quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

 


O primeiro plano de “Edge of the City” é como o cinema de John Cassavetes, explosivo e contido. Uma corrida esfarrapada do fundo do campo para o primeiro plano. Luz branca trémula a escapar aos apagamentos. Muito movimento e estilhaço e muita imobilidade. Som a mata cavalos e finalmente descanso. Um cigarro na contraluz das ondulações e faróis de arranha-céus. Silêncio e deambulações.

Mas quem agarrou no filme foi Martin Ritt, o clássico vanguardista de “Hud”. E é um daqueles poucos que se interessa e gasta o tempo nas bordas, nos baixos, no sujo, rastejadores, bebedores, os que levam lancheira para o pica-boi, contempla puxares simples e vitalistas no tabaco, sebo, putedo, vaquedo, gatos vadios, suicidas, desistentes, borrados de medo, Charles Bukowski ou o meu comovente amigo Carlos Alemão da minha terra São Mamede que só era contente com o parceiro do copo ao lado nas casas dos muitos conhecidos ou no café Buraca cá do sítio e desde que inacreditavelmente se diz que casou e emigrou eu nunca mais o vi e tenho saudades, fadas e príncipes, quase póstumos, pobres que dão a mão a pobres, sábados à noite de dança, jantares alegretes inventados como hoje os do lidl, amizades para sempre e traições fatais. Atracções irreversíveis. Nova Iorque ou Braga, as rotas e os poisos e as tascas teriam dos mesmos cheiros e das mesmas cantilenas e da mesma sapiência. Sem vistas gerais ou postais, sempre enquadrando estruturas ósseas e halos tangíveis.

Cassavetes é um Axel Nordmann sobre disfarce e quem lhe dá a mão é um bonito e singelo Sidney Poitier a quem chamam Tee Tee. E na cena mais tocante e desossada desta obra tão dura e magoada como os seus protagonistas, encontram-se os dois junto à água dos estivadores que eles são e Tee Tee explica a Axel que um homem tem que fazer escolhas no seu curso, o homem grande contra as formas baixas, ambição ou respeitabilidade ou então indiferença, tem-se muitos metros e se ousa Homem ou caminha-se para as baixezas e acaba-se no lodo. Qualquer coisa assim ou fica-se sozinho, lixada equação.

E o que parece crença pura de quem muito acredita, autoconvencimento kármico ou coisa do género, é afinal a questão central e mortal do filme e da vida dos muitos homens ali desassombradamente captados. Todo o movimento fílmico e humano arde furiosamente pela busca de uma verdade e de um lugar que já não parece poder existir ou que só ilusoriamente se deixa entrever. Desde o telefonema inicial para casa até ao falso apaziguamento final do sonhado regresso impossível, passando, e o conto nada mais é do que isto, pela história de amor entre o branco e o negro que se encontraram num cais.

Axel vai ser apanhado nas teias do seu turvo passado e da sua biologia, mas também pela maldade intrínseca a todos. Vai-se sentar à mesa com o amigo que lhe vai tentando endireitar a vida e os amores e vai-lhe dizer que só por uma vez amou alguém e que esse alguém foi o irmão que ele próprio matou. O destino avança furiosamente como a água que continua a correr por lá, o suor a escorrer das peles ou as voltas daquela dança onde um fantasma do passado se faz carne entre os piores que não aparecem.

Evidentemente que nem é pela moça que ele conheceu e que acendeu mais uma luz impossível que ele torna a cair de amores, mas sim por Tee Tee, do mesmo modo que amou quem era do seu sangue, e, importa dizer veementemente, sem qualquer tipo de conotação erótica. Só amizade. Desinteressada pura amizade. Tanta como o sangue da Fordiana mãe de Axel que tudo, absolutamente tudo, lhe perdoaria, como depois o pai, sem sentenças atiradas.

Por pouco eles vivem, por pouco que só alguns sabem que é tudo se mata, se tem de matar, nas cegas elipses ou nos intervalos estraçalhados. A bifurcação agudiza-se até rasgar de nervos, a corda na garganta deixa marcas irreversíveis, os caminhares em círculos perdidos regressam, Tee Tee resolve pagar contas antigas com o tipo que calhou querer apagar Axel e aí morrem os três por algo em desuso absoluto que ali ainda se chamava honra. Que era a verdade de que falei e que afagadamente alastrou a todo o filme até ao viscéreo final. Ousadia dos não cobardes. Única medida de grandeza que importa.

Martin Ritt vai com toda a condensação e pressão ao fundo do que queima clamante de libertação e de sossego, por isso tantos brilhos e promessas, e estaca o seu objecto de trabalho nas mesas dos disponíveis para lhes dizer que existem, utiliza a montagem não como empresa de espéctaculos ou construtora de puzzles, antes franqueadora do fluir essencial de cada ritmo, cada pulsão, cada coisa, cada vida. Aparato científico e mão humana ligada ao estômago. Ritt, como um deserdado da série-b, ou varreu em sequência porque tinha pouca fita, tempo e dinheiro e urgia caminhar presto, ou encontrou o ritmo sensível e mecânico da peça no âmago da respiração e clima geral. A mesma coisa, neste clamor telúrico e lácteo à tão saudosa e precisada revolta.

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