outrora; aglutinar e confluir, extravasar ou exorcizar os fetos atirados para o caixote do lixo em nome do ouro dos óscares e as voltas nos labirintos dos jardins dessa Maria in Wonderland ou nas serpenteantes vias citadinas sem rei nem roque… A espera, a espera é o pior de tudo naquela terra, como na de cada qual, como na nossa, a espera que mata, a espera antes do “acção”, a espera em nome de um possível nada. Quentin Tarantino obviamente tem uma cópia em película de Play It As It Lays e assim desacelerou os seus ritmos explosivos para tornar tudo mais rápido do que o mundo em espera pelo desenlace atómico.

O desenlace de Once Upon a Time... in Hollywood pode ser duas coisas: ou maravilhosamente justiceiro, como que a rejustificar a invenção da nova arte que suporta o milagre; ou perverso, grotesco, essa máquina artística monumental que projecta a ser espezinhada pela vida real, que, ao contrário do que Quentin também pode dizer, é bem mais real do que as telas. As últimas palavras, e sentenças, de Play It As It Lays, ditas pela irresponsável e suicida Tuesday Weld: «I know what "nothing" means, and keep on playing. Why, BZ would say. Why not, I say.» A planarem no nada, uns matam-se, como Perkins, outros ou brincam com o fogo ou redimem tudo, caso de Quentin, outros ainda continuam a jogo, jogando até com a morte olhos nos olhos, caso do rosto mais belo e desamparado desse tempo, Tuesday Weld rodeada de veneno e de seus belos semelhantes, fazendo da consumição o baralho fornecido pelo destino, again, and again, and again… lado a lado com a Wanda de Barbara Loden e a Shirley Knight de The Rain People, imensamente mais estoicas do que Fast Eddie Nelson. O sublime, preso por invisíveis liames. Não se pode passar impune por aquilo que não se é, mesmo que o brilho seja soporífero e irresistível.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Quem Programa Sou Eu: Desporto XI



Forget Paris, de Billy Crystal, 1995

Forget Paris é um filme sobre basket? No genérico irrompem retratos de feras do calibre de Henri Cartier-Bresson ou do absurdo de Elliott Erwitt, ao som embalante de Billie Holiday. Corte, e um piano toca notas gravemente possantes, a câmara sobe numa grua e vemos outro tipo de feras que marcaram o desporto universal dos anos noventa, de Charles Barkley a David Robinson. Estranha mistura do que é artisticamente baixo e do que é artisticamente alto, estranha mistura documental e cinemática, para, passadas as decisões in extremis da bola, aparecer o árbitro interpretado por Billy Crystal a mostrar que quem tem um apito pode ser um dos homens mais poderosos nesta terra e meter monstros daqueles e multidões daquelas na sua ordem.

Forget Paris é um filme sobre as altas impossibilidades de um argumento cinematográfico apenas poder ser superado pelas altas impossibilidades que a vida confirma a cada momento. Onde os narradores em volta de uma mesa de restaurante encenam a narrativa e as emoções a seu bel prazer desse par improvável – a árbitro da NBA e uma jovem que trabalha numa poderosa empresa de aviação que se conhecem no enterro do pai do primeiro em Paris depois de voltas e reviravoltas do caixão. Um pai que parece querer entregar ao filho o que nunca entregou em vida.

Narradores que encenam a seu bel prazer, manipulando e ajustando a fita conforme o prazer e segurança a adquirir para a vida de cada um que está a contar, perfeitos realizadores. Forget Paris é sobre o individual no colectivo, as jogadas sumptuosas e os compromissos, a técnica e a poesia e a corrida de fundo, a generosidade e a inteligência. Quem quiser bater todos os recordes e nada ganhar, sempre tem os deportos solitários. Um filme sobre basket que parece ter a mesma orquestração e fôlego da vida corriqueira. Forget Paris é sobre o momento da perfeição inicial da criação do universo e sobre o seu explanar lento – um filme sobre a experiência e o movimento totais onde o mais mediático e a exepção esbarram com a regra e com a banalidade. O homem que aparentemente tem mais tomates na américa, o único capaz de mandar calar Shaquille O'Neal, e a menina parisiense mas americana que domina as rotas dos ares e do mundo, amam-se totalmente, não se conseguem ajustar, jogam e matam o seu “eu”, para descobrirem que esse é o cesto complexo que interessa.

