sexta-feira, 7 de julho de 2023

Filmes de Amanhã: Novamente Sozinhos, Longe das Leis

 


Podia, ou devia…, começar com uma citação do Virgílio das Bucólicas ou das Geórgicas para vos falar sobre TERRA QUE MARCA, o milagroso filme que Raul Domingues arrancou – ou pediu – literalmente à terra. A terra percebeu tamanho cuidado, gentileza e ternura, e devolveu-lhe tudo o que podia, como nos cultivos e plantios bem feitos. Mas, como dizia, não citarei o poeta romano ou qualquer outro dos vultos da poesia da terra (Eugénio de Andrade seria perfeito na mesma medida…), mas sim um americano comumente ligado ao género hardboiled, policial, crime, Jim Thompson, que trabalhou sem fama e acabou aflito em centros de betão e violência. Como escreveu Manuel Ruas, um dos seus tradutores portugueses: «um dos mais autênticos e mais vigorosos escritores da melhor escola norte-americana do romance duro. Nascido numa reserva comanche, homem de inúmeros ofícios, produziu uma obra literária vasta e arrebatada, dolorosa e convicta.» Ou seja, citarei alguém que teve constantemente calos nas mãos e soube bem o que a vida custa.

Em Violência e uma Cabana, que não é policial, mas sim celestial, etnográfico, antropológico e humanista acima de tudo, um pequeno livro total e panorâmico, o personagem principal, acabado de sair da cadeia e cego e coçado de desejos de vingança, começa a pensar assim, muito interiormente: «No momento em que tomei o autocarro já o Sol se tinha posto, praticamente, e a noite estava fria. Sentei-me junto de uma janela, a olhar para fora, vendo os campos a desfilar. Sempre gostara do outono; mais ainda que da primavera. Bem sei que o outono parece a certas pessoas uma estação morta, com tudo quanto é verde já desaparecido ou a desaparecer, as terras endurecidas e com aspecto de cansadas, os pássaros muito parados e a cantar mais baixinho. Mas a mim nunca me pareceu assim. Eu, bem, eu nunca sentira realmente que o verde desaparecera. Estava ali, mesmo nos campos de onde viera, e lá estaria quando a primavera voltasse, bem repousado e a brilhar com mais beleza que nunca. A terra, naquela época… bem, eu digo-vos o que sinto a respeito. Tinha feito um bom trabalho; tão bom quanto podia, de qualquer modo, e tinha o direito de parecer cansada. Seria de estranhar se ela apresentasse outro especto. Sim, e a dureza também estava certa. Tinha passado por algo de muito duro e uma parte dessa dureza podia bem ficar nela. Mas depois desapareceria. E, por vezes, um franzir de testa fica-nos muito melhor que um sorriso. Nós não pretendemos ver rir uma terra que sofreu bastante. Mas lá por ter deixado de rir, isso não quer dizer que nunca mais o faça

Toda esta dor da terra, toda esta dor de parto, de morte e de ressurreição, de convalescença e reflorescimento, está presente no filme de Raul Domingues, ao mesmo tempo com um ultra-realismo e uma abstração pura. Um filme amador, um gesto para o futuro.

