sexta-feira, 18 de julho de 2025

F1

 



F1 é sobretudo uma corrida entre dois tempos distantes, duas épocas distintas, dois mundos completamente díspares: o presente e os anos 90 (que vem dos 80... 70...). Os valores revistos aqui e agora, os supostos bons costumes e as boas consciências de novos "super-humanos", o pânico pela indecência, pelo sangue na guelra, embate com a figura de Sonny Hayes - grande composição de Brad Pitt, com a idade e corpo e a desilusão no ponto certo - que é todo ele polémica, ressabiamento, escândalo, precipitação, generosidade, corpo e mente furados pelas convulsões da verdade; piloto genuinamente grintoso.

F1 até começa como um parente de THE COLOR OF MONEY de Martin Scorsese, pelo regresso aos palcos perigosos de uma velha raposa, da manipulação do novo pelo experimentado, na carregada carga psíquica e subalterna produzida por essas atitudes e dependências. Mas logo se vai transformando - lentamente, ao contrário das corridas sónicas - num western moderno de redenção, onde a sombra de Clint Eastwood se impõe.

Óbvio que o modelo de Hayes é a arrogância e o jogo duvidoso de  Michael Schumacher, a loucura de Ayrton Senna, as polémicas de Alain Prost... Como será o lado extravagante, flamboyant e meio punk-rock do Tim Richmond da Nascar, que já tinha servido como modelo para o Tom Cruise de DAYS OF THUNDER. Não se trata só de ganhar a qualquer custo, mas sobretudo de sentir toda a gama de emoções numa pista e colado ao volante, a dominar a combustão e o motor, a gravidade e a vida. Conduzir assim, nos limites e olhando a morte, é a vida, no sentido em que a estrada também a era para Jack Kerouac.

Por isso, tanto se pode dizer que a condução de Hayes é temperamental e perigosa, como cerebral e manipuladora, ou simplesmente espetacular, única e com a beleza das coisas tensas, periclitantes. Assim, o momento mais importante, belo e sensível passa-se na varanda de Las Vegas, com a engenheira da equipa, depois de fazerem um amor proibido: ele escancara o seu passado falhado e constata que o azedume não tem a ver com títulos e recordes não ganhos, mas com a perda de amor pelas corridas, por estar ao volante e sentir as sensações ao limite; ou seja, ele tornou-se azedo, irritado e idiota pois desprezou o seu dom, a sua paixão e encanto primordiais.

O instante (porventura infinito) dento de uma infernal corrida onde tudo fica quieto... o coração desacelera... a tranquilidade chega... e tudo é visto limpidamente... «ninguém nos pode tocar» ... e voa-se... foi isso que Hayes perdeu, a capacidade de transfiguração a favor dos seus pesadelos noturnos.

 Mais importante do que uma celebração do cowboy reacionário e anacrónico - que neste tempo de tanta falsidade e falso brilho pode aparecer como tipo apelativo para algumas almas fartas de ruído – do macho que despreza telemóveis e redes sociais, são as suas convicções e dádivas últimas, sempre derradeiras: a busca da limpidez clássica como forma de ser e existir plenamente, respeitando assim o Outro; e a transmissão, no caso do velho ao novo, uma generosidade que lhe ensina que as coisas não são fáceis de obter, que nada é dado de graça, e há que lutar por elas, para terem o valor devido - no final lança-o à vida, pronto a voar, talvez pela primeira vez.

 Vamos afastar o ruído das nossas vidas, diz tantas vezes Hayes, e esse ruído tem vários sentidos maquiavélicos: ruídos das tecnologias e das falsas conexões, ruído que confunde o essencial e o acessório, ruído das fake news e do espetáculo circense do Nada, barulho ensurdecedor onde já não se comunica cara a cara, e, finalmente, as imagens (gavetas, classificações) prontas-a-vestir que fazem com que Hayes, um humanista por portas travessas, pareça simplesmente um fanfarrão. Afinal não era só Schumacher e o jogo sujo, pois o velho cowboy comporta sobre todas as coisas o coração potente e ambíguo (que não se entrevê nas primeiras e simplistas visões, nem nas palavras, na maior parte dos casos) de Eastwood.

 O final é genial e cheio de sentidos às três tabelas: ganha a primeira corrida dessa modalidade e desiste, deixa o circo da F1 e vai para o deserto, e, como Nietzsche, construirá novamente a sua casa à beira do Nilo.

Joseph Kosinski é um portentoso mestre da ação e das relações, um classicista em luta com o status quo (do cinema e da vida em iguais medidas), e conseguiu aqui um belo libelo pelo individualismo absoluto e pelo compromisso absoluto com os valores que importam para lá dos rótulos.