Pelo meio, mais Billie Holiday, danças à Gene Kelly, Cole Porter e Duke Ellington e Ella Fitzgerald que já viveram aquilo tudo, as camisolas dos lamentavelmente desaparecidos Seattle SuperSonics, o Billy Crystal que é a pessoa mais bonita de sempre a descer dos pedestais, o cúmulo do romantismo na declaração final e a balada dos créditos como pura piroseira. Forget Paris acata todas as coisas belas e tudo o resto inclassificável e não só nos confirma o cliché inelutável do jogo da vida como não o separa da poesia do instante mágico para todos conservado, à espera, disponível, para dez segundos ou para nunca. It's a kind of magic, cada um, o seu filme.

Quem Programa Sou Eu: Desporto X


Traffic, de Steven Soderbergh, 2000

Traffic marcou o inicio deste milénio pelo culminar da arte excessivamente realista e calculadamente experimental do seu realizador Steven Soderbergh, mas sobretudo pelo grande tema que serviu de base a um mosaico narrativo e plástico tão fragmentado como decorativo: o vai e vem dos cartéis de droga entre o México e os Estados Unidos da América e todos os estonteantes reflexos mínimos e globais. Grandes estrelas a mostrarem os bons sentimentos da causa, o choque estético a ser infligido no choque político, a Questão a estilhaçar-se para todos os lados. Mas o mais tocante, que alguns viram na época (para lá do óscar) e que hoje vale toda a odisseia só para ele, é o polícia de Benicio Del Toro, um anjo puro a flutuar no miolo do degredo, todo porco e fulminado pela consciência, fechando o filme num céu estrelado que é dos mais reconfortantes pós-Frank Capra. À sua personagem foram oferecidas todas as mansões da luxúria e todos os castelos para fazer o que tem – sempre e simplesmente – de ser feito e ele apenas pediu um campo de jogos para os meninos que ele foi antes das escolhas graves. No final caímos sem paraquedas num Paraíso Perdido que ganhou a sua intocabilidade mítica e, a la Capra ou a la Walsh, a perfeição arrancada a todos os custos; ou, a la Nick Ray, escondidos para vivermos felizes. Del Toro é ali o ser mais sozinho do mundo e quem tudo ilumina, numa luminância visual e sonora que lapidou noutro milagre a sua pureza ao excesso. De repente, um milagre que sempre se adivinhou mas nunca se acreditou no silêncio cadente do rasto de um corpo e de uma alma unas.

E o mais belo pedaço de filme sobre a infância. Dores de crescimento. Eternos regressos. Ausência de tempo.

Disponível no My Two Thousand Movies: https://mytwothousandmovies.blogspot.com/2019/08/traffic-ninguem-sai-ileso-traffic-2000.html

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Quem Programa Sou Eu: Desporto IX



Without Limits, de Robert Towne, 1998

Já na introdução a este ciclo sobre desporto tinha falado da homenagem feita pelo grande argumentista Robert Towne a um dos mais estranhos destinos e a uma personalidade que mais do que “teimosa” – como muitos no seu tempo apenas quiseram crer – se aproximava perigosamente – como sempre – da poesia. Without Limits tenta apanhar a cada momento os resquícios voláteis e a aura fúlgida e logo fantasmática de uma existência que de tão intensa parecia estar sempre a poder desaparecer para sempre num simples piscar de olhos. Para tactear essa sensibilidade leve como o vento mas absolutamente resoluta chamada Steve Prefontaine, Towne convocou um dos maiores directores de fotografia de que temos memória, Conrad L. Hall, e foi como pôde até ao fim do enigma do corredor de fundo que decidiu atacar sempre o primeiro lugar desde o tiro de partida ou então falhar grandiosamente; e, quando não o fez, no auge da precoce carreira, matou-se a ele mesmo ainda antes da tragédia que lhe iria ceifar a vida, antes de todas as medalhas ou antes de todas as polémicas vãs.

