terça-feira, 14 de agosto de 2012



Ruge a fita. Lá vai esbatido e retorcido e ondulado pelas águas de uma citadina poça, um homem agora simples, as suas vestes de talvez ídolo de outros tempos, típicas botas pontiagudas para o engate ou para a pancadaria, a sua inseparável guitarra. E a sua música sobreposta ao plano, não esqueço a sua música. O rosto ainda se encontra lá na distância do chamado plano geral ou inteiro. Resguardado, impassível. Mas o seu rosto vai ser tudo, lá estagnarei. Pode ser um Dylan, um Guthrie, um Jerónimo (& Cro-Magnon; o tal Bob Dylan da cova da beira). Eterno puto traquina. Um qualquer vadiola livre, apanhado pela vida e por vícios vários, sem remorsos. Próximos planos, porque já se notou, falo de um filme e da sua única fonte de criatividade - a realidade pura, dura, incandescente, bruxuleante. Pontes subidas, pontes descidas e a insistência em reflexos, estradas torcidas e retorcidas, ingremes, esfumadas, de cheiro intenso possivelmente, óleos e fumos e toda uma gama de variada conspurcação. É belo e é sujo e a pele responde ao estímulo, pelo menos quem a têm. Entretanto aproxima-se a escala da câmara ao homem e começa-se a desvelar uma face. Os movimentos corporais surgem mais nítidos, singulares, intransmissíveis. A roupagem esvoaça ao vento e as texturas brilham vincadas. E noto ali o cigarro imagem de marca no canto do dedo à espera da bendita baforada. Mais sobes e desces e paisagens pintadas deslocadas à força de neve. Naquela terra o sol brilha, tinha-me esquecido. Os barulhos da banda do mundo mundo começam a impor-se ao registo magnético que canta coisas acerca de amar um alguém ser mais fácil do que alguma coisa que jamais se fará; lamentos por ontens; sonhos acreditados de eternidades talvez perfeitas. Tanto declive e tanto obstáculo devem querer dizer qualquer coisa que não parece lá muito alegre.

Entrámos em entrecorte numa loja de instrumentos musicais e vamos sentir o peso de um homem, passado, presente, medos, dúvidas, assunção crística no limite. Ao primeiro dos muito grandes-planos que serão dedicados a Cisko Pike/Kris Kristofferson, tanto de uma existência tramada e do tempo que parece já se foi vai surgir literal como em frente a um abismo: o dono daquela loja não sabe se Cisko vem por causa do tráfico de coca ou do que quer que seja traficável, se por causa da música. Já que por amizade simples não parece só ser. “Já não trafico mais” atira aquele que breve saberemos já foi rock star e que agora está preso a fama duvidosa. Numa só cena descarnada temos então as forças que vão torturar esta pessoa pelo tempo e para lá do filme – o seu dom e a sua perdição, ou o seu dom que é a sua perdição; Passados de encarceramento. Ambições e linhagens já largadas. Ilusões desvanecidas. Auto enganos. Milhões de recordações e um anjo da guarda que não o deixa desfazer-se do único objecto que se interpõe entre a paixão ontológica e a já enunciada maldita desgraça. Alguém assim suplicante e humilhado já bateu de certeza com muita força nas paredes escarpadas da vida e encontra-se bloqueado no fundo dos fundos. E do nada ou talvez não esse anjo negro vai citar um tal filósofo de uma constelação algures sumida: “não olhes para trás, alguma coisa te pode apanhar”. Isto depois do olhar de Cisko ter notado cheio de saudade um retrato seu de dias de glória e discos de ouro. O olhar, o rosto também de uma cortante saudade de um grande actor raro e subestimado, KK. Para mim está ali, naquele território em que os tais olhos flutuantes e desacertados, claramente claros e claramente magoados, essa forma rectangular abrigada por pele igualmente clara por vezes sulcada a sangue ou a rugas vincadas mais por sofreguidões que pela idade, de cabelo em desalinho a cair para os lados e para a frente, para a testa, está aí, dizia então, o que do filme importa, matéria primeira. E é nele, acredito, que a relação tão graciosa, terna e violenta com a sua companheira, com as amantes, com o polícia que o há-de perseguir como a um cão, com o amigo de longa data que vai morrer nos seus braços, é por esse rosto que tudo gravitará e agitará, todos os tempos e abalos nesse espaço. Quem faz estas ligações são os espelhos da alma e outro tipo praticante da sismografia e das fatalidades temporais chamado Bill L. Norton, alguém também de singela importância e caso curioso, daqui a bocado falo mais dele.

