quarta-feira, 25 de janeiro de 2012



Estava sob o sol e o peso agradável do vento.

É por isso que a relva estava tão teimosamente direita,

mas com flores do campo selvagens no meio.

Fim


Tal epígrafe fechada com a palavra fim poderia ser a conclusão feliz ou pacificada de uma qualquer narrativa de um qualquer livro ou filme ou outra coisa qualquer. Acontece ser o intertítulo último de um filme mudo sueco de 1917, que não por acaso é assinado por um dos maiores nomes de todo o cinema ou de toda a grande arte da luz e do movimento. Da vida, que é mesmíssima coisa. Victor Sjöström é simultaneamente quem pinta e orquestra o conto e quem brutalmente o interpreta como personagem principal. Conto que é muito simples e logo de uma gravidade inusitada, um dos segredos do mudo e dos grandes. Vale a pena, às vezes vale bem a pena contar: Terje Vigen, nome do protagonista e titulo da obra, é um homem dos mares e que aos mares consagrou a sua vida. Vamos apanhá-lo já velhinho e de cabelos brancos e de barba bem comprida, mais pelas agruras da vida do que pelo tempo que sempre passa inexorável. Encontrámo-lo assim numa casa escura de paredes grossas e cercada de tanto mar, nota-se o isolamento e a rendição de quem não espera nada da vida e só já espera a morte. E nota-se de rajada a grande arte de Sjöström, naquele engrandecimento e dignidade com que filma um corpo e uma alma grande; nas escalas e nas composições entre os corpos e o espaço – monumental o quadro no quadro que é a porta de casa e lá fora o desmedido mar que tudo ameaça devorar; e a luz que é aplicada e moldada sempre de modo a extrair e a deixar manifestar-se as grandes forças visíveis e invisíveis da natureza e de qualquer pulsão em causa, carnal, espiritual...seja o que for. Ali já não há dúvidas, ò poesia...

Flashback muito muito back...até à juventude e irreverência de Vigen, até quando as águas contavam para ele mais do que tudo e eram a sua força vital, até mais do que a mulher, até mais do que a filha bebé. É vê-lo a domar barcos como ninguém doma, a espalhar magia no vento, a subir aos mastros como quem sobe ao céu e a ser feliz e realizado assim mesmo com as coisas singelas. Mas à terra chega-se sempre porque tudo tem um fim e aí é a sua desilusão, parece não saber o que fazer, ao contrário dos seus colegas. Regressa a casa, espreita à janela e descobre a mulher e descobre a pequena criança que porventura não desconfiava, nunca saberemos. Por enigmas insondáveis ou simplesmente por amor volta a apaixonar-se e só já quer ficar no lar reencontrado. Já We can´t go home again ou não o que é certo é que essa plenitude é de pouca dura. Uma guerra com ingleses no meio explode e ele é obrigado a arriscar o pescoço para arranjar o pão de cada dia, mete-se num barquinho pequeno e por entre artimanhas várias deixa-se apanhar quase com objectivo cumprido. Morreu na praia e morreu esse Vigen recentemente renascido. È capturado e encarcerado muitos muitos anos e em sofrimentos desses o cabelo, as peles e o resto devem como que apodrecer. È liberto e já não é o mesmo homem, nem de perto nem de longe. Volta às origens e poucos o reconhecem. Espreita para a sua velha casa e já vê outros rostos. Desmaia e o plano seguinte já é o cemitério onde ele tira o chapéu aos seus, num dos cumes de lirismo e de atmosfera mais poderosos e carregados que já alguém me deu a ver – a vermelhos e cinzas velado.

Vigen já é outro, importa reforçar. É um animal ferido e acossado que se isola e deixa a raiva crescer dentro de si até ao ponto de alarme. Todos em redor o temem e acham que ele perdeu o juízo. Até que certo dia, num qualquer vento de qualquer ponto debaixo de um céu revolto e horrendo como a maré fatal, avista uma embarcação em perigo e lá dentro muita gente. Sem pensar e de instinto intacto vai lá ter de barquinho e para espanto de todos consegue domar esse diabo dos mares que os outros levariam para a morte, e por entre promessas de dinheiro e choros e gritos, Vigen reconhece que quem salva agora foi quem um dia o matou. Terrível descoberta. Vingança à espreita...animal interior que se presta a estrangular de vez. Num bote de salvação onde leva um casal parecido ao que um dia ele foi com os seus, está pronto para pôr fim a tudo e repor uma justiça sua. Mas a expressão daquela mulher e daquela filha e o seu bom coração fazem-lhe baixar as garras. Salva quem tem a salvar como genuíno lobo do mar. Apazigua-se, recompõe-se, volta a acreditar. Seguidamente já se pode entrar na casa dele e ver sorrisos e dádivas. Despede-se entre festas e comoções desses que lhe devolveram o sangue e o próximo plano é já outra vez o cemitério, desta vez só paisagem, solaridade e vento muito vento que amansa. Isso e as flores do campo da tal epígrafe. E o lirismo queimante à flor da pele. E todos os tempos no tempo daquele plano que é o tempo do cinema e de todas as vidas.


Milagre do olhar e do sensível como foram vários momentos ou todos os momentos ao longo do filme. Para jamais esquecer além dos citados e dos não citados:

- O deleite entre pai e filha no primeiro encontro. Às vezes a vida vira em segundos ou só com um olhar e foi o que aí aconteceu. Amor incondicional.

- A partida de Vigen à procura de comida, num plano de profundidade de campo, de sensibilidade pictórica e de duração sem par absolutamente algum. Um único plano que dura e dura...em que ele se despede da mulher, entra no barco e nos mares e desaparece no infinito, ficando a ecoar um peso de talvez predestinação...até à emoção pura e mística da existência do homem e do poder atractivo do cosmos.

- A fuga aos que o caçam, num prodígio de mise en scène e de arrojo que só depois Murnau atingiria em "Tabu” e nada mais. No tão grande o tão pequeno perdido homem e a sua garra igualmente incomensurável. O homem é aquilo e a maldade a que ele também pode chegar vai-se dar no hiato que durará até ele voltar à sua terra.

- Repito: a sofreguidão até aos ossos na prisão. Num único cenário concêntrico. E apesar de tudo...a alegria que ainda consegue brotar quando o soltam.

- O plano icónico do cinema de Victor Sjöström, com Vigen ao leme circular do barco que pretende salvar e a redescoberta da virtude máxima da sua vida que só tem semelhante com o imenso amor que ele provou poder dar.

- Todos os restantes frames, o som que se ouve malgrado chamarem-lhe mudo. O amor que brota de todos os poros e consequente tristeza. O movimento de alegria, fechamento, redescoberta e eterno descanso. O Homem e o Mundo em total comunhão, com tudo o que isso implica e se faz experiência inolvidável.

Victor Sjöström mais esquecido do que nunca é o olhar, o saber e o segredo que toda a grande arte logo também o cinema detiveram e podem deter, a luz e o tempo. A forma e o fundo. O circulo da vida. O eterno.

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