Without Limits é a aproximação vaga e possivelmente impossível desse hieróglifo puramente humano que respeitava e queria muito o seu treinador Bill Bowerman - Donald Sutherland, soberano – mas que não se desviava um milímetro da sua poética, do seu coração ou dos quartos complexos do cérebro que o ordenava. Talvez fosse uma resolução simples e afinal bruta de um Macho Alpha – apenas se sentia «um conas» se usasse a táctia habitual de muitos campeões: ficar na cauda do pelotão e atacar no final; ou algo intrincado ligado com a neurociência e com a formação ontológica; ou simplesmente, e aí a luz de Hall e o olhar de Towne parecem corroborar, estamos no campo do indomável, da poesia, precisamente: e a arte, como um pintor ou um romancista, de Prefontaine, é de cada vez esboçar e cumprir um plano arriscado, em rede tensa, um poema em pista, a sua catedral, o sua Capela Sistina, muito para além do entretenimento, do espírito olímpico ou do desportivismo. Steve Prefontaine parece a cada corrida rasurar na pista de tartã – mas na terra ou no cascalho seria igual – o seu ideal de mundo e então de beleza, e matar-se para o cumprir.

E aí muitas vezes o ganhar não era o fim absoluto – como os hustlers americanos, de Jordan ao Newman de The Hustler – mas algo a um tempo e nesse espaço longínquo e composto numa das partes do edifício, da sua estrutura que não compreendia a vitória como a cúpula perfeita. A atitude, o arrojo, o explanar da vontade e da sua compreensão do mundo criavam então essa beleza – não premeditada como todas as belezas – única e intransmissível da verdade. O que leva obviamente a questão para os campos da solidão, da dor, e, para os místicos, da Paixão. «A lot of people run a race to see who is fastest. I run to see who has the most guts, who can punish himself into exhausting pace, and then at the end, punish himself even more.», palavra de Pre.

Imperscrutáveis são os fardos ou as redenções que alguns escolhem ou não escolhem. Ainda mais estranhas sãos as estupefacções de quem as não compreende. E assim sempre foi.


Disponível no My Two Thousand Movies: https://mytwothousandmovies.blogspot.com/2019/08/sem-limites-without-limits-1998.html

Quem Programa Sou Eu: Desporto VIII



Eight Men Out, de John Sayles, 1988

John Sayles é um cineasta sensível e um grande admirador e conhecedor de basebol, como se pode ver na monumental série que Ken Burns dedicou ao the National Pastime. Sobre o episódio de corrupção que assombrou a liga em 1919 já ouvimos falar no The Rookie of the Year de John Ford, e o que quero então destacar aqui, para além de que a verdade raramente é pura e é com certeza mais do que profundamente complexa, são os momentos em que Buck Weaver, um dos Eight Men Out, para para falar no passeio com os putos que o admiram e com a sua amada. São sempre, de uma só vez, bondade, pura poesia, e o âmago do filme.

A primeira vez: Buck a dizer maravilhas de um seu companheiro de equipe; a dizer aos miúdos que é tarde para jogar com eles pois tem a esposa à espera; e a aceitar o pedido, perante um delicado please; o resto é um Mundo Perfeito dos passeios e becos da infância, longe da sujidade adulta, em noite e relevos graciosos.

Com a sua amada: a amada a dizer a Buck que não se deve preocupar demais, que ontem esmagou e que tem o mundo a seus pés (mais coisa, menos coisa, na minha leitura); Buck a dizer que só quer jogar como nos passeios e toda a sujidade adulta a passar nos seus olhos com a grandeza e o brilho choroso e cândido de uma genuína tela de cinema; os dois a preferirem não saber; não saber talvez noticias lá de fora do mundo.

