quinta-feira, 20 de abril de 2023

momentos de 2022...

 


Em 2022 três grandes autores fizeram obras tão grandes como tudo o que já fizeram. Herzog foi desenterrar imagens alheias. Mário Fernandes fez um luto vital. McCarthy fez também ele um requiem pelo irracional. Irracional, analógico, amador. O inesperado e o risco. A bomba atómica de Oppenheimer é o irracional que salva e a lucidez que cega de qualquer destas obras. O ideal seria não falar em filmes, livros, discos… Mas falar em gestos e coragem. Antes da cultura, a liberdade total da expressão. O conhecimento. A irresponsabilidade.

 

FILMES:

 

- The Fire Within: A Requiem for Katia and Maurice Krafft, de Werner Herzog

As mais sublimes e abissais imagens da História do Cinema foram arrancadas, colhidas ou domadas por amadores. Sem consciência de estilo. Sem lucro calculado. Por necessidade. Para a memória. Herzog é um atlante, Suporta um mundo enorme! (António Reis dixit)

- Mnemosyne, de Mário Fernandes

Todas as perdas de todos os tempos. O que escorre pelas crostas destas imagens e destes sons novos? O mundo desde que é mundo (natureza, Homem, segredos) a sangrar.

- Ilha dos Pássaros, de Maya Kosa e Sérgio da Costa

Uma pequena imagem / forma científica, o cosmos a perder de vista e a sua poética.

- La Maman et la Putain, de Jean Eustache, 1973 (reposição)

Palavra em carne viva. Corpo de Deus. Sacrifício irreversível.

- Accattone, de Pier Paolo Pasolini, 1961 (reposição)

Johann Sebastian Bach das auras celestes e os anjos do degredo de todas as sarjetas da terra. Não sob o mesmo olhar, antes em rotação numa mesma esfera, matéria de gravidade que perece e reanima, que perece e reanima… sem culpas. Matéria na gravidade.

+1:

- Top Gun: Maverick, de Joseph Kosinski

Se este manifesto suicidário tivesse terminado com o suicídio de Rooster em direção ao infinito e impossível Éter, a aproximação a Virgílio e à nova Eneida roçaria o impensável. Tudo o que se segue é traição publicitária. Mas a pulsão esteve lá.  A pulsão de morte de não-heróis queimados e estraçalhados pelas sombras ontológicas.

 

(RE) DESCOBERTAS:

 

- Southern Comfort, de Walter Hill, 1981

A guerra do ano (da época, a última novidade abjeta que chegou) e a guerra da antiguidade são um prolongamento. Irreversível enquanto aqui estivermos.

- Enchantment, de Irving Reis, 1948

Tudo tem espírito, tudo tem carne. Basta a centelha alastrar.

- Appunti per un'Orestiade africana, de Pier Paolo Pasolini, 1970

Rima perfeita, redondo vocábulo, com The Fire Within de Herzog: a metade do mundo esquecida como a beleza e a utopia inaudita (e logo esquecida pela metade reinante). Tanto na antiga cópia VHS carcomida como no restauro HD, nunca a carne e o olhar alcançaram tais brilhos.

 

LIVROS:

 

- The Passenger / Stella Maris, de Cormac McCarthy

No centro do Incesto e do Apocalipse absolutos, a ousadia da Loucura, isto é, desfaçatez de olhar o (falso) medo que nos fazem suportar de frente, tal como não se deve olhar o fogo ou a lua. O caminho ainda possível para a liberdade. (tradução: Paulo Faria)

- A Fome Apátrida das Aves, de Francisco Duarte Mangas, 2013

Conhecimento. Observação. Transmissão. Milagre: antes do verso ou da frase ou da melodia, cada palavra ao calhas, cada canto de papel, são o Éden; não o regresso a tal, mas o Éden intocável, Adão e Eva como fontes jorrantes de todas as possibilidades, perfeições, contrários.

- Dictionnaire des films - Tome 2 De 1951 à nos jours, de Jacques Lourcelles

Quando a aristocracia sublime significa simplicidade sublime.

- Eneida, de Virgílio (tradução de Carlos Ascenso André)

A forma épica e o suspiro íntimo conjugados à mesma medida. Resplandecentes carnes e resplandecentes mentes em conluio com trevas originais.

 

DISCOS:

 

- Mr. Morale & the Big Steppers, de Kendrick Lamar

KL, o único que ainda morre a cada inspiração e morre de novo a cada expiração. Tamanha massa e energia não podem ser igualadas em potência crescente, bombástica.

 

EVENTOS:

- Todas as apresentações feitas por Mike Siegel sobre Sam Peckinpah nos Encontros Cinematográficos do Fundão. «Do pentelho revelador ao geral e à síntese», como alguém disse, coube tudo. Tudo deste genuíno intelectual / selvagem apareceu de novo e para lá de quaisquer bordas.


in: https://tribunadocinema.com/os-melhores-momentos-de-2022-segundo-jose-oliveira/

imagem: excerto de O Passageiro de Cormac McCarthy na tradução de Paulo Faria