Durante a minha primeira idade cinéfila, grosso modo a partir dos vinte anos, quando via pelos menos três filmes por dia, uma frase de François Truffaut foi para mim um modo de vida: «(...) O filme de amanhã parece-me mais pessoal do que um romance, individual e autobiográfico, como uma confissão ou um diário. Jovens cineastas exprimir-se-ão na primeira pessoa e contar-nos-ão o que aconteceu com eles. Poderá ser a história do seu primeiro ou mais recente amor, uma tomada de consciência política, uma narrativa de viagem, uma doença, o seu serviço militar, o seu casamento, as suas últimas férias, e isso quase inevitavelmente agradará porque será verdadeiro e novo... O filme de amanhã será um ato de amor.» Foi a época em que amei a Nouvelle vague acima de todas as coisas, a desconstrução de Truffaut, de Godard… e a pós- Nouvelle vague, os filmes ultra-pessoais de Philippe Garrel e de Jean Eustache, tão íntimos e com a própria vida a fazer-se matéria em carne viva que queimavam, volvendo-se suicidários. Passada essa adolescência e passada a necessidade vital de cuspir e de combater a academia, os compêndios canónicos ou as listas dos melhores filmes de sempre com Orson Welles ou Alfred Hitchcock à cabeça, chegou a minha paixão pelo cinema clássico americano, através do entusiasmo e das lições de João Bénard da Costa na RTP 2 – tempos que já não voltam… - e do grande professor e escritor Carlos Melo Ferreira, na ESAP. Fiquei até hoje muito mais apanhado, e tocado, pelo modo total como John Ford ou Howard Hawks filmaram tanto um rosto de um cowboy ou de um índio como uma montanha ou um vale, com uma limpidez e uma ordem de grandeza e de beleza que, paradoxalmente, continha todos os mistérios. E durante anos, até há bem pouco tempo, julguei todo o cinema através da bitola e dos valores clássicos, que para mim sempre foram modernos e progressistas. Por isso fui desprezando muito do contemporâneo, umas vezes injustamente, confesso, outras vezes convictamente. Ou seja, esqueci a frase de Truffaut acima citada. Até que a venho recuperando através da descoberta de “pequenos” filmes perfeitamente subjetivos, íntimos, individuais, próximos da forma literária do diário… mas mesmo assim fugidios e com capacidade para reinventar tudo. Dois exemplos cimeiros: Mnemosyne, de Mário Fernandes, acabado e exibido em 2022; e TERRA QUE MARCA, de Raul Domingues, estreado igualmente em 2022. Ambos tiveram uma longa gestação, ambos possuem um artesanato e um amadorismo precioso que só foi possível nos primeiros anos do cinema mudo, quando tudo era inocência, quando tudo era o Éden antes de Adão e Eva se perderem e se acharem… antes do pecado do comércio, dos prémios, da carreira respeitável. E ambos, extremamente abstratos, livres e primordiais, nos mostram e contam coisas fundadoras.

Mnemosyne, carregado de som e de fúria, cheio de vento inaudito, é uma história de amor e um luto vital em terreno mítico, antiquíssimo, onde as crostas das imagens e dos sons parecem sangrar, cosmos que se vai apagando lentamente para tudo se renovar, outra vez, mais uma vez, a uma nova luz… TERRA QUE MARCA resulta de um trabalho demorado de amor e de louvor à terra que só terá paralelo com os grande panteístas e líricos russos e americanos dos anos vinte e trinta do século passado, Aleksandr Dovjenko ou King Vidor. Filmado num formato considerado resolutamente obsoleto – o mini-DV – entrega-nos pistas quase bíblicas através dos intertítulos iniciais, para logo nos largar durante uma hora tanto nas práticas do cultivo da terra como nos imemoriais trabalhos da luz, das suas reflexões e imponderáveis. Tão carregado de som e de fúria – Faulkner ou Shakespeare – como o filme de Mário Fernandes e conservando os preciosos erros ou deixando, como num filme caseiro que também o é, as costuras do artesanato à mostra, vamos estar literalmente dentro da terra e da luz e de toda essa massa cósmica e primeira como que para vermos melhor a nossa possível salvação, aquilo de que somos feitos, o nosso berço e o nosso destino, alimento e paz.

Tem-se falado em etnografia – e não digo que esse lado não exista - mas o que mais sinto é pura matéria incandescente, em delírio, o vento nas árvores e nas ervas, a câmara escondida dentro das raízes ou das cascas, os raios e os trovões desta terra e dum olimpo ainda algures, as árvores de um paraíso recuperado, as máquinas infernais. Mário Fernandes é um etnólogo da sua própria realidade, da sua vida. Raul Domingues entrega-se à terra e à luz e chega a alcançar a música sublime da conjugação certa de todas as coisas essenciais. Recusando a identificação e a projeção fácil com o espectador, são obras que preferem o mundo. Ambos possuem as luzes e as sombras, os sonhos e os pesadelos mais puramente humanos. E ambos, longe das leis, escondidos e protegidos pelo amor, vendo as coisas como que pela primeira ou derradeira vez, reinventam o cinema. Aposta que daqui a quarenta anos outros filmes falarão assim da vida de quem os faz e do mundo de todos os tempos. Com imagens e sons nunca vistos.