A segunda vez: Buck a confessar que desconfia que nunca tenha crescido; os miúdos a perceberem tudo; a confessar ainda que continua a gostar de jogar como na primeira batida, da perfeição e da ordem que parece descer sobre todas as coisas, de como parece que vai viver para sempre; nunca desistam disso, é o único conselho possível entre iguais.


quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Quem Programa Sou Eu: Desporto VII



Bull Durham, de Ron Shelton, 1988


Em tempos incertos e remotos, mas não muito, uns miúdos que jogavam futebol no condado portucalense tiveram um presidente do clube e todos os seus assistentes que lhes atiravam tiradas não-transcendentais, ternamente e com verdade, que iriam ficar, para o bem e para o mal, nas teias  das suas memórias, tais como: «o que importa é que ninguém se aleije», ou: «desportivismo acima de tudo», para fazerem a síntese perfeita: «se conseguirmos a taça fair play já é muito bom». Mediante encorajamentos destes, não consta que tenha saído da cepa nenhum Luís Figo. Mas tão menos éticas como de resultados análogos era a moral e os conselhos do treinador que acumulava a função recreativa de mestre do fogo-de-artificio da freguesia: «estudar para os testes? para quê? copia! eu quando andava na escola e tinha pontos metia as cábulas nos tomates. Se a professora visse eu dizia-lhe para ´mas tirar dos colhões! joga ´mas é à bola, pá! E caga para essas coisas» 

Talvez tenham dito destas coisas ao personagem de Tim Robbins em Bull Durham – a próxima next big thing desmiolada – talvez tenham gritado tamanhas odes ao Crash Davis de Kevin Costner – o mítico jogador das segundas linhas que nelas detém todos e demais records e isso basta; fabuloso actor, distante aqui da aura celestial do Gary Cooper de The Pride of the Yankees, mas só porque os tempos já não admitem aqueles anjos públicos e Cooper nos anos 80 teria sido Costner - sendo essa a grande ambiguidade e complexidade do filme, do conto e da moral: quem vive feliz, realizado e consciente na sombra e quem tem de mergulhar nas mais extravagantes luzes para um objectivo de fundo: dominar as bolas na quadra de jogo e na cama.

O “monstro” de Robbins que pode ser só isso com culpas ou sem culpas formativas, ou o analógico de Costner que grita para a sexy esfomeada de Susan Sarandon (não dá para traduzir): «Well, I believe in the soul, the cock, the pussy, the small of a woman's back, the hanging curve ball, high fiber, good scotch, that the novels of Susan Sontag are self-indulgent, overrated crap. I believe Lee Harvey Oswald acted alone. I believe there ought to be a constitutional amendment outlawing Astroturf and the designated hitter. I believe in the sweet spot, soft-core pornography, opening your presents Christmas morning rather than Christmas Eve and I believe in long, slow, deep, soft, wet kisses that last three days.»

Ron Shelton, belíssimo realizador realizador, de quem tenho de recomendar Jordan Rides the Bus, apanha tudo isto tão naturalmente como o movimento do ar nas árvores e tão avidamente como a pulsão de qualquer um dos três protagonistas, num secretíssimo esplendor Visconteano – atenção aos fundos sólidos, inteiros - aplicado ao dia-a-dia sem mais nada do que o café, a bola e a tal da pulsação que torna todos os antagonistas mais do que complementares, absolutamente semelhantes. E é muito.


