Tommy, de Gentry Kirby e Erin Leyden, 2017
Para quem nasceu pelos anos 1980 e viveu plenamente os anos 90
do mesmo século, o Tommy do filme Rocky V, com Sly Stallone e novamente
dirigido pelo mestre dos silêncios preciosos, dos afetos calados e da ternura
máxima nunca enlevada, faz parte das nossas vidas, é um amigo íntimo nunca
conhecido pessoalmente, muito cá de casa e da família.
Antes de sabermos que esse Tommy era e seria cada vez mais Tommy
Morrison, futuro campeão do mundo dos pesos-pesados do boxe, ou sem sabermos
ainda que já tinha forjado a impagável alcunha "The Duke", compondo o
musical e musculado Tommy "The Duke" Morrison, remetendo para John
Wayne, seu suposto familiar?!
Já em 2017, produzido pela ESPN para a série “30 for 30” e
dirigido pela dupla Gentry Kirby e Erin Leyden, ficaríamos a perceber o
verdadeiro significado da sentença de Tommy sobre o boxe: «The boxing ring is a
very small area. But it´s
bigger than you and me will ever know. Lives change there.» Porque a
vida de Tommy é uma vida Shakespeariana que só poderemos entender pela empatia,
e nunca pela simpatia, pois tanto como esse tempo e espaço – anos 80, 90… – já não
voltam, a sua passagem por esta terra ficou marcado pelo molde das aventuras e
das perdições únicas e intransmissíveis que, não paradoxalmente, todos
poderemos entrever na negrura das noites.
Um grande crítico desportivo que perpassa pelo filme, como
todos os outros deste coro de lamentos (clássico? primevo?), comovido e
despassarado, atira: «Foi o ser mais interessante, complexo e auto-destrutivo
que conheci.» Talvez porque a mãe não o desejou durante a gravidez e essa
energia obscura passou para o feto, talvez porque viveu infância e juventude
sozinho e conforme as sua regras, o que é certo é que tudo permanecerá um mistério,
depois de todas as análises documentais, factuais e especulativas do filme de Kirby
e Leyden.
Mas acredito que a resposta está nos três ou quatro planos
iniciais que lançam o tom seco, lírico e secamente romântico de tudo o resto. Planos
de campos de cereais ao vento, casas solitárias, espaço despovoado. Talvez isso
tenha marcado e persistido em Tommy e daí a necessidade de frustrar todas as expectativas
e de transformar a sua vida numa obra-prima dele mesmo. Obra-prima? Como, se
ele mesmo, depois de combates perdidos por causa das bebedeiras, mulheres,
desleixo e vírus HIV, pediu aos jovens que o tinham como modelo que o
abandonassem pois ele lixou tudo e não era digno de coisa nenhuma?
Como grande vida ou obra-prima da vida se depois caiu na
desgraça absoluta, com a carreira pela água abaixo, na prisão, etc.? Volta-se
aos planos iniciais, ao tempo em que ajudou o pai na construção civil e lutou em
modalidades brutais, ao tempo da total desesperança e abandono que depois,
volvidos os anos e o corpo e o carisma tendo feito o resto, se volveu proustiano,
cheio de necessidade de responder ao tempo perdido.
O filme, o documentário, o documento, o desenrolar desse
tempo desaparecido algures, é precioso e fala, por exemplo, com Proust ou, mais
americanamente, com F. Scott Fitzgerald, porque consegue provar que a ânsia da
Fama ou da História não são, por uma vez ou em muitas vezes nas personagens
anónimas que conhecemos nas nossas vilas, a combustão para os abismos. Em
Tommy, como nos bêbados ou mulherengos que persistem na nossa memória dessas tascas
da nossa infância, é o sonho elevado ao infinito, ao ilogismo, ao absurdo, que faz
com que a Cultura apelide de falhanço a sua trajetória.
Questões de moral à parte, teve mil mulheres, o tempo
juvenil das suaves raparigas em anacronismo, andou pelo mais alto e mais caro,
pelo mais baixo e miserável, viu de tudo e provou de tudo, foi de Hollywood à
sargeta, e venceu. Viveu em 44 anos o que muitos nem num milhão viveriam. Por
direito próprio, e, de certeza, com responsabilidade.
E, dito isto, o que distingue esta obra do mais banal documentário desportivo de cabeças-falantes, imagens de arquivo e apanhados atuais sem suposta assinatura de autor? É sempre a montagem e a sensibilidade. Os planos iniciais a rimar com o olhar brilhante apanhado por Avildsen em Rocky V, o seu promotor e irmão de sempre a rimar com a mãe e irmão de sangue, o timing e a respiração e espaço dados a cada interveniente, a cada imagem e a cada som. Depois, o sentimento geral de justeza que não cabe em análises.