Cumprimentos fraternos e zás. Estamos na rua com a mesma música com que tínhamos ficado à entrada. O andarilho na sua vaga demanda em busca de coisa nenhuma. Passa rente à areia, de perto ao mar, a acalmia espreita. Lá vai ele embalado em soluções e sustos, ficares e porvires. Se os cães vão ter com ele como quem busca o osso, também isso terá os seus porquês. Bom tipo esse Cisco, adivinha-se. Como gostava de o ajudar e de lhe cravar um cigarro que me falha. Entra em casa e os passos fazem-se escutar após a porta. Parou definitivamente a melodia baladeira para brotar a quotidiana. Uma estranha luz estilizada a sombras perpassa-o pela viela de pátio, desenha-lhe formas e leva-o à intimidade do casal. Lá dentro em poses místicas a sempre fugidia e carnal Karen Blake faz bom pendant com K.K e em planos simples e frontais que duram o que devem durar e não cumprem as regras da praxe, um jogo de graça e sedução que esconde males-estares recentes, mesmo resguardando o estridente sorriso dela. Falam de velhos universos mas o que está em causa é o novo que o sucedeu. O ângulo altera-se para amar, proteger e perscrutar o rosto, sempre. Astros. Levitações. Sexo irracional. Dizeres inesperados continuam a sair daquelas bocas. Combates de olhos para lá de categorias sexuais. Combates de belezas esquisitas e comoventes. Fornicanço adivinhado. Um palhaço em raccord. O circense espectáculo da lei, da autoridade, da força armada. O regresso a casa e a assombração desses ilícitos actos que atrofiam carne, união, vocação, emancipação. E o mote está dado, fuga para a frente, arrastamento, consumação, desgaste, incertezas trituradoras, também a verdade. Tudo ao inferno.

Bill L. Norton? Dirigiu este “Cisko Pike” e a partir daí sempre a descer, ou sempre a subir, sabe-se lá o que têm dentro os inúmeros telefilmes e séries que seguidamente serviram de seu ganha-pão. Por este filme e por esta época não dá obviamente para o aproximar de um Coppola ou de um Scorsese. Nem mesmo de um Lumet. E para nos entendermos de verdade, estará mesmo longe de James William Guercio, Sarafian ou Schatzberg. A ousadia dos muito simples. O que temos aqui é toda uma correnteza narrativa e formal assente em dilemas morais intricados e aguçados que fervem a cabeça e o interior de quem habita e se emaranha nesses novelos. Correnteza arcaica, ordinária, de baixo nível estético ou então em acordo com o que capta, vagabundo porque sobre as torrentes de sujidade e ar que plana, sem fugir nem mascarar, viscoso e sem extremada iluminação artificial que esconda o ruido que tudo envolve. Incompetência. Irresponsabilidade. Nada de extraordinário como o cinema com C maior que os especialistas convencionaram. Tudo dirigido para aquele rosto, esse rosto como crença de finalmente qualquer coisa, de precioso, de primeiro, de regresso ou só de um rosto. A pura carne e o puro brilho. Nada mais do que um rosto, ámen. Retrato do que acontece a um homem apertado que é especial pois sabe que ama alguma coisa mais do que a tudo. Que terá sempre razão de viver mesmo que tudo alua a seu lado e os amores carnais fujam. Norton nunca será nada demais para o cinema C grande pois limitou-se a quase tudo nivelar para projectar cosmicamente, sem puto medo do palavrão, um dos mais comoventes rostos de que há memória. Esse Billy the Kid do Peckimpah ou esse David que esfrega esquimonicamente o nariz a Ellen Burstyn num tal “Alice Doesn't Live Here Anymore “. O disco que Travis Bickle oferece a uma habitante dos véus do céu baptizada Cybill Shepherd, também nos setenta.

Dúvida uma outra das canções trauteadas se Cisko entre outras coisas será um poeta, um profeta, um provocador, um peregrino…para aceitar de barato que é uma contradição daquelas meio verdadeiras meio ficcionais ou místicas. No fundo, como a “metamorfose ambulante” de Raul Seixas ou o “sonhador ambulante, poeta cantante, vadio das ruas” do já citado Jerónimo. Porque sem questão tudo isto se funde nele e assim certezas nenhumas – um artista, um cobarde, um cabrão, um coração basto, um filho da puta, falso, verdadeiro, um homem. Alguém que para incitar e recuperar o amigo no meio do turbilhão de reminiscências e possibilidades de regresso lhe diz que não é o corpo que eles querem mas sim a alma. Eles, essa abstração mortificadora.

Um tiro às costelas. Uma visão de infâncias de baloiços e anoiteceres suaves. Instantes enganadores. Uniões desfeitas. Um até qualquer dia não pronunciado. No final ficam os Ozunianos espaços vazios juntos com o olhar da mulher que não percebeu que apesar de tudo há quem leve a palavra e os actos até consequências últimas. Planos e bombas finais, um carro e um corpo rasgam outros corpos e outras almas talvez em direcção à quimérica terra de sonhos apelidada Califórnia. Há que continuar.