Disponível no My Two Thousand Movies: https://mytwothousandmovies.blogspot.com/2019/07/jogo-tres-maos-bull-durham-1988.html

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Quem Programa Sou Eu: Desporto VI



Red Line 7000, de Howard Hawks, 1965

Pode ser que como escreveu João Bénard da Costa HH tenha aberto aqui a primeira das vias do post-modernismo. Ou, lembrando-me de um texto de resgate de Jesús Cortés no seu blog, se trate de uma das suas obras mais emocionantes, sem espartilhos pulsionais ou elipses atenuadoras. O artificialismo, o “sobrecarregamento”, as séries, a panóplia técnica de efeitos – mesmo sendo secos e directos – no primeiro caso; a paixão inalienável em fundo fatalista, o controlo e compartimento impossível entre o profissionalismo e o íntimo, o vício do risco contra o conforto prometido, argumentos já para o segundo caso. Isto para não falarmos de loosers, errantes, neuróticos e uma violência instintiva que na antepenúltima das suas obras se torna outra coisa ainda, mais abstrata e fugidia, comovente e perigosa. A estrutura é de facto inaudita para a linearidade habitual: três pilotos que se abrasam pela hora de carregarem no acelerador e domarem o volante, mulheres que lhes aparecem, desaparecem e se trocam; suspensão de uma das histórias que corre para apanharmos outra no começo ou nos meios; regressos nada maquinados mas sempre imprevistos e em perda; cruzamentos que não possuem o estilhaço ou afogueamento dos mosaicos do “contemporâneo” mas antes a espessura e peso das correntezas incessantes - aquilo que um especialista consciente poderia aproximar de Joyce e desaproximar de Homero não é tão simples. Teoria que vacilaria imediatamente pela verificação de uma montagem que nunca dispersa, nunca perde a memória e o coração, mas que investe de sentidos, dependências, irmandades e individualismo, ambiguidade complexa, rumo a um painel intrincado na sua despojada frontalidade. Continua-se a andar em frente mesmo no circulatório. E tudo o que cerca e carrega esta tragédia de proporções iguais às do início ou do final de “Red River” – o barulho das plateias e a ordenação do speaker, os números e numerações que abananam, o sortido das cores, a tal da sacrossanta e perfumada borracha queimada, fumaradas, óleos e brilhos que despistam e atormentam tanto quanto os inevitáveis acidentes. Tragédia a que Hawks se atira sem rede, sem cálculo prévio, segurança responsável, chegando-se a terminais terrenos do melodramático, e junto a ele e ultrapassando-o, toca no lirismo. Esse lirismo no seu grau final que combina a sacralidade dos ardores com o funesto incessante. O sorriso e a beleza das mulheres e todo o paraíso prometido / a ameaça a cada ronronar e tentação dos motores frios e quentes que com eles dialogam.
 
Noutro dos raros textos a esta obra que permanece incaracterizável e praticamente escondida, Joaquim Pinto aponta que estamos perante outro caso original - o que não é de somenos no percurso tão complexo e perdido pelas misérias humanas do realizador - ou seja, continua ele, nenhuma das relações encontra saídas definitivas no final. Pinto fala ainda no acaso, esse malvado que tudo parece orquestrar sem justificações ou justiças terrestres para lá do virtuosismo. A sentença capital e potencialmente capitular é mesmo capaz de ser a derradeira, quando uma das mulheres do trio tortuoso reconhece o inferno daquela maneira de ganhar a vida. Essa indiferença em que os tipos do asfalto são como a carne para queimar por culpa própria, e onde elas os aguardam sem certezas como nas guerras. Obviamente perto da incandescência e nudez de um “Today we Live” ou de um cineasta seu perfeitamente contrário, Douglas Sirk, onde o absoluto concorda com a consumição instantânea – é o momento fugaz e eterno daquela corrida ou cavalgada não oficial noite adentro pelas pistas da loucura entre James Cann e a sua companheira, instantes de rara urgência que se seguem ao canto anterior, melodia da entrega, e que perfazem dois dos grandes momentos do cinema. O homem em perigo e a vitalidade disso, sempre, custe o que custar, nem que seja necessário fazer-se capitão gancho ou Edward G. Robinson de “Tiger Shark” e desafiar os Deuses; e a necessária paga, a solidão no tão geral e a dor para além de nós mesmos espalhada.
 