Atrás falei de ultra-realismo a propósito de TERRA QUE MARCA. Poesia nec plus ultra reinventada e todas as imperfeições, dermes e epidermes estudadas, reconhecidas, científicas, em movimento. A morfologia e a constituição das coisas, da terra, dos corpos dos homens, das enxadas e dos tratores. E para isso o som vertiginoso (e tudo o que direi do som serve para a imagem), selecionado, falho, rugoso, ontológico e estilhaçado é essencial. Domingues não escolheu o caminho mais fácil, não foi ao banco sonoro mundial para comprar todos os sons de todas as coisas visíveis em cada quadro, em cada plano, em cada movimento feito com essa câmara mais próxima de um olho humano do que de uma suposta objetividade e correção profissional. E assim este som, a sua montagem e mistura, não é igual a todos os filmes presentes em todos os grandes festivais, ou seja, não é som amansado, compactado, desmaiado, refreado, morto. Por exemplo, Carlos Reygadas afirmou a propósito do seu último e abjeto Nuestro tiempo que tinha revolucionado o som. Mas não, para ele a suposta revolução consistia em sobrepor todas as camadas visíveis em cima de camadas, alternando e alterando ordens, volumes e equalizações habituais, para parecer radical.

Voltando a TERRA QUE MARCA: muitas vezes vemos árvores, vento, silvas, arbustos, as tripas das coisas e mais natureza múltipla e omnívora que a pouca qualidade do mini-DV não permite identificar ou destrinçar corretamente, e só estamos a escutar o som de uma coisa ou duas, não de tudo, não há obrigação contratual para se escutar tudo. E por isso evaporam-se tanto alguns aspetos da etnografia como quase todos do suposto realismo pronto-a-vestir que tem feito escola, enganosamente. Um quadro, um plano, carregado de terra, de árvores, de céu, de horizonte cultural, de precipitação, de peso de nuvens, ervinhas, passarinhos, animaizinhos vários, arbustos, fantasmas, etc… e escuta-se só um ou dois elementos. Ou pelo menos assim parece, o que vai dar ao mesmo. E é precioso, poético e realista, vivo. Tão realista como quando nos seus westerns ou policiais Jacques Tourneur retirava os passos do homem que se aproximava, do seu movimento e ação corporal, da suposta ameaça, sendo essa mudez mais ameaçadora e ruidosa do que o realismo pronto-a-vestir.

Citando mestre Tourneur: «Às vezes tomo grandes liberdades. Se alguém está prestes a falar, se levanta e começa a andar, eu corto o som todo e não ouvimos o barulho dos passos. Se um vilão entra numa casa e precisa de subir uma escada, eu sei que, depois de eu sair, os técnicos vão guardar os sons todos, a escada, a porta, os passos. É por isso que faço a minha própria mistura de som no plateau. Assim que o actor acaba de falar ou de abrir a porta, eu corto o som e há um completo silêncio enquanto ele sobe e atravessa a sala. Assim sei muito bem que logo que o filme esteja terminado e eu já lá não estiver, os técnicos não vão fazer asneiras na mistura.»

TERRA QUE MARCA é então radicalmente metafísico e radicalmente palpável. Radicalmente silencioso e radicalmente furioso. Que seja considerado documentário, que não o é, não o desclassificado do trabalho que todo o resto do cinema deve sempre ter, seja ficção, seja documento, observação distanciada ou ciência. Longe dos histerismos que um certo cinema português tem rotulado de “realista” – por exemplo, os gestos histriónicos, esgares primatas, modos de falar e de sentir que os atores profissionais que fazem sucesso nas nossas telenovelas têm macaqueado aos supostos “anónimos” e ao suposto social que os envolve para depois levarem tudo isso na mesma medida para o cinema de prestígio festivaleiro, e vice-versa, do cinema à telenovela, em ciclo vicioso; isto para não entrar na questão dos sotaques, pronúncias e gritaria generalizada (os parolos… os coitadinhos…) igualmente ao lado do abjeto e do lamentável; nomes como João Canijo ou Marco Martins têm cometido os mesmos erros do que muitos realizadores menores – o que encontramos neste trabalho apurado, atento e preciso no ato de olhar, escutar, captar a melodia dos corpos e das suas vibrações, sentir e escolher, de cortar e de coser, é um documento de um lugar, o aqui e o agora, irmão de Virgílio e dos atormentado de Thompson, convocando com igual potência o máximo de fogo de uma Poiesis eterna em ebulição. Teoria, prática e poesia, senhor Aristóteles. Aqui chegamos. Amadoramente.

 

José Oliveira, abril de 2023


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