Digam-me que a obra de Nortan é vulgar e num certo sentido terão a razão toda, no sentido dos mestres ou no sentido do nec plus ultra, dos esquerdismos, independências. Agora não me digam que nas américas de hoje ou nas salas de arte e ensaio se encontram muitos empreendimentos destes, de uma desarmante humildade ao decidir colar-se a uma pessoa e a não a largar por nada, nas vitórias pequenas e derrotas imensas, morte que mata e pequenos suspiros de vida. Obra que nos deixa estar com K.K num copo, ao lado dele por um horizonte, compreendendo-o ou reprovando-o, mas nunca lhe virando a cara. Nada de fresco, espectador, nada mesmo? Então e o homem antes do actor que faz do filme um retrato como coisa antiga? A emoção antes da representação. O que existe nas coisas ao invés do pré-fabricado cénico. Uma afiada aventura pelas entranhas e nervos. A morte de Harry Dean Stanton que ou é uma ampliação óptica da produção devido a uma natureza inocente ou é uma invenção maravilhosa de pudor dos eternos laços – seja o que for, e podem ser as duas coisas, raramente tal inocência se sente primitivismo e bela inconsciência. Norton poderia por aqueles anos setenta não saber fazer piruetas ou embelezamentos, poderia nem ter aprendido as lições dos técnicos, ter chumbado a cadeiras básicas, ou então preferiu a lição do calejamento e do sensível, qualquer que seja a resposta, uma preciosidade, o aumento pelo cinema do não espectacular, o aumento do humano e do amador.


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Há quanto tempo, meus Rosenbaums ou meus Steiners, J e G, o cinema não se contenta em simplesmente seguir uma pessoa comum, uma pessoa que seja? Do mesmo modo e com a mesma modéstia do Rossellini de “Stromboli” ou do “Xavier” do Mozos. Diz-me muitas vezes um amigo meu que o Ford ou o Capra, ou o Costa, conseguiam e conseguem transformar ou transfigurar os homens mais simples (zés-ninguéns; pés-rapados; vândalos, os palhaços tal como o fadista Abel Lopes nos narra - os tristes, os bons, os que se humilham para arrancar um sorriso; borrachões; etc.) em autênticos heróis, monumentos dignos e de espantosa dignidade, puras estátuas hieráticas. Porque agora, agora, neste aburguesamento e ausência de valores grandes, nesta comunidade internacional que prefere o estupidificado à descomunal potência e poder revolucionário do indivíduo de todas as épocas, que se enaltece nos seus pedestais com a pseudo-arte de um Nicolau ou de um Gomes ou de um Honoré, esses que inverteram a moral clássica, ou liminarmente a moral nobre e bela pois humanista, e que orgulhosamente transformam e trituram os simples (nós os zés-ninguéns; os pés-rapados; os vândalos, etc.) em palhaços engraçadinhos, palhaços néscios, macacos, ralé, a tal malta cool que comparada aos Waynes ou Mitchums não serviriam para meninos de coro ou para lhes engraxar as botas de cowboy. E os Rosembaums e os Steiners a adular este deslizamento da colossalidade do homem e das suas questões eternas para a fossa, a adular os morangos com açúcar vertidos para cinema com o paleio Monteiriano ou Straubiano ou nouvellevaguiano a caucionar. E, lamento muito, não dá para defender esta casta oca que faz as capas e páginas de uma cinemascope (revista) sem se ter esquecido do que um dia se passou nos ecrãs e do que se passa ou não se passa agora, do que se sentiu no que já não se sente, cinematograficamente e humanamente. E desta vez não falo, desta vez ainda não, do que estes tais artistas terríveis do cinema pós moderno fizeram ao mundo e ao poder de uma câmara de filmar. À magnificência de David W. Griffith e dos seus Mississippis ou Death Valleys sucedeu a fealdade e o ignóbil dos bobos e dos riquinhos em relação com Áfricas vilipendiadas ou Tejos petrificados. E os Rosembaums e os Steins…Por mim deixo os meus perdões, senhor Griffith.

Se cada um pode fazer o que quer com as suas ideias, o dinheiro que lhe dão, a pandilha angariada, as crenças por demais discutíveis, o talento por demais discutível, etc., se é fascinante a diferença, a liberdade, discussões, dialécticas, guerras, narizes partidos, caralhadas, etc, não vejo outro critério mais decisivo e indiscutível de fazer a separação entre trigo e joio, a beleza, o grande, o mau e o abjecto, que não seja o amor, o fazer por amor, por uma necessidade mortal que por vezes pode levar tudo à frente e mesmo causar desgraças, tudo sacrificar em proveito da feitura. Grandes obras assim germinaram, de Jean Eustache a “Trás-os-Montes”. Quando digo os filmes de Gomes, Nicolau, Honoré, estou-me a esquecer de muitos outros em que durante as horas em que a obra dura não consigo notar laivo de amor ou de generosidade, uma dádiva que não seja de amor-próprio, insinuação de auto-génio, promoção, publicidade. E desta não falo daqueles que são só filmes, que também os há quase sempre escondidos das luzes da ribalta e dos fatos à medida. Fará isto algum sentido, nobre espectador, o amor? Havemos de falar vindouramente, já que a crise continua a vender e os essenciais esotéricos astros a proteger-nos.

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