Eles, tanto eles como elas, não disfarçam, não dissimulam, não se encolhem mesmo no medo que aninha, mas abrem-se, agem e falam sem rodriguinhos ou máscaras do sexo ou da confiança, numa verdadeira modernidade que nos chega da origem. Jamais construção feita conscientemente moderna, sim o “The Crowd Roars” em paisagem a caminho do degradamento desse mesmo falhanço modernista, post ou não. “Red Line 7000” pode ser assim como um novo poema ou tratado de outra cavalgada, aquela que nos agarra diariamente, momento a momento, bafo a bafo, para a morte; e a superação, a não desistência, transgressão se necessário, a aceitação, alma. Vai a todas as fatias do tempo e a toda a sua história num único movimento. O excesso latente abranda, trava, derrapa, cala-se perante os silêncios dos olhares e as temperaturas dos desejos. Advém a intimidade do gesto que Glauber Rocha procurou para as suas demenciais óperas. Esse espírito secreto…
 
Aqui, nenhuma novidade a não ser a presença de tantas das questões que nos géneros ampliou, pois HH tanto nos ofereceu documentos pendentes sobre as grandes aventuras, esses gigantismos da nossa musculatura, lembro-me da detalhada sequência madeireira de “Come and get It” que só tem par com a de “Sometimes a Great Notion” de Paul Newman muitos anos depois; como a velocidade irreal e assim sensível de “His Girl Friday”, ou seja, outras fatias de experiência essencial ao todo. A grande lição, tanto para o cinema como para o dia-a-dia, que esta cepa nunca fez distinções, é que o centro pode estar no fluxo e o fluxo no centro, basta olharmos e escutarmos bem. Fazer por inteiro. E qualquer dia a qualquer segundo tudo faz sentido e se sente. Citando JBC outra vez, agora a propósito de outro Running: “…Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros.”
 
Combinar o estratosférico, a combustão e o delírio com a serenidade, o desassombro, a certeza. E ser parcial se necessário, comprometendo-se e ignorando. Nem mais nem menos, hoje em dia, Michael Mann. Não só por causa dos seus profissionais, obreiros intransigentes, obstinados, onde tudo o mais parece ficar nas margens da pulsão ontológica. Esses que só respiram com causa, pressionados, em modo tudo ou nada, progredindo no opaco - o fogacho de Robert de Niro em “Heat” com a bela magoada como ele que foi uma das mais intensas gestas de amor. Mas o mesmo: buscar uma verdade onde elas se expõe inteiras pela força e dimensão da circunstância. Toda a caminhada destes destemidos, tão invencíveis, tão frágeis.


Quem Programa Sou Eu: Desporto V



The Pride of the Yankees, de Sam Wood, 1942

Sobre Lou Gehrig e a fascinação fora de tempo pelos heróis que nos formaram na primeira idade,  John Fante, o poeta da bruteza do quotidiano e das rotinas mas também o mais terno irmão que nunca conhecemos, escreveu em 1933 was a Bad Year:

«Quando cheguei, o Ken não estava lá. Vesti o fato de treino, calcei as sapatilhas e fiz os alongamentos num banco no balneário, enquanto esperava por ele. As janelas da cave ficavam ao nível da rua e conseguia ver a neve a cair no passeio e as pernas dos transeuntes a caminhar a custo pela recente borrasca.
Era uma boa altura para mim, a melhor parte do Inverno, aquelas tardes passadas com o Ken Parrish. Ele era finalista na secundária de Roper, e o meu melhor amigo. O que nos fazia levantar de manhã era o basebol. O Ken tinha regressado a Roper após ter sido expulso de duas escolas preparatórias do Leste, não por tirar más notas, mas por fazer gazeta para ir assistir a partidas de basebol no Fenway Park, em Boston.
O ídolo dele era o Lou Gehrig dos Yankees. Tinha três tacos partidos do Gehrig e um penso com o sangue coagulado e pêlos do seu polegar colados. O que aconteceu foi isto: certa tarde, estava o Kenny sentado atrás do banco de suplentes dos Yankees, quando viu o Lou Gehrig arrancar o adesivo do polegar e atirá-lo para junto da primeira base. O Ken desatou a correr pela bancada, saltou a barreira para o recinto de jogo, e apanhou o penso do relvado enquanto dois porteiros o agarraram pelo pescoço. Expulsaram-no do parque, mas o Ken ficou com a sua recordação e não se importou.
No final do jogo, manteve-se por perto dos balneários dos Yankees até o Gehrig sair. O Ken pediu ao grande Lou para lhe autografar o penso e este fê-lo com a sua própria caneta de tinta permanente. Esse penso ensanguentado estava agora pendurado numa moldura na parede do quarto do Ken. Ele tinha a certeza de que um dia valeria imenso dinheiro, mas eu tinha as minhas dúvidas. Os velhos jogadores de basebol caem rapidamente no esquecimento.»  

