quarta-feira, 16 de março de 2011


Condenados, libertados...


De longe e de passado obscuro aparece Tom Joad, tão obscuro como o escuro com que as primeiras noites das suas revelações vão ser vividas – todos dele parecem duvidar. De longe, como num western que "The Grapes of Wrath" começa por ser claramente até se deixar disseminar ou perder na sua epopeia humana e logo na sua veia fantástica. Escuro e obscuro finalmente fundidos para tudo pôr em causa.

Veia fantástica que começa logo a manifestar-se nessas já referidas noites iniciais onde Joad, filho, aparece como um vulto e como vulto se irá manter, numa espécie de fatalidade traçada por essa obscuridade, ferida que se recusa a fechar. Silhuetas que só se entreveêm nos escassas e ténues feixes de luz com que o céu ainda ali consegue libertar, como as águas dos rios também o farão ou pouco mais. O resto são as velas que fulminam a escuridão, redescobrem o medo ou a verdade nos rostos e nos corpos, corpos que abanam como varas, como poderia abanar aquela árvore do majestoso plano em que Ford desafia tudo e o faz durar até aos limites e na sua justeza – Tom Joad e Casy, o que já foi padre, a tal árvore como testemunha, a avassaladora e ainda ou ali ascética profundidade de campo, e entre tudo uma frase: "talvez não existe pecado ou virtude, apenas o que os homens fazem, bem ou mal..." lembro-me assim. E é ainda fabuloso porque temos um fantasma consciente a falar com outro que ainda não o sabe totalmente – como tomará consciência no seu plano final... - e os dois a avançarem para os abismos que representa aquela terra, aquela casa, aquele buraco negro de onde não se escapa...

Condenados.

Contra-luzes, perfis fantasmagóricos, nevoeiros ou brisas estranhíssimas, paisagens retorcidas, idas ao desconhecido ou ventos sobrenaturais...Ford a encontrar-se com Torneur ou Franju, Straub a vislumbrar-lhe o tempo e o olhar, Costa a querer perder-se e achar-se em tudo isto...

Pode ser assim, pode, mas o filme é ainda mais, é talvez aquele em que a dureza ou a delicadeza formal e imensa da Câmara de Ford surge vilipendiada com pulsões intempestivas de realidade, de caos, de ódios, no fundo como grande travelling que fura estrada fora e descobre um novo mundo e talvez um novo humanismo e toda a podridão dos poderosos. Quem lhe quiser chamar direitista pode muito bem mudar a agulha para o lado contrário, pois é essa espécie de raiva que também está no olhar de Fonda, de contra tudo e todos, revolução feita com os valores do coração, que "The Grapes of Wrath" chega a vibrar e a exceder a luminosidade das suas costuras para ter a força dos manifestos manifestos e não das boas intenções ou meias medidas dos razoáveis.

Coração, porque Ford não se esquece dos grandes valores e dos grandes sentimentos que tornam tudo suportável e que o cinema ou a arte de hoje em dia foge a sete pés. Um filho que precisa e chama por uma mãe – Ma... - e a mãe que deixa as lágrimas caírem quando revê o filho e se calhar já vê outra coisa. Ou ainda a Ma que queima as recordações pois até isso já não lhe é permitido levar logo recordar...A Ma que fica com a Grandma na hora da sua morte e que não revela a ninguém para que tudo possa prosseguir. A ma que escuta as palavras finais do seu filho, impassível e vulcânica, onde a ternura máxima casa com a violência máxima da palavra e da verdade dos sentimentos, sendo a mesma coisa e por isso mesmo de uma nobreza e justeza e grandeza totais. Intimismo e afecto, generosidade apelação. O movimento do filme – beleza obscura e abalo embate com a sobrevivência a terra.

A Ma...Jane Darwell, uma das mais belas mulheres de Ford, uma das mais belas mulheres do cinema. Do mundo. Uma elegância, uma dignidade, uma altivez, os seus olhos húmidos, rosto tremente, paixão ferida, essa doçura...um  impronunciável comoção que só mais tarde rimará com a mãe Ana de António Reis. Pouco mais ou nada mais.

"Then it don't matter. I'll be all around in the dark - I'll be everywhere. Wherever you can look - wherever there's a fight, so hungry people can eat, I'll be there. Wherever there's a cop beatin' up a guy, I'll be there. I'll be in the way guys yell when they're mad. I'll be in the way kids laugh when they're hungry and they know supper's ready, and when the people are eatin' the stuff they raise and livin' in the houses they build - I'll be there, too. " - Declaração de intenções, declaração de guerra. E a ma que o protege com o olhar e o com o seu dentro. A ma que depois de o filho se levantar ainda o tenta fazer voltar as costas. O filho que já não olha para trás.

Máximo classicismo e algo que já é outro grito. Tradição e revolta. Dispensa-se teses, dispensa-se teorias, só o cinema só a vida, coisa total. Libertados.



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