O livro foi postumamente publicado em 1985, mas já nos anos 40 se tinha prestado uma bela homenagem a esse ídolo das massas que chegou a rivalizar com Babe Ruth, no The Pride of the Yankees de Sam Wood. Ídolo das massas e coração ternurento, visão luminosa em movimentos radiantes, portador de dádivas gloriosas que cativaram milhões, simples beleza e simples emoção que todos compreendiam, deixando de um momento para o outro de conseguir praticar a sua grande paixão, morrendo precocemente e deixando em lágrimas tantas famílias e tantos desamparados.

Sobre corpos celestes assim terrenos e em fusão com o outro mais anónimo, encontro de almas sem tempo nem espaço, Walt Whitman, um dos cantores capitais do desporto americano por excelência e logo um dos seus inventores espirituais, escreveu: «Do I contradict myself? Very well, then I contradict myself, I am large, I contain multitudes.»

O resto, o rasto estelar, indefinível, inexplicável, incontável, é a história de amor entre o Gehrig que só a Gary Cooper pode pertencer e essa Eleanor da frágil e blindada Teresa Wright, num percurso Borzageano que passa pelo presente imaculado e pelas sombras do destino com a mesma resolução; num imaginário de sonhos talvez pudesse ter-se chamado outro dos sonhos que Frank Borzage nunca filmou, em branco sobre branco sobre branco: Este Coração que te pertence (como alguém chegou a traduzir para português o título do livro póstumo de Hans Fallada, Dies Herz...).

Disponível no My Two Thousand Movies: https://mytwothousandmovies.blogspot.com/2019/07/o-idolo-do-publico-pride-of-yankees-1942.html

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Quem Programa Sou Eu: Desporto IV



Above the Rim, de Jeff Pollack, 1994

AtR continua a ser mostrado nas aulas de Filosofia ou até mesmo nas de Educação e cidadania, como exemplo de superação, do hereditário, da possibilidade de concretização dos sonhos mesmo nos locais mais cinzentos, enfim, para dizer aos alunos perdidos que o crime não compensa; mas não é por aí que se chega a algo de especial. Se formos ao “cinema” e à “convenção crítica” também não vamos muito lá, pois Jeff Pollack, o realizador, foi um dos criadores do “The Fresh Prince of Bel Air” e de outras séries e filmes que não o vão meter nos anais nem proporcionar retrospectivas, nem na pequena história, porventura; por outro lado estamos a planetas da dramaturgia cósmica emplacada num court de Spike Lee; e há quem diga que foi só mais um veículo para Tupac Shakur e para mais uma banda-sonora de éxito e tal... produto ou mercadoria para amamentar mil e um top de qualquer Billboard...
 
Mas vamos a três momentos, sem desconto de tempo: no berço, o movimento de câmara (panorâmica, senhor professor?) que apanha Michael Jordan suspenso no espaço sideral, brilhante como a primeira estrela cadente na noite inaugural, passa pela desarrumação do jovem artista e encontra a estrela do momento pronta a render, acabando tudo enquadrado na catadura do samurai Pat Ewing (salvou-nos tanto como Barkley e Rodman nos libertaram), inclusive o Pump Pump de Snoop Dogg e Dre – todos os anos de 90, as fitas de celulóide a desenrolarem-se e a justificarem a sua razão de ser, e a rima para a posterior projecção e cantoria quimérica e realista de “Shaft”, carga sem metafísica.
 
Segundo andamento, no caminho, rasgando o ar do tempo e do espaço, contra o cronometro: quando a estrela do momento humilha o vagabundo que poderia ter sido alguém e este é “salvo” pelo que quis ser ninguém; no epicentro das ilusões perdidas, fica clara a questão da facilidade do presente em relação à memória, o despachar com um chuto-no-rabo ao invés de ganhar tempo com o legado, o que fazer com o grande momento que já passou e que não ficou nos livros, e como isso é igual aos erros que as grandes nações e chefes cometem ciclicamente, chegando os genocídios e as guerras; e, claro, fala dos grandes que só o foram fugazmente pois preferiram, e certos, pois são eles a decidir, o seu “vício” que para eles é a felicidade mais do que todo o ouro e compromisso da fama – um Belarmino Fragoso ou um José Egas dos Santos Branco (a.k.a Zequinha), jogador da bola que passou por clubes como Setúbal ou Porto, hoje trintão e finalizada a carreira, que arrancou um cartão vermelho das mãos de um árbitro, irradiado mil vezes. Cena em que se percebe a irremediabilidade do “agora” em gravidade inusitada, o milésimo de segundo a levantar a espada ameaçando o eterno, ainda mais porque não se chama a atenção para tal, é só uma luta de egos.
 
Por último, já no cesto, passando o aro, contando: depois da vedeta cair na realidade não porque lhe aumentaram o número e a qualidade das garinas mas porque trataram abaixo de cão o seu amigo de infância; passado o confronto com os fantasmas de outrora e estendida a rampa da redenção a cada qual, depois de mais um bailado comum em que o fogo-de-artifício da maquineta e da montagem e dos filtros poderiam ter brilhado mas ficaram no banco, um “last minute rescue” à força toda, cosendo as pontas soltas, as esquadrias e simetrias, bem como o punch perfeito para a conclusão da aula benemérita. Mas... fundo mas... como num afundanço... o que acontece para cá do televisor (sequência final do palco do bairro à transmissão televisiva) foi a trajectória da bola que traçou o movimento do filme: a aprendizagem, ou crescimento, ou meter-se na linha certa, enfim, não cometer passos, é sempre fintar, sem o desprezar, esse prenúncio de morte; é enfrentá-lo, mesmo que seja um Tupac (ou um The Notorious B.I.G.) símbolo irónico de todas as misérias e pulsões do instante.
 
Quase nada, domingo de tarde, e precioso.
 
 
p.s: já que se anda por estas redondezas, “Straight Outta Compton” de 2015 é bem justo e muito bom; pelo fundo em causa ainda não deu para estrear em muitos países, como o nosso, nem nas cinematecas, muito menos para imprimir dossiers culturais, mas talvez seja só pela forma que é bom e justo, o resto vive inseparavelmente nisso, como tudo que importa; feito em plano-sequência (beats erguendo um enorme corpo orgânico que pode acarretar com tudo) com um grande Coppola, sem efeitos ou loops de transição fácil ou de reconciliação provocada só por truques e mercantilismos de plot, segue pessoas e situações como se pertencessem aos anos de Bathsheba ou numa Síria de agora, ao lado e nunca picando ou usando de superioridade cinematográfica; muito mais próximo de um Dj Kronic do que dos discípulos de um Vibe, de Zeca Afonso do que António Zambujo, é uma peça para um tempo e para uma profecia que ainda tem tudo para oferecer. E F. Gary Gray, desde o magnetismo com que apanhou o terreno convulso da face e as ondas carregadas da voz de Sam Jackson em “The Negotiator”, com certeza nunca quis enganar alguém.